domingo, 28 de fevereiro de 2021
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
A poesia é necessária?
Viajante
Tainá Vieira
Os
dias são longos
feitos
de tédio
anseio
pela noite
longa
e alegre.
O
corpo sobre a cama
nem
vê a noite passar,
enquanto
a mente voa
como
vampiro que espera
a
escuridão para caçar,
saio
em disparada
rumo
à liberdade
para
qualquer lugar.
Já
assisti ao fim do mundo,
já
tive muitos filhos
já
matei alguém
já
me vi criança
já
fui homem
já
fui bicho.
E
já vi a minha própria morte,
estavam
me velando
estavam
chorando
estavam
celebrando,
eu
ali deitada
morta,
no caixão
pálida,
feia e fria
tal
qual a morte
que
me deu essa visão.
E
quando o cortejo ia saindo
de
súbito gritei
–
estou viva!
mas
ninguém me ouvia
ninguém
me via,
eu
não estava ali.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Fraternidade e cancelamentos
Pedro Lucas Lindoso
O
Brasil continua dividido. Nem mesmo esse vírus terrível arrefeceu os ânimos.
Pelo contrário. A pandemia se misturou com política. Há brasileiros enfrentando
a morte em meio a desavenças políticas entre familiares e amigos.
Não sei
o que é pior. Se o coronavírus ou o vírus da intolerância e do maniqueísmo.
Recuso-me a viver num mundo em que só temos dois aspectos opostos e
incompatíveis.
Fulano,
conservador e religioso, criticou o atraso da vacinação por parte do governo
federal. Foi cancelado e expulso de grupos de WhatsApp, taxado de esquerdopata.
Beltrano, militante do PT, confessou que tomou Ivermectina como profilaxia para
a covid. Também foi expulso e cancelado de grupos de WhatsApp. Acusado de
negacionista.
A
palavra “cancelamento” foi ressignificada em 2020. O cancelamento ocorre em
redes sociais, inclusive em grupos de WhatsApp. Um membro do grupo acusa outro,
em tom condenatório, de algum ato ou declaração reprovável. O sujeito é
cancelado.
Pasmem!
Há um grupo que desde sempre agasalhava Fulano e Beltrano. Ambos são católicos praticantes. Fazem parte
de um grupo de Encontro de Casais da Igreja.
Tudo indo bem no grupo. Até que começaram os debates sobre a campanha da
Fraternidade de 2021. Neste ano, a Campanha tem como tema “Fraternidade e diálogo:
compromisso de amor” e lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma
unidade”.
Como
católico, penso que a Campanha da Fraternidade é um chamado ao Evangelho.
Sempre na Quaresma. Entretanto, ao condenar o racismo, a violência, a
intolerância, inclusive contra LGBTs, a campanha deste ano despertou a ira de
grupos católicos conservadores.
Fulano
e Beltrano estão desolados. O grupo da Igreja era o único local em que tinham
convergência e podiam exercitar com alegria e cristandade a troca de memes e
mensagens. Fulano pediu ao grupo que esqueçam um pouco essa polêmica. Beltrano
lembrou que o que tiver que ser criticado deve ser feito com serenidade.
Eu fico
meditando sobre o lema “Cristo é a nossa paz!”. Que paz é essa, meu Deus?!
Estou
lendo a biografia de Jorge Amado, da jornalista e historiadora Joselia Aguiar.
Um trabalho magnífico. Jorge foi deputado pelo Partido Comunista, mas depois
renegou o comunismo. Para o casal Jorge e Zélia, nada mais castradora do que a
divisão entre esquerda e direita.
Grande
verdade. Nada mais abominável. Em tempo de Campanha da Fraternidade não cabem
cancelamentos.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 3/9
Zemaria Pinto
Comissão de frente
O capítulo
dezesseis – “Benito” – sintetiza o procedimento narrativo, reunindo exemplos de
paródia, alegoria, metalinguagem e intertextualidade. O Bar Bacurau era uma
representação microcósmica da Manaus em tempos de sombras, onde avulta acima de
tudo e de todos a paradigmal figura de Benito Botelho, arruinado fisicamente,
“parecidíssimo com Mário de Andrade” (p. 121), um prodígio literário, com uma
memória fotográfica incomum. Polemista profissional, Benito era “poeta e
poliglota, lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de [ter] sólidos
conhecimentos de grego e de latim” (p. 121). Mas ele não estava sozinho no bar,
onde se juntava a velha guarda boêmia da cidade.
No
Bacurau se reunia a escória da sociedade manauara. Eram pescadores, policiais,
bichas, poetas, presidiários, prostitutas, comunistas, peixeiros, músicos e o
grupo do Clube Satírico Gregório de Matos, que infernizava a vida dos poetas
maiores do Clube da Madrugada. (p. 122)
Benito Botelho
“era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória,
servil, risonha e patriarcal” (p. 126).
Sob a liderança
arruinada de Benito, a escória do Bar Bacurau abre o nosso desfile.
Porta-bandeira e Mestre-sala
Adiante, daremos
ênfase na fundamentação alegórica das personagens de O amante das amazonas,
mas comecemos por destacar dois papéis que, secundários, têm fundamental
importância na trama: Paxiúba e Maria, ambos caxinauás. Antagônicos, os dois se
completam na subserviência ao patrão Zequinha. É curiosa a definição dos
caxinauás, dada pelo Coronel Bataillon:
Eles
constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres
individuais. O indivíduo é o povo, a raça. (p. 68)
A relação
especial dos dois com Zequinha Bataillon sintetiza essa simbiose: enquanto
Paxiúba é o braço armado, sanguinário, de Zequinha, Maria é o lado amoroso –
mãe, irmã, amante. Separados, Paxiúba continua seu mister de violência, mas
Maria se transforma, para os que ameaçavam o seu território sagrado: “hostil,
aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em
si, como serpente” (p. 68-69).
Numa paráfrase intertextual
entre o libelo político e o ensaio sociológico, o narrador dá a sua versão de
Maria Caxinauá:
São
raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas
riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para
sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao
trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de
suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de
massas proletárias – vinte milhões de índios massacrados no Brasil se
corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá. (p. 69)
Os caxinauás, nas
figuras de Maria e Paxiúba, alegorizam as nações exterminadas no contato/enfrentamento
com o invasor branco.
Assista à
palestra, no YouTube, clicando aqui.
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Manaus, amor e memória DIII
sábado, 20 de fevereiro de 2021
Covid: a vida por um triz
David Almeida
A noite
de maior sufoco que passei; o pico mais alto da febre por COVID me atingiu em
cheio. Senti minha vida se esvaindo pelo ralo, fiquei sem ar, sem chão, fui
perdendo a força de viver, senti um frio de congelamento. Apaguei. Acho que fui
para um outro mundo.
Era
como se estivesse num túnel transparente, envolto em gelo, às vezes de cor azul
bem clarinho, quase cinza, deitado numa plataforma gelada sobre um trilho –
acho – de vida. Os pés congelados revelavam a temperatura do meu corpo. Sentia
que tudo era muito veloz, como se minha vida estivesse passando rápido. Mas,
pra onde eu iria? Será que não estava mais nesse “Planeta Ainda Azul?” Como
tinha chegado ali daquele jeito? Consegui me virar um pouco, olhei pra frente e
vi que era realmente um túnel, mas não tinha nada no final, só aquela
transparência do gelo, às vezes de cor azul ou cinza. Tudo muito veloz e um
silêncio de causar barulho em qualquer cabeça pensante, aí pensei que estaria,
talvez, na estação do inverno... Meu deus me confundi todo, não mais sabia qual
era a primeira, a segunda ou a última estação do tempo; fechei os olhos, mas as
cores não mudavam, sentia o que me conduzia com uma velocidade a todo vapor e
me dei conta que estivesse mesmo na estação do inverno, era a última, ahhhh,
que tristeza, era o fim de tudo, a última estação... Mas, ao mesmo tempo me
veio no pensamento que se tivesse força, tempo e paciência chegaria na primeira
estação novamente. A Primavera! Aí, logo após, viria a estação da luz; da
Claridez da vida: o Verão! Mas o frio me leva de novo ao inerte; a parada pra
sempre da última estação era o que eu tinha, era o fim e tudo escureceu.
Comecei a tremer e esqueci de mim; parecia agora, que estava correndo em câmara
lenta soltando fiapos do frio que vestia meu corpo. Para mim era o final. Nada
podia fazer, totalmente inerte, naquela plataforma em alta velocidade. De repente,
senti algo grudar no lado direito do meu nariz, achei esquisito, passei a mão e
segurei – era a primeira coisa palpável que aparecia na minha vida dentro do
túnel de gelo – uma pétala de uma flor, claro que era de uma flor, uma pétala
matizada de azul e branco... Comecei a abrir meus olhos e ver o túnel passar em
alta velocidade, mudando lentamente de cor. A imagem era outra, eram várias
cores começando a aparecer e ficar denso, sobre a rapidez colorindo tudo. Minha
vida tomava outro rumo, aquele de frio e tristeza ia ficando rápido para trás.
Percebi que eram flores, folhas, rosas que a partir daquele momento iam reger
minha vida; era a estação da Primavera, que ia florir e perfumar meu caminho.
Não sentia mais frio, só o pulsar do coração empurrando o sangue pra esquentar
meu corpo, olhava e via, pela primeira vez, aquele túnel todo colorido, poxa,
sentia a força do pulsar da vida em cada músculo sob a minha pele; sentia o ar
perfumado e cheiroso da existência adentrar meus pulmões, oxigenar meu sangue,
sentir a oportunidade de uma nova vida, de viver todas as estações pra depois voltar
a vivê-las de novo; como um sol brilhando no amanhecer da vida.
Comecei
a ver mudanças nas cores por entre as folhas e pétalas, via uma claridade
penetrando e iluminando algumas partes, clareando mais ainda o lugar. Me virei
e olhei para o final do túnel; lá estava a luz brilhante da próxima estação: a
luz da minha vida, que acendia um sol no meu rosto e apagava a tristeza nele um
dia contida; enfim, tinha ali a oportunidade de viver uma nova vida, passando
muitas vezes por todas estações.
A
plataforma que estava agora coberta com folhas, com pétalas coloridas das
flores aquecidas pelo sol, foi diminuindo a velocidade, foi parando e uma
multidão com roupas coloridas, me davam as boas-vindas, me aplaudindo, cantando
uma música que nunca vou esquecer, e que dizia em seu refrão: “a esperança e a
fé nunca te abandonarão/se estiverem sempre em teu coração”... Acordei sem
febre, era um outro dia, fui abrindo os olhos, ouvindo, ainda ao longe, a
canção... Depois, barulho de vozes no ambiente, era da minha família, todos
sorridentes com meu estado de saúde. Ainda sem saber muito das coisas,
perguntei que estação do ano era aquela. Alguém respondeu: “acho que é
outono...” Só sei o que aconteceu no sonho e de tudo o que passei nele; fora
dele fiquei à mercê de alguma luz que não se apagou dentro de mim e dos
cuidados da minha família...: “a esperança e a fé nunca te abandonarão/se
estiverem sempre no teu coração...”
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
A poesia é necessária?
Testamento
Alda
Lara (1930-1962)
À prostituta
mais nova
do bairro
mais velho e escuro,
deixo os
meus brincos, lavrados
em cristal,
límpido e puro...
E àquela
virgem esquecida
rapariga sem
ternura,
sonhando
algures uma lenda,
deixo o meu
vestido branco,
o meu
vestido de noiva,
todo tecido
de renda...
Este meu
rosário antigo
ofereço-o
àquele amigo
que não
acredita em Deus...
E os livros,
rosários meus
das contas
de outro sofrer,
são para os
homens humildes,
que nunca
souberam ler.
Quanto aos
meus poemas loucos,
esses, que
são de dor
sincera e
desordenada...
esses, que
são de esperança,
desesperada
mas firme,
deixo-os a
ti, meu amor...
Para que, na
paz da hora,
em que a
minha alma venha
beijar de
longe os teus olhos,
vás por essa
noite fora...
com passos
feitos de lua,
oferecê-los
às crianças
que
encontrares em cada rua...
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021
Ensaios do escritor Zemaria Pinto revelam sutilidades da história como metáfora
Wilson Nogueira
Em A
história como metáfora e outros ensaios amorosos (edição da AAL), o poeta e
ensaísta Zemaria Pinto reúne sete artistas-pensadores entrelaçados pelos fios
do imaginário e da história do mundo criado e recriado permanentemente.
Suas
escolhas, em um primeiro momento, parecem até absurdas, afinal suas reflexões
abraçam períodos longínquos entre si, para dizer, finalmente, que o pensamento
criativo marca um momento (artístico, político, econômico, religioso,
filosófico etc.) dominante, assim como expressa os seus desvios.
É
espantoso descobrir, pela pesquisa e pela reflexão de Zemaria Pinto, que
Augusto dos Anjos (1884-1914), Machado de Assis (1839-1908), Jorge Amado
(1912-2001), Glauber Rocha (1939-1981), Gaspar de Carvajal (1500-1584),
Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875) e Manoel Nunes Pereira (1893-1985)
articulam-se no modo de imaginar e criar realidades que se confrontam com as
realidades em que viveram.
Não
escapará ao leitor atento duas perguntas a respeito desta obra.
Primeiro, o que revelará este título paradoxal que se refere à história como metáfora?
De
imediato, pensamos na história como um ramo da ciência, um conhecimento com
base na racionalidade; e a metáfora como expressão que designa relação de
semelhança com o objeto ao qual se refere um enunciado metafórico.
Segundo,
o que guarda o subtítulo “E outros ensaios amorosos”?
Este
aparece justificado, em resumo, para o leitor mais apressado, no texto-destaque
da contracapa. Mas não é só isso, há muitos mais revelações entre estas 214
páginas.
O certo
é que o leitor não passará impune por esses diabinhos apresentados pelo
autor, logo na capa. Bom sinal, porque o título de um livro, segundo o poeta
Thiago de Mello, deve afetar o leitor pela beleza e pelo prenúncio de conteúdo
instigante.
Quem
ensina isso é o autor de Silêncio e palavra e Faz escuro, mas eu
canto.
E
Zemaria é um poeta e leva a poesia para os seus ensaios, como estilo e
fundamento para a compreensão dos seus desassossegos intelectuais. Se houvesse
a possibilidade de rotular a sua escrita, seria fácil colocá-la no cânone da
prosa poética. Mas, há nesse escritor uma habilidade com as palavras que
ultrapassa as fronteiras dos gêneros literários.
Talvez
– não quero espoilar – seja a poesia o caminho comum percorrido pelos
sujeitos que ele estudou que os une em perspectiva tão distante e tão próximos
ao mesmo tempo. Há um elo que os colocam juntos e misturados, independentemente
do tempo e do espaço. Seria o fator criativo este elo?
Penso
que este livro, para o autor, foi uma ousadia realizada com competência e
qualidade, e, para o leitor, a possibilidade de uma viagem guiada pela criação
libertária até a história passada e recente da América Latina e das suas
relações com o mundo e com o universo.
Estou
muito satisfeito em conhecer melhor o meu ídolo da poesia, Augusto dos Anjos,
com a sua poesia que penetra fundo na alma humana, que incomoda pela revelação
do real e, também, pela sobreposição de enigmas em palavras, em versos.
Não
menos satisfeito estou com a exposição crítica de Terra em transe, a
história como metáfora, capítulo no qual o autor tenta resumir uma
definição para o título da obra. É uma boa dica, mas não é o suficiente, esse
enigma só vai ser descoberto com a leitura dos sete ensaios.
“[Em Terra
em transe] O expressionismo confunde-se com o próprio conceito de
modernismo, constituindo-se antes como uma visão de mundo que como um movimento
estético. É nesse sentido que Terra em transe é um filme expressionista:
antinaturalista, antiburguês, vanguardista, declamatório; utilizando
personagens deformadas; buscando a renovação a partir da denúncia do absurdo e
do grotesco das relações humanas – pessoais e políticas”, infere o autor.
Assim
pode ser compreendida, lida hoje a contrapelo, a escrita fundadora do rio
Amazonas de Gaspar de Carvajal, cravada nas dualidades devaneio ou verdade,
mito ou mistificação…
Está
sugerido, também, que Carvajal elabora a escrita seminal da história do rio
Amazonas, da Amazônia, do Brasil e da América Latina, devidamente vinculadas
com as narrativas posteriores.
Afinal,
os escritos de Colombo, assim como os de Carvajal, estavam assentados em um quê
de “realismo mágico” (definição de Gabriel García Márquez para Diários da
Descoberta da América, de Cristóvão Colombo), “onde tudo é e não é”, como
bem acentua Paes Loureiro no subtítulo de Andura.
No
prefácio, o crítico de literatura e arte Tenório Telles faz uma apresentação
detalhada da estruturação da obra por meio dos caminhos percorridos por Zemaria
Pinto, ressaltando os porquês das escolhas dos seus sujeitos de pesquisa. Este
texto é propício à inspiração de novas pesquisas a respeito do tema.
Ainda
nesse contexto, sugiro que o leitor dê uma conferida na bibliografia utilizada
por Zemaria para fundamentar este História como metáfora…
Por fim, uma boa leitura!
Publicado no site Amazon Amazônia: https://www.amazonamazonia.com.br/
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Vá se vacinar, Sputnikova
Pedro Lucas Lindoso
Preocupado
com tia Idalina, mandei um link do Google Meet para conversar on-line com
titia. Perguntei-lhe se já tinha se vacinado. Ela me disse que estava na
próxima etapa. Estavam vacinando os maiores de 80 anos. Ela insiste em dizer
que tem só setenta. Abomina a palavra idosa. Gasta sempre seu francês e se diz
somente um pouquinho “agée”. Não é verdade.
Idalina
já estava na faculdade quando os russos lançaram o Sputnik, em 1957. Idalina
tem sim, mais de oitenta. É ela mesma
quem conta essa história:
– O
Sputnik foi o primeiro satélite artificial da Terra. Foi lançado pela União
Soviética em outubro de 1957. Jamais me esqueci disso. Namorava um broto legal
comunista.
Quem
ainda vivo e com menos de oitenta anos chama ex-namorado de broto legal?
E
continuou dizendo que o satélite orbitou a Terra por seis meses antes de cair.
Que o tal “broto legal” sugeriu que ela estudasse russo pois iriam se casar e
morar na União Soviética, como se chamava a Rússia antes da queda do Muro de
Berlim.
Nas
primeiras aulas de russo aprendeu que os sobrenomes na língua russa também têm
formas femininas que terminam com “ova”, finalizados em “a”, assim como a
maioria dos substantivos femininos.
Concluiu
que se fosse morar na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas seria chamada
de Santosova. O sobrenome do “broto legal” comunista de Idalina era Santos.
Idalina não gostou. Desistiu das aulas de russo e do tal broto.
Se pelo
menos pudéssemos adotar o codinome dele – Sputnik – eu seria conhecida como
Sputnikova. Mais apropriado, segundo titia. Na clandestinidade, o rapaz era
conhecido como Sputnik.
Disse a
ela que não diria a ninguém que ela é da época em que Sputnik era somente
satélite e não vacina.
– Pois
é, retrucou. Os russos são “experts” em vacinas. A tal Sputnik é uma das
melhores produzidas contra esse terrível corona. O Brasil deveria ter feito
como a Argentina. Comprado a vacina dos russos. Mas parece que ainda vão
comprá-la. Eu vou esperar a chegada das sputniks, as vacinas russas. Elas são
bem melhores que essas que estão aplicando no Brasil.
Eu
disse a titia para deixar de pavulagem e ir já se vacinar. Esse vírus é letal e
perigoso para a terceira idade. Como ela gosta de trocadilhos, brinquei com
ela:
– Esperar uma ova. Vá se vacinar, Sputnikova.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 2/9
Zemaria Pinto
Enredo
A narrativa gira em torno dos habitantes do seringal Manixi, a mais de 3 mil quilômetros de Manaus, propriedade do francês Pierre Bataillon, que ali chegara em 1876. A região era habitada pelos índios Caxinauás e Numas, antípodas: estes, guerreiros, jamais aceitaram a presença do invasor, enquanto os primeiros se deixaram escravizar e, lentamente, dizimar. Culto e refinado, Coronel Baitaillon constrói um colosso arquitetônico no seringal, o Palácio Manixi, uma espécie de Xanadu tropical, delirante representação da opulência proporcionada pelo ganho fácil na exportação do látex. Sua esposa, Ifigênia Vellarde, era, assim como ele, descendente de linhagens nobres europeias. Vieram para o Amazonas porque a saúde de Bataillon pedia “climas quentes”. Os dois morrem em um naufrágio, no rio Juruá, em 1910. Pouco antes, intuindo a queda nos preços internacionais, o Coronel vendera o seringal a Antônio Ferreira, testa de ferro de um comendador de Manaus, que já havia comprado outras áreas adjacentes. O filho deles, Zequinha Bataillon, nascido a bordo do navio Adamastor, em 1890, quando sua mãe fugia de um surto epidêmico de malária, tem como maiores amigos dois caxinauás: Paxiúba, o Mulo, espécie de guarda-costas e pau-pra-toda-obra, e Maria, pouco mais velha que ele, “segunda mãe e primeira amante” (p. 77). Educado em Paris, Zequinha retorna em 1908, passando, com os dois amigos, a “viver no exótico, pela singularidade da vida afastada dos costumes e expectativas gerais” (p. 86). Quatro anos depois, dá-se o desaparecimento misterioso de Zequinha, que vai pontuar toda a narrativa.
Capa da 2a. edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. |
O mais conhecido
romance sobre o período, A selva (1930), de Ferreira de Castro, de cunho
naturalista tardio, situa sua ação no período 1919-1921 e esta é, entre tantas
outras, sua maior falha, porque o pretenso realismo da ficção se anula quando
cotejada com a realidade: à época, a economia baseada no extrativismo do látex já
estava reduzida a pó.[1]
A partir de 1912,
dá-se uma guinada na narrativa, conduzida por Ribamar de Sousa, que até então
mantivera-se discreto, semioculto diante dos fatos contados, assumindo o
protagonismo da trama, que passa a ter como moldura e fundo não mais a selva
amazônica, mas a deslumbrante Manaus, a Paris dos trópicos, que, por reflexo do
que acontecia nos seringais, afundava-se em ruínas – não há antonímia digna
para deslumbrante.
As peripécias
narradas por Ribamar envolvem desde expedições em busca de Zequinha Bataillon
até a revelação sobre um tesouro desaparecido do palácio Manixi. De humilde
imigrante a senador da república, “uma das fortunas mais sólidas de Manaus” (p.
143), Ribamar conduz o leitor ao desfecho da trama, valendo-se de uma narrativa
feérica, em que não falta nem mesmo um paradoxo temporal.
Assista à
palestra completa, no YouTube, clicando aqui.
[1]
Ver PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade.
Manaus: Valer, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1p2fNt5_aYezgM-dCTsinsabVSg-ry2Br/view
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Manaus, amor e memória DII
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Bolero's Bar 27
Noche de ronda
Zemaria Pinto
É mais
uma história de amor que termina. Aliás, as histórias de amor não terminam:
elas implodem. E nós implodimos juntos e nos despedaçamos, num antirritual
demoníaco. Não, essa não sou eu falando d’Ela. Não chegamos ao estágio do ódio.
No fundo, bem lá no fundo, eu espero que ela volte. Nos meus devaneios mais
loucos, nas madrugadas da minha varanda, eu vejo a lua passando e sei que em
algum lugar ela está olhando a lua e pensando em nossas madrugadas na varanda.
Hoje, a lua contempla apenas o negrume da minha solidão, a sombra do desespero
que dá esse sentido provisório à minha vida.
Noche de
Ronda (1937), Maria
Teresa Lara (México, 1904-1984). Bolero.
No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
A poesia é necessária?
Descobrimento
Noémia de Sousa (1926-2002)
(Ao J. Mendes)
Quando a tua mão macia e serena de branco
se estendeu fraternalmente para mim
e através de Índicos preconceitos
apertou com carinho meus dedos mulatos enclavinhados;
quando teus olhos inchados de compreensão
pousaram no mapa doloroso do meu rosto de África;
quando a piroga do teu amor se fez ao mar
e veio aportar ao meu peito ensanguentado e céptico;
ah, quando a tua voz doce e fresca como um lanho
me trouxe a bandeira branca da palavra “IRMÔ,
é que eu senti, profunda como um selo em brasa
verrumando a carne,
a força terrível e única do nosso abraço fraterno,
a inquebrantável cadeia das nossas mãos enfim juntas,
a indestrutível resistência da muralha erguida
por nossas maravilhosas juventudes unidas.
Ah, amigo, quando a tua mão certa
e serena de branco
procurou o desespero da minha mão sem rumo…
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
Estudos de Literatura do Amazonas
A primeira tentativa de se escrever algo
próximo a uma história da literatura amazonense data de 1934, autoria de Anísio
Jobim, cuja memória dissociou-se da literatura, vinculando-se à barbárie das
revoltas acontecidas no complexo prisional que leva o seu nome. A
Intelectualidade no Extremo Norte, subintitulado “Contribuições para a História
da Literatura no Amazonas”, é um levantamento dos nomes que deram algum lustro,
não à literatura, mas a esse conceito vago e impreciso do que é ser
“intelectual”, abrangendo cerca de 180 anos – desde a segunda metade do século
18 até a década de 1930. A conclusão a que o historiador chega é de que “não
temos, nem podemos ter, por força das condições do meio, uma literatura
regional”. Depois dele, o jovem Djalma Batista, outro que se afastou da
literatura de invenção, publicou Letras da Amazônia (1938), uma síntese
abrangente, se me permitem o paradoxo, que começa com Carvajal, no século 16, e
chega até o mesmo ponto de Jobim. De lá para cá, mais de 80 anos passados,
contamos dois títulos de Mário Ypiranga Monteiro, Fases e Fatos
da literatura amazonense (anos 1970), além da fragmentária mas indispensável contribuição
de Jorge Tufic (anos 1980) e mais meia dúzia de antologias – uma forma de,
definindo um cânone, escrever a história.
Agora temos, com 20 anos de atraso, este Estudos
de Literatura do Amazonas, escrito a quatro mãos por Antônio Paulo Graça e
Tenório Telles. O título mereceria um exame à parte: por que estudos e não
história? Por que literatura do Amazonas e não o elástico literatura no
Amazonas ou mesmo o soberbo literatura amazonense? Todas essas perguntas estão
respondidas no texto, claro. E há muitas outras respostas a descobrir, antes da
revelação final: existe uma literatura amazonense? Assim como a história se
constrói a partir da própria história, sem nunca se dar por acabada, a
literatura se transforma sob o olhar crítico de leitores especializados, observando-se
dois valores essenciais: o estético e o histórico. Com isso, algumas obras vão
para os arquivos do tempo, enquanto outras são chamadas para a vitrine da
glória – efêmera, muitas vezes, pois a historiografia literária é sobretudo
reflexo e reflexão de seu próprio tempo.
Paulo Graça, o amigo Paulinho, era um
polemista aguerrido – sem perder a ternura jamais. Imagino o trabalho do amigo Tenório
com o seu clarinete mozartiano harmonizando a dissonância blues da guitarra
graciana... Pois é dessa parceria – inusitada, se não fosse ligada por laços de
profunda amizade e sincero amor (ou vice-versa) – é dessa parceria que nasce
uma obra marcante para a história e a literatura do Amazonas.
Agora, sim, com a trilha sonora perfeita,
podemos afirmar, finalmente: a história da literatura amazonense começa a ser
escrita.
Zemaria Pinto
terça-feira, 9 de fevereiro de 2021
Máscara negra
Pedro Lucas Lindoso
Em
fevereiro tem carnaval. Desde que me entendo por gente. E quantas vezes ouvi
dizer que o ano aqui no Brasil só começa mesmo depois do Carnaval. Para mim,
quando menino, isso era uma premissa realmente verdadeira. O ano escolar só
começava depois do Carnaval. Tínhamos férias de 1 de dezembro até 28 de
fevereiro. As aulas só começavam em março.
Jovem
adulto e já casado, vivi o tal carnaval fora de época. Em Brasília havia a Micarecandanga.
O evento Micarecandanga está na memória afetiva dos brasilienses. Inclusive e principalmente dos meus filhos.
Lembro-me
de levá-los a alguns shows, com a participação dos artistas que fizeram a
história da axé music. Os nossos filhos gostavam muito. Shows animados com Luiz
Caldas, Chiclete com Banana, Asa de Águia e a Banda Eva, que à época tinha como
vocalista Ivete Sangalo.
Esse
evento era em agosto. Mas as músicas predominavam na época de carnaval. Nos
bailes daqueles anos tocava-se muito o axé music. Mas nunca se deixava de ouvir
as marchinhas tradicionais, como Máscara negra, e tantas outras.
Quando
menino, aqui em Manaus, usávamos fantasias para os bailes infantis do Rio Negro
e Ideal. Fui chinês, pirata, cabo Rust e até um tirolês caboquinho. Tenho
muitas lembranças de divertidos carnavais de minha adolescência e jovem adulto.
Em especial, um carnaval de um inesquecível verão, no Rio de Janeiro. Formou-se
animado grupo organizado por duas primas queridas. Fomos a um eletrizante baile
de carnaval.
É
difícil acreditar que não teremos carnaval esse ano. Essa pandemia nos tem
privado de muita coisa e causado a perda terrível de muitos. No meio de tanta
tristeza, fico buscando algo de bom, algo de positivo. Não suporto mais tanta
notícia triste. Espero que em breve a gente possa cantar novamente: “Quanto
riso, oh, quanta alegria!”
E
também que o Arlequim possa chorar pelo amor da Colombina no meio da multidão.
E todos possam novamente se abraçar e se beijar, sem constrangimentos, sem
contaminação, sem medo de pegar esse horrível vírus. E que as pessoas possam se
beijar sempre. Sem levar a mal. Não só porque é carnaval. Mas porque o vírus se
foi. E todos voltarão a cantar: “Quanto riso, oh, quanta alegria! Mais de mil
palhaços no salão.”
Quero
voltar a cantar a Máscara negra. Mas de preferência, sem máscara!
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021
Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 1/9
Zemaria Pinto
Como trabalho, a literatura faz uma
transformação da realidade. Transformação da história. A história é um processo
unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o
homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.
Rogel Samuel[1]
O carnaval é a segunda vida do povo, baseada
no princípio do riso. É a sua vida festiva.
Mikhail Bakhtin[2]
Concentração: muito siso e pouco riso
O ciclo econômico
da borracha foi curto, mas muito rentável, para as contas do decaído império e
da nascente república. No âmbito literário, entretanto, apresenta um
considerável déficit: nada além de alguns contos, meia dúzia de romances, uma
ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado,
destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da
Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que
antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história (1909) sob o
subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos erradios, sob o
mesmo título previamente escolhido pelo autor.[3] O
poema referido é A Uiara (1922/2007), de Octavio Sarmento, em que, embora
o motivo seja moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a
forma ainda vacila num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do
látex (1976), peça de Márcio Souza, homenageada intertextualmente em nosso
título, tem o vaudeville como forma e o humor carnavalizado como fim. Os
contos e a quase totalidade dos romances são de extração naturalista. As
exceções são Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (1969), de Paulo
Jacob, exarado numa linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas
afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o
execrável “regionalismo”; e O amante das amazonas, de Rogel Samuel,
sobre o qual iremos refletir.
Rogel Samuel, professor-doutor
aposentado pela UFRJ, tem vários livros publicados, nos gêneros poesia, romance
e ensaio, onde sobressaem-se os livros sobre Teoria Literária. Em sintonia com
as novas mídias, Samuel colabora regularmente com portais de literatura, como Entretextos
e Blocos, além de ter o seu próprio sítio.
Publicado em
1992, dividido em vinte e três capítulos, O amante das amazonas é
anunciado pelo autor como um livro de ficção baseado em fatos reais, incluindo
o depoimento de testemunhas e relatos de seu pai, que navegou pela Amazônia por
40 anos e foi o seu guia no conhecimento da floresta, a bordo do Adamastor.[4] Para
esta análise, vamos nos ater à definição do narrador, “paródia de romance
histórico” (p. 16),[5]
tomando como parâmetro investigativo não o conceito backthiniano de
carnavalização, mas o próprio carnaval brasileiro, buscando conexões entre a
estrutura da obra e elementos do carnaval, identificando o caráter polifônico do
romance, obtido por intermédio da paródia, da alegoria e da metalinguagem, e
pelo dialogismo intertextual estabelecido na dicotomia ficção-história, numa
fusão do sublime com o grotesco, do sagrado com o profano e do sério com o
cômico.
Mas não se iluda,
esta é apenas a apresentação de uma obra literária, importante e singular, sem
pretensões epistemológicas ou hermenêuticas.
O texto Folia no seringal... será postado, em nove partes, toda segunda-feira.
Assista à
palestra completa, no YouTube, clicando aqui.
[1]
“Arte e sociedade” (p. 10). In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria
Literária. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
[2]
BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São
Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 2008. p. 7.
[3]
Um paraíso perdido tem pelo menos três edições diferentes. A primeira,
de 1976, organizada por Hildon Rocha; a segunda, de 1986, organizada por
Leandro Tocantins; e a terceira, sem crédito de organização, publicada em 2003,
pela Editora Valer, Governo do Amazonas e Editora da UFAM.
[4]
Informações constantes da orelha da segunda edição do livro estudado.
[5]
Todas as citações do livro analisado referem-se a SAMUEL, Rogel. O amante
das amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.