Medicina nas primeiras cidades: MesopotâmiaJoão Bosco Botelho
Deus bom, Ningishzida, representado em forma de cobra. Com a consolidação do sedentarismo, nas margens dos rios piscosos, em torno de 5.000 anos, no Norte da África — Egito e Mesopotâmia — e algumas áreas da Ásia — Índia —, importantes modificações foram se processando nos antigos grupos nômades de caçadores-coletores. Entre as mais significativas, que mudariam para sempre as relações sociais humanas anteriores, se destacaram: a construção das elites dominantes laicas e religiosas, as práticas agrícolas, os ajustes e defesa da territorialidade e os panteões.
Como fruto dessas mudanças, as sociedades francamente hierarquizadas acolheram regras destinadas às propriedades privadas, moldando os assentamentos mais duradouros.
Os aldeamentos foram substituídos pelas primeiras cidades e, no milênio seguinte, as civilizações regionais se consolidaram e assimilaram diferentes formas de poderes, predominando o teocrático e o mercantil-escravista. As guerras contínuas pela posse do território ofereciam escravos e terras, fortalecendo a escravidão e a propriedade privada.
Muitas mudanças provocadas pelo sedentarismo contribuíram para fortalecer a figura social do médico. De modo geral, os registros disponíveis, no Egito (Novo Império, XVIII a XX dinastias, 1.540 a 1.069 a.C.), Mesopotâmia (Babilônia, no período de Hammurabi, 1792-1750 a.C.) e Índia (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), indicam que, apesar de poucos, os médicos já eram personagens sociais reconhecidos e com nominação própria, instruídos na arte de curar por meio de remédios e cirurgias.
Os médicos dessas cidades, sem um processo teórico que explicassem a saúde e a doença, apesar de terem iniciado a Medicina como uma especialidade social, ficavam atados às crenças e idéias religiosas, onde a vontade dos deuses e deusas era mais poderosa de que os remédios e as cirurgias.
Por outro lado, mesmo com a comprovação histórica da estreita ligação dos médicos ao panteão —
Medicina divina — em ensaios de acertos e erros, compondo o conhecimento historicamente acumulado, houve a busca de novos saberes da natureza circundante para curar as doenças —
Medicina empírica. É possível que a proximidade entre essas duas práticas médicas, em especial as praticadas nos templos pelos representantes dos deuses e deusas, os sacerdotes e as sacerdotisas, tenha promovido a semente que levaria a construção da
Medicina oficial, amparada pelo poder dominante.
De certo modo,
mutatis mutandis, nos quatro cantos do planeta, continuamos comprovando a existência dessas três Medicinas.
Deus mau em forma de inseto díptero.
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Mesopotâmia
A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários extratos sociais, no reinado de Hammurabi (1728-1688 a.C.), suficientes para gerar atritos freqüentes, perturbando a ordem social.
Como não se constroem leis proibindo ou punindo o que não se faz, a administração do rei Hamurabi dedicou vários parágrafos do famoso código de leis para disciplinar o exercício da Medicina:
§ 216 Se foi o filho de um muskenum, ele receberá 5 siclos de prata.
§ 217 Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará ao médico dois siclos de prata.
§ 218 Se um médico fez em um awilum uma operação difícil com um escalpelo de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum e destruiu o olho do awilum, eles cortarão a sua mão.
§ 219 Se um médico fez uma operação difícil com um escalpelo de bronze no escravo de um muskenum e causou-lhe a morte, ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.
§ 220 Se ele abriu a sua nakkaptum com um escalpelo de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço.
§ 221 Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente, o paciente dará ao médico 5 siclos de prata.
§ 222 Se foi um muskenum, dará 3 siclos de prata.
§ 223 Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará 2 siclos de prata.
Dessa forma, o código de Hammurabi iniciou o processo histórico para estabelecer normas nos dois pontos cruciais da ordem médica: as sanções que devem receber os médicos pela imprudência, imperícia e negligência e os honorários diferenciados pelo tratamento entre pessoas de diversos grupos sociais.
Como no Egito, os tratamentos eram cercados da presença dos deuses e deusas e a doença compreendida:
- Como castigo divino;
- Ofensa específica a um determinado deus;
- Intervenção direta dos deuses maus;
- Abandono do deus protetor;
- Influência do deus mau.
O panteão era povoado por muitos deuses e deusas taumaturgos:
- Gula, mulher de Ninurta;
- Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas cobras enroladas no bastão; trata-se da primeira associação entre a cobra e a Medicina;
- Sachan, a deusa-serpente;
- Ishtar, a deusa da fecundação e libido no homem e na mulher;
- Pazuzu, o deus mau em forma de um inseto díptero.
As tábuas de escrita cuneiforme encontradas nas bibliotecas de Assurpanibal, em Nínive, e Hammurabi, em Mari, descreveram os quadros de várias doenças de modo extraordinariamente coerente e preciso: malária, tuberculose pulmonar, distúrbios mentais, alguns tumores benignos e malignos, otite, gastrite, hepatite e asma brônquica, entre muitos outros.
De modo geral, as práticas médicas, nas primeiras cidades, moldaram grande parte da compreensão da profissão, que perdura na atualidade:
- Reconhecimento social do médico;
- Trabalho remunerado;
- Fiscalização da má prática;
Talvez seja interessante refletir sobre dois aspectos significativos da relação da Medicina mesopotâmica com os deuses e deusas.
1. A significância do simbolismo da cobra ligada à cura das doenças: o caminho escolhido pelo imaginário humano na busca da pretendida imortalidade com a participação da cobra está perfeitamente claro em dois fantásticos registros. O primeiro, no Rig Veda, onde os Adityas descritos como descendentes da cobra, porque ao perderem a pele velha, venceram a morte e adquiriram a imortalidade. O segundo, na Epopéia de Gilgamesh, onde o herói, depois de inúmeras ações sobre-humanas para obter a planta da vida eterna, cansado, após acordar na beira do rio, presencia o remédio que garantiria a vida eterna ser comido pelo réptil, seguindo-se da imediata mudança da pele, momento em que o herói mítico babilônico se dá conta da morte inevitável.
2. O deus mau Pazuzu em forma de inseto díptero: como os primeiros assentamentos, na Mesopotâmia, foram consolidados em área de várzea, pressupõe-se a existência da maior quantidade de insetos que transmitem a malária. Apesar de nada conhecerem da etiologia dessa doença, é possível que tenham associado o inseto com as febres descritas.
Desse modo, mesmo com a forte dependência das idéias e crenças religiosas para formar juízos de valores das doenças, tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, havia a intencionalidade de compreender a doença fora do panteão.
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Diorito preto contendo o código de Hammurabi.