domingo, 30 de julho de 2023
sexta-feira, 28 de julho de 2023
Psicopatologia da composição de Música para surdos 1/6
Zemaria Pinto
Gênese. Não sei exatamente o que me move a escrever este texto. Talvez
responder perguntas. Talvez formular perguntas cujas respostas eu desconheço.
Só sei que preciso escrevê-lo (é uma ideia que nasceu junto com o livro)[1] e o
farei pensando nos críticos que não tenho e nos leitores que não terei.
Começo por
escancarar uma ideia que me é particularmente cara: o trabalho poético é
resultante de um minucioso planejamento, consciente ou não, cuja execução pode
levar toda uma vida. Uma obra aparentemente fragmentada como a de Drummond tem
recorrências que se modificam ao longo dos anos, formando vários painéis das
áreas de interesse do poeta. Os grandes poemas da humanidade, como Eneida, A Divina Comédia ou Os
Lusíadas consumiram largos anos das vidas de seus autores, não tanto pela
sua extensão, mas, principalmente, pela complexidade.
A minha
minguada história é a seguinte: Corpoenigma,
meu primeiro livro, publicado em 1994, foi inteiramente planejado e concluído
em preguiçosos 12 meses. Eram 45 tercetos, divididos em 15 seções, cada uma com
3 poemas. Fragmentos de Silêncio,
publicado em 1995, por outro lado, é um caos ao qual procurei dar um mínimo de
ordem: são 49 poemas, escritos entre 1972 e 1995, divididos em 7 seções, com sete
poemas cada uma. Mas se é claro que dentro das seções os poemas se inter-relacionavam,
em todo o livro, a começar pela concepção gráfica da capa, havia um tema único:
a passagem do tempo. Infelizmente, dos poucos leitores que tive, pouquíssimos
perceberam isso, como o Hugo Pontes e o Rogério Salgado, de Minas, e o sempre
Uilcon Pereira, de São Paulo.
Mais três
anos são passados e surge este Música
Para Surdos. É sobre ele que quero falar. Sua concepção. Sua feitura. Não
do livro, que é diverso, mas do poema. Quero mostrar que não tive qualquer
acesso de inspiração, nem faniquito espiritual, nem frenesi sexual, nem nada.
Mesmo bons leitores, confundem o eu lírico com o autor – e toda poesia lírica
se torna, sob esse prisma, mero veículo para as frustrações do autor. Espero
que este texto sirva para eliminar essa visão medíocre – pelo menos, da minha
poesia. Cartesianamente, montei meu
poema como se fora uma equação, ou uma estação do metrô de Londres, com todas
as minúcias cronológicas de chegadas e partidas.
Tudo
começou com a procura de definições para um novo poema de longa extensão. No Corpoenigma elegi a forma haicai. Tudo
bem, neste novo projeto não haveria haicai. Mas assim como em Corpoenigma, eu queria continuar
seguindo o conselho de Poe:
O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de
alguns curtos; isto é, de breves efeitos poéticos.[2]
A
concepção de Poe se encaixa com perfeição em meu dia a dia atribulado, onde o
banal cotidiano não deixa muito tempo para a criação. Surgiu, então,
naturalmente, a ideia de usar o soneto, a mais popular e por isso mesmo a mais
desgastada forma poética ocidental. Seria um desafio. Mas não se faz arte sem
desafios.
Estabelecida
a forma para, multiplicada, compor o meu poema, o próximo passo seria eleger um
assunto. Isso não foi difícil. O soneto é uma forma essencialmente lírica e o
lírico é a revelação do eu. Uma autobiografia poética, então? Não, apenas um
mergulho tímido pela superfície desses eus dilacerados – a bênção Mário de
Andrade, a bênção Fernando Pessoa – que habitam o poeta, quem ou o que quer que
ele seja.
De posse
da forma e do assunto, precisava estabelecer a extensão do poema. Ou seja, numa
linguagem mais burocrática, precisava estabelecer os limites de atuação, para
não ir nem tanto além nem muito aquém. Palavra puxa palavra, soneto lembra
sonata e sonata tem 3 ou 4 movimentos. Ainda sem ter a extensão, tinha um
título provisório, Sonata Selvagem,
que subsistiria até a escritura do poema “exercício nº 17”, como se verá
adiante.
Alguns dos
meus leitores poderiam fazer uma relação com Quatro Movimentos, de Luiz Bacellar, pelo menos em relação à
estrutura: quatro movimentos de uma “Sonata em Si Bemol Menor para Quarteto de
Sopro”, nome adotado a posteriori,
uma vez que na primeira edição do poema, ele é parte – dissonante – de Frauta de Barro, com o título “Quatro
Epístolas”.[3]
Também publicado como Quatuor e Quarteto, trata-se de um tour de force de interpretação
desafiadora, que não mereceu até hoje, que eu conheça, uma leitura aprofundada.
Fico a devê-la, como um compromisso com o mestre e amigo. Mas não havia nenhuma
relação intencional.
Sonhei,
então com a minha música. Ela começava lentamente, um pouco melancólica, mas
logo se tornava pulsante, denotando alegria e segurança. O segundo movimento
era triste, depressivo. No terceiro movimento, a alegria retorna, mas já num
ambiente modificado, mágico. O último movimento é uma festa de sons, vibrante, desafiador.
Era preciso decodificar isso em palavras.
(Este
ensaio será postado em seis partes, todas as sextas-feiras, até 1° de setembro.)
quinta-feira, 27 de julho de 2023
A poesia é necessária?
Memorial
Simão Pessoa
Sou da geração mimeógrafo:
Fiz da revolta o sextante
Na cartografia do ódio
Sou da geração neo-vazia:
Minha ética é o niilismo
No desprezo à ideologia
Sou da geração “mais embaixo”:
Fiz de defesa a chacota
E de armadura o sarcasmo
Sou da geração AI-5:
Já levei tanta porrada
Que a alma perdeu o vinco
quarta-feira, 26 de julho de 2023
terça-feira, 25 de julho de 2023
Esparta ou Atenas?
Pedro Lucas Lindoso
Na
Grécia Antiga havia duas importantes cidades-estados: Esparta e Atenas. A
diversidade cultural, política e educacional entre elas nos oferece uma
concepção de mundo contrastante. Os papéis desempenhados pelos seus habitantes
e as instituições em geral, são, às vezes, divergentes e antagônicas. Podem nos
levar a compreender essa polaridade que existe no Brasil de nossos dias.
A
política em Atenas era mais democrática. Em termos, pois, mesmo sendo um
governo “do povo”, quem de fato governava era uma parcela bem pequena da
população. Já em Esparta, as questões políticas eram de obrigação de um
conjunto bem menor de homens. Eram idosos e poderosos.
As
mulheres espartanas recebiam uma educação rigorosa tanto física quanto
psicológica. Disputavam competições e administravam o patrimônio da família. Em
Atenas a vida das mulheres era restrita ao mundo do lar. As atenienses eram
ensinadas a ser dóceis e submissas.
Na área
da Educação, as duas cidades gregas apresentavam diferenças marcantes. Em
Atenas, as escolas e instituições se
preocupavam em desenvolver um equilíbrio entre mente e corpo. A educação
ateniense buscava conciliar a saúde física e o debate filosófico. Já em
Esparta, que tinha uma forte e intensa tradição militar, privilegiava-se o
treinamento do corpo. Os jovens espartanos aprendiam a escrever somente o
necessário. Dessa maneira, o cidadão espartano deveria ser forte e resistente.
O homem de Esparta era preparado primordialmente para a guerra.
Minha
professora de História Geral, após nos incentivar a pesquisar e conhecer bem
essas cidades-estados montou um debate entre seus alunos. Devíamos escolher em
qual sociedade preferiríamos viver. Alguns, de imediato fizeram suas opções
entre Esparta e Atenas. Outros ficaram em dúvida. Quase houve empate. Mas os
espartanos ganharam o debate. O Brasil encontrava-se sob um regime de governo
militar.
Escolher
entre querer viver numa sociedade mais espartana ou mais ateniense pode ser uma
escolha de vida. O importante é respeitar a escolha um do outro. Os que
escolhem estudar numa escola cívico-militar preferiria ter vivido em Esparta.
Os que acham a Filosofia imprescindível iriam preferir Atenas.
E você
leitor: Esparta ou Atenas?
domingo, 23 de julho de 2023
quinta-feira, 20 de julho de 2023
A poesia é necessária?
14 de março de 2018
Dori Carvalho
Quem comemora a morte,
também apertou o gatilho.
Quem justifica o assassinato,
também apertou o gatilho.
Quem ofende a vítima,
também apertou o gatilho.
Quem chama de defensora de bandido,
também apertou o gatilho.
Quem diz que bebeu do próprio veneno,
também apertou o gatilho.
Quem manda ir pra Cuba,
também apertou o gatilho.
Quem esbraveja volta pra África,
também apertou o gatilho.
Quem vomita preta nojenta,
também apertou o gatilho.
Quem chama de vaca vagabunda,
também apertou o gatilho.
Quem xinga de esquerdopata,
também apertou o gatilho.
Quem fala mimimi e vitimização,
também apertou o gatilho.
Quem vocifera desumanos direitos,
também apertou o gatilho.
Quem se esconde e silencia,
também apertou o gatilho.
terça-feira, 18 de julho de 2023
Escritores
Pedro Lucas Lindoso
Quem
somos? Onde estamos? O que fazemos? Parafraseando o bordão que inicia o Globo
Repórter. Entretanto, são perguntas que nos fazem constantemente. Outra
bastante frequente é sobre inspiração. Aquilo que motiva escritores e poetas, a
tão propalada inspiração, é tão variável quanto os assuntos que eles escolhem
para escrever. Nem todos se preocupam em criar uma grande obra de arte. A
grande maioria quer mostrar ao mundo aquilo que sentem, que viveram e que acham
relevante.
Dia 25
de julho comemora-se o Dia do Escritor. No dia 6 de julho o Vereador William
Alemão adiantou-se, até por uma questão de agenda e recessos, promovendo a
Homenagem ao Dia do Escritor, na Câmara Municipal de Manaus. A propositura foi
importante na medida em que muitos escritores querem e precisam ter
visibilidade perante a sociedade de Manaus.
Uma
professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília (UnB) me disse
que foi feita uma pesquisa na própria UnB sobre a literatura nacional. Segundo
a docente, o resultado é desanimador. O fato é que as grandes editoras seguem
publicando obras de escritores brasileiros com o mesmo perfil há anos. A
pesquisa teve como base livros de escritores brasileiros lançados entre 1965 e
2014. Mais de 70% deles foram escritos por homens, 90% são brancos e pelo menos
a metade veio do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Nós
aqui do Amazonas não somos poucos. Há várias associações que dão guarida a
escritores, conhecidos ou não. Uns são brilhantes, outros nem tanto. Todos
gostam de escrever e mostrar seus escritos ao mundo. Põem a cabeça para fora e
todos nós levamos pauladas de críticas. Algumas até desrespeitosas e cruéis. Há
os que recebem loas. Alguns poucos. Há os reconhecidos nacional e
internacionalmente. Graças a Deus.
Os que
se consideram escritores estão em todos os lugares. Nas salas de aula, nos
tribunais, nos hospitais, nas redações dos jornais, nas cozinhas e nas ruas. O
escritor é antes de tudo um leitor. Alguém que preza os livros. Pelo menos a
grande maioria, quero acreditar. E isso é ótimo. As secretarias de Educação,
tanto a municipal quanto a do Estado, promovem a Semana da Literatura
Amazonense. Isso é muito bom. A cidade tem várias associações e academias de
escritores. Numa rápida pesquisa verifiquei que há mais de mil escritores
associados a elas! A mais importante e tradicional é a nossa centenária AAL –
Academia Amazonense de Letras. Algumas tem limite de 40 vagas nos moldes da ABL
– Academia Brasileira de Letras. A maioria são associações e clubes literários
de portas abertas aos escritores, sem restrições. Jovem escritor: procure um clube literário.
Escreva e seja feliz. Parabéns a todos os escritores.
domingo, 16 de julho de 2023
sexta-feira, 14 de julho de 2023
Antísthenes Pinto, inventor e artesão 4/4
Zemaria Pinto
VI
Adentremos agora no
território sombrio da prosa de ficção de Antísthenes Pinto. Guardem bem este
adjetivo: sombrio – ele qualifica com exatidão o mundo ficcional das novelas e
romances de Antísthenes. Não se trata de um juízo negativo de valor, mas de uma
metáfora – as sombras da prosa de ficção de Antísthenes vão se revelar, ao
final, as vésperas da luz.
Em 1965, com a publicação
de Chavascal, o autor envereda pela prosa de ficção. Chavascal
passa-se em um seringal, nas cercanias de Terra Clara. Não sei se devo falar em
realismo, em função das fortes tintas com que Antísthenes colore aquele painel.
Expressionismo, talvez, pois a
realidade é de tal forma realçada, quero dizer, exagerada, de forma
intencional, que pouco sobra de humanidade naqueles personagens: monstros
morais, deformados interiormente – novamente, Antísthenes, assim como na
poesia, não faz concessões. Chavascal é o tipo ideal daquilo a que os
críticos mais apressados costumam rotular de literatura regionalista. Mas o que
é mesmo literatura regionalista? Sempre me pareceu estranha essa denominação –
Alfredo Bosi, por exemplo, chama de regionalista tudo o que se opõe ao urbano:
do conjunto da obra de Guimarães Rosa a A
Madona de Cedro, do urbano Antônio Callado (BOSI, p. 426-428). A
brasilianista Luciana Stegagno Picchio, na sua História da Literatura
Brasileira, age da mesma forma (PICCHIO, p. 402-404). Mas, de modo geral,
regionalista é sinônimo de literatura fora do eixo daquilo que nós chamamos
mais atrás de “centros culturais mais avançados do país.” Diga-se que o termo
não está registrado nos dicionários especializados em literatura. Quanto aos
dicionários comuns, o Houaiss diz: “caráter do texto literário que se baseia em
costumes e tradições regionais, e que tem como uma de suas características o
uso de linguagens locais.” O Aurélio é mais conciso ainda: “caráter da
literatura que se baseia em costumes e tradições regionais.” Ou seja, não
fazendo distinção com o urbano, os dicionários comuns corroboram a ideia geral
– o que está fora do eixo é regionalista. Podemos mesmo dizer que existe um
forte preconceito, que nega aquele sábio conselho de Tolstói: “Escreve sobre
tua aldeia e estarás escrevendo sobre o mundo.” Uma novela de Tolstói, uma peça
de Tchekhov ou um romance de Dostoievski são universais, mesmo que se passem
numa minúscula aldeia perdida da Sibéria. Por que então um conto amazonense
será sempre regionalista?
Terra firme, publicado em 1970, é um romance de
linguagem peculiar: frases curtas, sempre buscando construir imagens na mente
do leitor, e personagens enfurecidos, assoberbados daquela ira inexplicável.
A poronga na testa, o saco de borracha nas costas, o terçado afiado na
mão. Madrugada parada. Lá um e outro esturro de onça. Chegou na primeira
seringueira com o coração em tempo de pular do peito. Em outras estradas o
corte tinha seguramente começado. Os dedos adormecidos em contato com as
tigelas no fundo do saco. Riscou a faca na casca da árvore e o leite desceu
cheiroso. Absorvia pensamentos infantis, mas tinha pressentimentos adultos,
ruins. Tirou a farinha do saco e comeu como se quisesse se empanzinar. Ouviu um
grito perto, respondeu. Não demorou chegar por trás dos arbustos o Marçal. Era
o seringueiro mais perto de sua estrada. Gosta dele, se bem não tivesse motivo
algum para gostar de alguém. (1982, p. 119)
Ainda há pouco, a
respeito dos personagens de Chavascal, falei em “monstros morais,
deformados interiormente”. Em Terra firme, passado num seringal,
embrutecidos pela solidão da floresta, os personagens são ainda mais extremados,
do ponto de vista ético, e têm consciência disso. Uma personagem, o velho Creto,
nos diz o seguinte:
Às vezes me inclino em acreditar no demônio só. Demônio deve de ter
manhas sem conta. Deus, na briga que lá eles tiveram, perdeu a luz e deve de
ter tido um fim, pois o bom não existe e quando se mostra é em manhazinha para
engabelar gente mortal. (1982, p. 30-31)
A ideia do bem não
existe; só o mal subsiste no mundo. O que me remete àquela personagem de
Dostoievski, autor muito querido para Antísthenes, que proclamou: “Se Deus não
existe, então tudo é permitido”.[1] Para
o velho Creto, Deus perdera a luz e perdera a luta do bem contra o mal. L.
Ruas, meu professor de filosofia, poeta brilhante, no ensaio “O mundo
ético-religioso de Terra firme”, faz uma análise irretocável da
trajetória daquelas personagens, relacionando sua descrença no bem à ausência
da cultura religiosa.
A vida na selva continua. O mundo continua e neste mundo e nesta selva
continuam as duas sementes de Dico e de Argina, as duas sementes do Homem e da
Mulher: Leocrísio e Jumas, o Bem e o Mal. Mas um Bem acovardado, fraco, incapaz
de vencer, incapaz de lutar, incapaz de triunfar; e um Mal forte, vigoroso,
triunfante, espalhando, por toda parte, o vento destruidor da dor, do ódio e da
morte. (...) Um mundo sem Deus, sem Fé, sem Esperança, e sem Caridade. Uma
selva embrutecida e embrutecedora, um mundo que é a própria Cidade do Demônio.
(RUAS, p. 154)
É uma tendência da
literatura que se produz na região assumir posições antagônicas: ora o
edenismo, que vislumbra no espaço amazônico o paraíso mítico-religioso,
popularizado na Bíblia, e que muitas vezes pauta-se unicamente pelo exotismo; ora
o infernismo, que, pelo contrário, revela o espaço opressor – impenetrável,
cruel, arquetípico. Esta é a opção de Antísthenes Pinto: o desencanto para com
o futuro daqueles que vegetam nos grotões amazônicos. Terra firme ganhou
o Prêmio Governo do Estado do Amazonas, de romance, em 1968.
A solidão e os anjos, de 1976, trata de um tema
inusitado: a perfuração de poços de petróleo na fictícia Nova Ofélia, pela não
menos fictícia Petromar. O petróleo seria a redenção daquela gente, mas a miudeza
dos acontecimentos, o dia a dia massacrante e a frustração pela busca que se
revela infrutífera, vai, aos poucos, triturando o que havia de razão naqueles
seres desesperançados. A gente estranha que introduz novos hábitos na cidade
deixa para trás toda uma história de vida e vai aos poucos se metamorfoseando –
e aos nativos – naqueles monstros morais a que já nos referimos. E mais uma
vez, ao concluir a leitura de um romance de Antísthenes Pinto, ficamos com aquela
sensação de culpa, aquela ideia de que é preciso não se entregar, é preciso
reagir contra o monstro totalitário – aquele que nos quer, a todos, dizendo
sempre sim! Há nos romances de Antísthenes, ao lado das cenas fortes de
violência – violência física, violência moral – uma mensagem implícita, que rejeita
qualquer maniqueísmo: o mal triunfará enquanto o bem for fraco. Aliás, sendo fraco,
o bem é apenas parte do mal. A solidão e os anjos ganhou o Prêmio
Prefeitura de Manaus de 1976, de melhor romance.
Várzea dos afogados, romance que chegou à terceira
edição, fala do drama de uma família e sua trajetória das barrancas do Amazonas
até a total decomposição na periferia de Manaus. Tanto do ponto de vista formal
como de conteúdo, Várzea dos afogados é uma síntese das narrativas
anteriores – onde o homem é sempre vencido pela natureza – inclusive a natureza
urbana. Com Várzea dos afogados, Antísthenes dava por concluída, no
plano da prosa de ficção, sua imersão no universo regional.
A novela seguinte, Os agachados,
de 1985, traz uma ambientação psicológica bem diversa daquela a que nos
acostumáramos nas narrativas anteriores: num clima de pesadelo, ele acompanha a
trajetória de Rinaldo e a rotina dos botequins de Manaus e seus frequentadores.
Novamente, Antísthenes sai do lugar-comum da narrativa realista-naturalista
experimentando com a linguagem, ousando e mantendo-se antenado com o que se fazia
(e se faz) de mais atual na literatura brasileira. Os agachados fora
agraciado com o Prêmio Suframa de Literatura de 1984.
Por fim, temos a novela Porão das almas, publicada em 1992, sem
dúvida, sua obra-prima narrativa. Um menino de 13 anos, Bores, habita o porão
de uma velha casa, decadente em todos os aspectos, em uma bucólica Manaus, hoje
apenas imaginada. O pequeno Bores, de saúde frágil, convive com os fantasmas
que lhe frequentam o sórdido porão, mas também com os fantasmas de carne e osso
que transitam à luz do dia pelos corredores sombrios do sobrado: as tias
infelizes, o pai, uma ruína moral, a mãe anulada, o irmão suicida, e a louca
Matilde, apaixonada por Bores. Explorando os limites do paradoxo, a tragédia
que se abate sobre a família de Bores representa a sua redenção. Fazendo uso da
técnica cinematográfica, a narrativa se estrutura em quadros que, quando não
fechados, completam-se ou explicam-se logo adiante. A simplicidade da trama,
aliada à mediocridade e ao ridículo que esmagam as personagens, lembra de
imediato dois gigantes, quase sempre esquecidos: o brasileiro Dionélio Machado
e o russo Anton Tchekhov. Mas são meros pontos de referência: Antísthenes Pinto
basta-se em si mesmo.
A palavra-chave que
sobressai nas narrativas analisadas é solidão.
A solidão que embrutece até aos limites da loucura os personagens de Chavascal
e Terra firme, isolados do mundo pela floresta inexpugnável e competindo
ensandecidamente entre si – uma metáfora para a própria vida urbana que se
desenha cotidianamente diante de nossos olhos. A solidão, já explícita desde o
título, dos personagens de A solidão e os anjos, que se movimentam entre
nada e coisa nenhuma, como diria Pessoa. A solidão do ribeirinho de Várzea
dos afogados, que migra para a capital e aqui vê-se absurdamente sozinho –
sem amparo nem mesmo da justiça, que deveria ser igual para todos. A solidão
dos deserdados, da novela Os agachados, que vagueiam pelas noites de
Manaus – e nada encontram além da própria sombra ou das sombras de seus
fantasmas. A solidão do pequeno Bores, de O porão das almas, que, a
despeito de viver num casarão cheio de gente, é um solitário que só se redime
na tragédia que destrói sua família, e da qual ele é o único sobrevivente.
Há em Antísthenes Pinto,
como observou o saudoso L. Ruas, a propósito de uma personagem de Terra firme,
uma opção ética – e estética, eu acrescentaria – pelo mal, pois é mostrando o mal
em toda a sua dimensão, sem subterfúgios, que nos incomodamos, que nos
reconhecemos e fazemos nossa opção. Um trabalho de artesão, esse – compor ao longo de três romances e três novelas um
entrançado de maldades e entregá-las ao julgamento de leitores que possam
discernir, separar – pois é esse, essencialmente, o trabalho do crítico. Georges Bataille, na série de ensaios que
publicou sob o título A literatura e o mal, afirma que
A literatura é comunicação. A comunicação impõe a lealdade: a
moral rigorosa, neste aspecto, é dada a partir de cumplicidades no conhecimento
do Mal, que estabelecem a comunicação intensa. A literatura não é inocente, e,
culpada, ela enfim deveria se confessar como tal. (p. 10)
A literatura consciente e
consequente, não alienada, tende a mostrar o mal de forma expressionista,
desmedida, para assim denunciá-lo: a poesia de Baudelaire e Augusto dos Anjos;
as narrativas de Kafka e Graciliano Ramos; o universo trágico de Nelson
Rodrigues e Plínio Marcos – são representantes dessa literatura que, centrada
no mal, repercutem com o sentido inverso, porque ao leitor é dada a
oportunidade da escolha. Antísthenes Pinto, deliberadamente, faz essa escolha:
sem nenhum maniqueísmo, ele nos conduz ao supremo maniqueísmo, não nos deixando
opção – sua “estética do mal” era um hino ao bem. Engraçado é que só agora percebi isso; quanta discussão
teríamos tido, se eu tivesse percebido essa “estética do Mal” no seu tempo
devido... Será que o bom Antísthenes concordaria com ela?
VII
Transitando das mais
radicais experiências poéticas da segunda metade do século XX até a ficção de
traço “regionalista”, Antísthenes Pinto deixou um rastro de luz a iluminar a
literatura amazonense. Esse legado, coligido em 18 livros, ainda está por
merecer a atenção de estudos mais profundos.
BIBLIOGRAFIA
Básica
PINTO, Antísthenes. A solidão e os
anjos. Manaus: Prefeitura Municipal, 1976.
______. Angústia
numeral. Manaus: Prefeitura
Municipal, 1976.
______. Chavascal. 2. ed. Manaus: Casa Editora
Madrugada, 1982.
______. Curvas
do tempo. Manaus:
Edição do Autor, 1984.
______. Os agachados. 3. ed.
Manaus: Casa Editora Madrugada, 1993.
______. Poesia
reunida. Manaus:
Edições Puxirum, 1987.
______. Porão
das almas. 2. ed.
Manaus: Valer, 1999.
______. Terra
firme. 2. ed.
Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.
______. Várzea
dos afogados.
Manaus: Edições Governo do Amazonas, 1981.
Geral
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução: Suely
Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BOSI, Alfredo. História concisa da
literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
CHEVALIER, Jean;
GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.
2. ed. Tradução: Vera da
Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Tradução: Enrico
Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1995.
GINSBERG,
Allen. Uivo. Tradução: Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1984.
PICCHIO, Luciana Stegagno. História
da literatura brasileira. Tradução: Pérola de Carvalho e Alice Kyoko. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
PIVA,
Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM,
1985.
POUND.
Ezra. ABC da literatura. 3. ed. Tradução: Augusto de Campos e José Paulo
Paes. São Paulo: Cultrix, 1977.
______. Poesia.
Tradução: Augusto de Campos et al. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade
de Brasília, 1983.
RUAS, L. O mundo ético-religioso de
Terra Firme. In: PINTO, Antísthenes. Terra
firme. 2. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.
TUFIC, Jorge (Org.). Pequena antologia Madrugada. Manaus:
Edições Madrugada, Sergio Cardoso & Cia, 1958.
[1] Muito difundida, Dostoievski jamais escreveu essa frase. Trata-se, entretanto, da paráfrase de uma passagem de Os irmãos Karamazov (1995, p.160), sintetizada na fórmula que se tornou famosa.
quinta-feira, 13 de julho de 2023
A poesia é necessária?
Poema
Alda
Lara (1930-1962)
Os
gritos perderam-se sem encontrar eco.
Os
punhos cerrados e os ódios calados
dividiram
os Homens,
que
se não reconheceram mais...
Mas
as lágrimas cavaram sulcos fundos
nos
olhos vazios de esperança,
e
os sulcos não se apagaram...
terça-feira, 11 de julho de 2023
Clareou
Pedro Lucas Lindoso
Desde
muito pequeno fui alertado que muitas pessoas passam fome neste mundo. Quando
deixava algo no prato diziam que não se podia estragar comida. Havia muita
gente sem comer e aquilo seria um absurdo.
De
fato, milhões de pessoas mundo afora encontram-se em situação de rua e passam
fome. Um país como os Estados Unidos não poderia ter o que eles chamam de
“homeless”.
E a
Inglaterra então? O príncipe de Gales, herdeiro do trono, tem como prioridade
em suas ações sociais as pessoas em situação de rua. O projeto foi batizado de
“Homewards”. O desejo de William é encontrar um teto para todas as pessoas em
situação de rua do Reino Unido. O objetivo é que as pessoas mais necessitadas
tenham um lugar para chamar de lar.
O herdeiro
do trono britânico tem como meta determinado período de anos. O trabalho é uma
retomada de ações humanitárias que sua mãe, a falecida princesa Diana,
realizava com pessoas em situação de rua.
No
Brasil, mais especificamente em São Paulo, a celebridade mais atuante neste
triste problema é o padre Júlio Lancellotti. Pela porta de sua paróquia em São
Paulo, dezenas de pessoas entram em busca de alimentos. O padre cuida para que
ninguém saia dali com a barriga vazia.
Em
Manaus, vários grupos distribuem alimentos para os sem-teto, principalmente no
centro da cidade. Os projetos são vários e os nomes são interessantes tais como
“Mudadores de Rua', “Semeadores do amor” e “Olha a sopa”. A maçonaria, as
igrejas em geral, clubes de serviço como Rotary realizam ações sociais
especialmente voltadas para pessoas em situação de rua e vulnerabilidade em
Manaus.
O
último censo mostrou um aumento na população especificamente do centro da
cidade. Isso também significa que esse aumento pode ser de mais pessoas em
situação de rua e o agravamento da crise.
Eventualmente
participo ajudando esses grupos de apoio aos moradores sem-teto. Certa vez ouvi
de uma pessoa nessa situação:
– Fome
dói! Fiquei triste e envergonhado porque nunca havia sentido dor de fome.
O
leitor pode me perguntar o porquê do título dessa crônica ser “Clareou”. É que
os moradores do centro usam essa palavra para avisar aos outros que está
chegando comida. Vamos clarear a vida dessas pessoas. É urgente! E como me
disse um deles, fome dói.
domingo, 9 de julho de 2023
sexta-feira, 7 de julho de 2023
Antísthenes Pinto, inventor e artesão 3/4
Zemaria Pinto
V
Voltemos a falar da
poesia de Antísthenes Pinto. Em 1957, publica seu primeiro livro, Sombra e asfalto.
Aos 28 anos, Antísthenes não faz concessões ao fácil, ao tragável, ao amorável
– não existem dores de amor em Sombra e asfalto. Existe sim uma dor maior, porque ele opta por uma poesia de
cunho existencialista, na aparência voltada para o indivíduo, mas em franco dialogismo
com a humanidade.
Antecipo minhas
rugas no espelho.
A sombra hirta
que foi vejo curvada.
Piso fundo no
chão que silencia
E vou contar
estrelas na vidraça.
A ave do desejo
pousa em livro.
(Não há no vácuo
acústica às palavras)
Liberto já do
sonho que não tive
Fujo de mim e só
de mim fugindo
Sem dar um passo
além do que pensara
Quando fui velho
sem chegar a ser.
O meu patético
olhar engole o longe:
– Escuro
limitando com escuro
E quanto ao
perto: cinza no cinzeiro
E o negro cão do
tempo me mordendo.
(1987, p. 15)
Ossuário, de 1963, foi o livro que motivou no crítico Assis Brasil, para definir
o trabalho de Antísthenes, a ideia de “uma poesia de interesse visual,
descarnada, limpa.”[1] Morando
no Rio de Janeiro, publicando regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando ainda dirigido
por Mário Faustino, Antísthenes elabora poemas austeros, ásperos, sem
concessões, de onde a poesia brota quase imperceptível: uma poesia contida, mas
cheia de signos – onde os cães e os ossos, símbolos recorrentes na sua obra
poética, fazem-se presentes, como no poema “Morto Vivo”.
fronte caída:
lágrima lavrada
no pedestal da
fonte.
além o sobreposto
mar de ossos
esgarçando
rastros
– fuzis de
gritos!
de bruços:
reencontrar a
rota
do meu mapa
branco.
fazer-me bala,
deslocar-me
uníssono
como um cão de
aço.
morto
mais vivo. morto
pensante
de bruços:
grave loucura
clara:
vivo morto morto
vivo.
(1987, p. 41-42)
Angústia numeral,
de 1976, é o livro de poemas mais emblemático de Antísthenes Pinto. Aquela
contenção de Ossuário explode, treze
anos depois, em uma festa de palavras, onde a predominância é do verso longo e
delirante – ecoando Whitman, Maiakovski, Fernando Pessoa, Mário de Andrade. Li Angústia
numeral em 1980, quando conhecia o autor apenas dos jornais. Contrariando a
lição do peixe de Agassiz (POUND,1977, p. 23), em menos de uma hora, já havia
lido os 41 poemas de Angústia numeral – e começava a relê-los.
sejamos malucos embora usemos gravatas
e fiquemos sempre de cócoras.
A mudez é a arma que nos faz rir
do caótico sol da refrega.
Sejamos, também, interiorizados como os
postes
e deixemos os cabelos cobrir-nos como
lençóis.
Sejamos cães, cães pelo menos vinte e três
horas
por dia e façamos da chuva
a ordeira companheira a suavizar nossa
náusea.
(1976, p. 11)
Aqueles versos
mostravam-me que as leituras clandestinas da beat generation, censuradas pela ditadura, em especial a poesia de
Allen Ginsberg, bem como a de Roberto Piva, não tinham sido vãs. Angústia numeral
recebeu o Prêmio Prefeitura de Manaus de melhor livro de poesia de 1976.
O último livro
original de poemas publicado por Antísthenes Pinto foi Curvas do tempo, em 1984. Editado pelo próprio autor, o livro
configura-se como um legado que o poeta teimava em nos deixar: cada uma das
faces de sua poesia múltipla está representada naquelas 70 páginas, que ainda
se dão ao luxo de trazer novidades, como o uso da música, marcada pelo domínio
do metro popular, aliado à harmonia advinda das entonações perfeitas, como
neste pastoril, de sabor levemente surreal.
No declive do
caminho
de um verde puro
demais
cravei meus olhos
em Mirra
como as abelhas
que sorvem
as frescas flores
do campo.
Foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis,
as maçãs do rosto
ardiam
e o que dizer de
seus seios?
Havia um pássaro
em pânico
entre gardênias e
Mirra,
foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis
nessa campina de
sono,
de vacas tontas
de sol
e laranjas
crepitando
como pombos na
manhã.
Cravei meus olhos
em Mirra
como as abelhas
que sorvem
as frescas flores
do campo.
Foi bem cedo que
a vi
com seus cabelos
azuis,
as maçãs do rosto
ardiam
e o que dizer de
seus seios?
(1984, p. 37-38)
Mas estão também em Curvas do tempo os versos descarnados de
Ossuário e os versos longos e
arrebatados de Angústia numeral. Estão
presentes os cães, os cães sempre presentes na poesia de Antísthenes. E também
os ossos – as flores ósseas, o ósseo sol, o canto ossificado –, recorrências
que se associam e se completam, nos quadros cáusticos que a inquieta poesia de
Antísthenes Pinto eternizou.
[1] Dicionário
Prático da Literatura Brasileira (1979), citado na orelha da Poesia
Reunida (ver Bibliografia).
quinta-feira, 6 de julho de 2023
A poesia é necessária?
somos sombras
Rogel Samuel (1943-2023)
nada sabe a nada
neste e no outro mundo
nada é
o que pensa que é
somos sombras
névoa que se dissipa na curva da estrada
ao sol da manhã
certa vez eu vi um monte enevoado
era uma alta montanha
longe, bem longe dos olhos
nunca me esqueci
era a cordilheira dos Himalaias
ao longe, bem longe
como uma visão excelente
de algo portentoso e belo
somos sombras
o mundo presente
e o mundo dos sonhos
quarta-feira, 5 de julho de 2023
AAL lança livro póstumo de Anisio Mello
Zemaria Pinto
Como
não poderia deixar de ser, começo agradecendo a oportunidade de homenagear o
amigo Anisio Mello, no 13° ano de seu desenlace, fortalecendo a ideia de que a
imortalidade acadêmica é a permanente relembrança.
Por
isto estamos aqui, nesta ensolarada manhã de sábado (espero não errar na
previsão do tempo), relembrando o artista múltiplo, o multiartista Anisio –
pintor, escultor, músico, compositor, que, como escritor, destaca-se em diversas
frentes: ensaio, ficção, folclore, poesia e até um precioso Vocabulário etimológico tupi do folclore
amazônico, onde dá continuidade a um trabalho iniciado por seu pai,
Octaviano Mello. E, pasmem, Anisio era um inventor de mão cheia...
Luiz
Bacellar, que quanto mais velho mais menino ficava, dizia que Anisio, com quem
vivia arengando, era a reencarnação de Leonardo da Vinci. Aí mostrava uma
reprodução da “Mona Lisa” e, ecoando uma teoria da época, dizia: “vamos tirar a
barba do Anisio e ver se ele é ou não o Da Vinci”. Um estudo da época dizia que
Leonardo retratara a si mesmo na “Mona Lisa”. Anisio fazia cara amuada e
replicava: “este fim de semana não tem café nem jornal...” Era um hábito que os
amigos cultivavam no domingo: ler os jornais juntos, com um cafezinho,
acompanhado de tapioca e pamonha. Tudo bancado pelo Anisio, claro.
Lembro
de uma arenga dos dois que deu um trabalhão para contornar. Um cidadão francês,
de passagem por Manaus, enturmou-se com os dois. Só que o Bacellar, a propósito
de manter seu francês (que ele dizia “de Paris”) em dia, danou-se a conversar
em francês com o novato. Como o francês do bom Anisio era “de Itacoatiara”, o
tempo fechou. Os dois “trocaram de mal” e ficaram alguns fins de semana sem ler
os jornais juntos...
Mas,
estamos aqui para louvar a poesia de Anisio Mello, representada neste Estrela Viva, uma antologia organizada
pelo próprio autor e salva dos escombros do esquecimento pelo notável trabalho
do pesquisador Roberto Mendonça – que multiplicou a obra do meu querido
professor L. Ruas e agora nos revela poemas de Anisio, se não inéditos,
perdidos em edições esgotadas.
Chamo a
atenção para a capa, que reproduz um quadro do próprio Anisio: um belíssimo
exemplar de seu expressionismo abstrato – ele, que pintava desde prosaicas
paisagens até quadros como este, de refinado simbolismo e múltiplas leituras.
Exímio sonetista, Anisio escrevia poemas em versos livres e rimas brancas com a mesma facilidade com que cultivava o haicai. Em outras palavras, tinha o total domínio da técnica poética, mas também tinha uma verve, um entusiasmo que passava a sua poesia, caracterizada pelo lirismo, sem pretensões a revoluções estéticas, mas construindo uma obra que encanta e encantará ainda muitas gerações, como no petrarquiano “Lembrança”, de Sexagésima Stella (página 125):
Na lembrança ficaste de permeio
a momentos de amor como te vi.
Foste rosa em meu peito e com receio
a primavera augusta então vivi.
Nos teus lábios agora me tonteio
e na luz dos teus olhos refleti
todo um sonho feliz e agora creio
que o amor é como o beijo que senti.
Este amor que flutua mansamente
e incandesce a manhã tão de repente,
mais parece o delírio de um adeus.
Um dia partirei, quem sabe quando?
lembranças levarei sempre cantando,
com teus lábios impressos sobre os meus...
Este –
meus amigos, minhas amigas, crianças – era Anisio Mello, um homem simples, um
artista completo. Aliás, este é Anisio Mello, pois ele continuará vivo em
nossas lembranças...
OBS:
como não pude estar presente, o ex-presidente Elson Farias leu o texto, por ocasião do lançamento do livro, em
01/07/2023.