Howard David Johnson. |
sábado, 31 de maio de 2014
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 7/7
Zemaria Pinto
Assim, temos caracterizados três tipos diferentes
de narradores na obra de Milton Hatoum: em Relato de um certo Oriente , uma narradora-repórter, a Moça Sem Nome ; em Dois irmãos ,
Nael é um narrador-investigador; em Cinzas do Norte , Lavo é um
narrador-confidente, tanto do amigo Mundo , quanto de Alícia e do tio
Ran. Esses três
narradores têm muito em comum . A proximidade
afetiva com
a casa , por
exemplo : a Moça
Sem Nome ,
abandonada pela mãe ,
é adotada pela matriarca
Emilie; Nael é filho da empregada Domingas e neto
de Zana e Halim; Lavo é o melhor amigo de Mundo ,
filho de Jano e Alícia. Os três têm uma paternidade
problemática : a Moça
Sem Nome
é adotada, como já
disse; Nael não sabe quem é seu pai , embora conviva com as
duas alternativas , Omar e Yaqub; Lavo
ficou órfão de pai
e mãe ainda
muito cedo ,
num acidente , sendo criado
pelo tia
Ramira. Construindo suas narrativas a partir das ruínas da memória
e das casas , os narradores sobrevivem, em relação aos protagonistas Emilie, Zana, e Mundo
– e só após a
morte destes divulgam seus
relatos.
Aliás, Dois irmãos e Cinzas do Norte
abrem com a informação
da morte de Zana e Mundo ,
respectivamente , embora
ainda não
saibamos direito quem são eles . No Relato, também
no texto de abertura ,
sabemos da iminência da morte de Emilie por uma frase
dirigida à narradora: “dizem que tua avó
há muito tempo
não dorme”. Na verdade ,
não são
apenas os protagonistas
que desaparecem: as ruínas
pontuam toda a narrativa
– e onde a morte
não alcançou prevalece a decadência . Não
à toa , o próprio
Milton Hatoum designa essa característica do
narrador-sobrevivente como “síndrome de Sherazade”: narrar para não morrer .[1]
Nos três romances
há uma paternidade a ser
revelada, mas somente
em Cinzas do Norte isso acontece, quando
descobrimos, ao final da trama , quem é o pai biológico de Mundo. No Relato, desconhecemos a paternidade de Soraya Ângela; em
Dois irmãos ,
não ficamos sabendo qual dos irmãos , afinal ,
é o pai de Nael.
Outro ponto em
comum nas três
narrativas é o conflito
familiar travado entre
irmãos ou
entre pai
e filho . Esse
conflito não
é a causa da dissolução
familiar – antes ,
é consequência dela. A causa é atemporal
e intangível , muito
além do alcance
do narrador e, mais ainda ,
do leitor . A família
é um núcleo
econômico antes
de ser afetivo ;
afeto é consequência do convívio . A falência
econômica leva
à desagregação afetiva .
Da mesma forma ,
a falência afetiva ,
se acontecer antes ,
leva à degradação econômica
– ou à separação
de bens . Tudo
desmorona diante dos impasses ditados
pela competição instalada no ambiente familiar
– seja entre irmãos
ou entre
pais e filhos .
Em Relato de um
certo Oriente ,
Samara Délia, filha da matriarca Emilie, é perseguida pelos
irmãos identificados simplesmente como
“inomináveis ”. A guerra
declarada entre Yaqub e Omar é o tema central de
Dois irmãos ,
mas a desavença
entre o mesmo
Omar e seu pai
Halim é também muito
marcante . Em
Cinzas do Norte , o conflito principal dá-se entre Jano e Mundo ,
pai e filho .
O conflito irmão
versus
irmão termina após
a morte dos pais ,
pois sem pais não há irmãos : rompe-se o elo
hierárquico que
mantém e justifica o embate . Sem
pais , a hierarquia
se parte e a família
dissolve-se. Mas o conflito
filho versus pai só pode terminar com a morte de um ou de ambos , pois não há outr a forma de romper os liames que os
unem. Em ambos
os casos – reproduzidos na ficção de Milton Hatoum –, a família
faz-se em ruínas .
Se Relato de um
certo Oriente
é o romance da reconstrução
da memória e Dois irmãos , o romance da procura
pela identidade
negada, Cinzas do Norte mostra o dilaceramento a que
se entrega o artista
no ato criador :
é o romance da dor
– a dor da transgressão ,
da opressão e da incompreensão
– “a dor de todas as tribos”. Três romances cuja recepção ainda está em curso , mas três obras que o tempo , esse arquiteto
de ruínas , certamente
irá fortalecer , cristalizando a paisagem por onde passeiam os personagens
imaginados por Milton Hatoum. Háyat tauíli! Longa vida a Lavo, Nael e à Moça
Sem Nome !
Meu caro Milton: você
já recebeu alguns
dos principais prêmios
e distinções que
um escritor
brasileiro almeja. E como
você ainda é jovem (e isso me faz sentir-me jovem
também !), ainda
há muitas e muitas honrarias a receber , especialmente
na sua carreira
internacional . Não
vamos espantar a concorrência
– mas , para quem já ganhou
o Jabuti por três vezes , não será nada esperar por um Camões... E quem
sabe a Academia de Literatura
da Suécia lembra-se que no Brasil... Por enquanto ,
queremos agradecer por
você ter vindo aqui , congratular-se conosco ,
aceitando nossa singela ,
porém sincera
homenagem . As portas
desta Casa – que foi de Péricles Moraes
e hoje é de Elson Farias, de Thiago de
Mello, José Braga, Francisco Gomes, Luiz Bacellar, Márcio Souza, Tenório Telles,
Narciso Lobo, Rosa Mendonça de Brito, Carmen Nóvoa, Max Carphentier, Ruy Lins,
Anisio Mello, Moacyr Andrade, Demósthenes Carminé, Mário Ypiranga Neto[2]
e tantos
outros grandes
companheiros –, as portas desta Casa, Milton, estarão sempre
abertas a você .
V
A salamo a-leikon. A paz esteja com todos .
[2]
Acadêmicos presentes à solenidade, com exceção do presidente Elson Farias e do
decano Thiago de Mello, enfermos.
Anatomia: o desvendar do corpo
João Bosco Botelho
A história mostra com fartos registros que o
estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas
estruturas de poderes das crenças e ideias religiosas, notadamente, no monoteísmo.
A justificativa da resistência continua contida no dogma do homem ter sido
criado à imagem e semelhança de Deus.
Para
consolidar a nova estrutura de crença e ideia religiosa, os teóricos dos
monoteísmos reorganizaram a forte tradição politeísta anterior a partir do
pressuposto de o indivíduo observável representar a cópia fiel de outro ser
(divino, invisível e perfeito). Entre as mudanças patrocinadas por essa concepção
do corpo sagrado, nada justificaria o estudo do corpo. O naturalmente
desconhecido fazia parte do milagre criador.
No
judaísmo, de modo geral, os rabinos só autorizavam o estudo da anatomia nos
cadáveres insepultos dos heréticos e condenados (Talmud, Bekhoroth 45a. = Um dia os discípulos de Rabin Ismael
dissecaram o corpo de uma prostituta que o governante tinha condenado à figueira...).
O
cristianismo introduziu mudanças importantes na estrutura do espaço sagrado. Diferente
do judaísmo acrescentou certa oposição entre o físico e o espiritual (Mt
10,28). O ser humano, agora plenamente concebido como dual, isto é, corpo e
espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus (2Cor 5,10). Por outro
lado, os empecilhos para abrir os corpos mortos mantiveram semelhança no AT e
NT. Um dos pontos confluentes é a natureza mítica do sangue (Mt 16,17 e 1Cor
15,50), mantendo semelhança entre a de Moisés, que inaugurou a Antiga Aliança
entre Deus e o povo eleito, e a Nova e Eterna Aliança selada por Jesus com o
seu próprio sangue (1Cor 11,25 = Do mesmo
modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu
sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim).
No islamismo, a palavra correspondente de anatomia em
árabe - ilm al‑tasrib - é precedida
pela raiz saraha que significa
literalmente trinchar, cortar, separar. Como o islamismo entendeu a criação dependente
e sequenciada (Sura 23,13‑14 = Depois,
transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e
revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o
melhor dos criadores), a inevitável intervenção do exame, dilacerando a
carne, foi seguidamente impedido pela convicção da importância do corpo
conservado após a morte.
Com
a desconstrução da ordem feudal, na Europa, ocorreu a sedução coletiva para
renascer a cultura grega, que recebeu o nome de Renascimento. O desejo de
conhecer o corpo encoberto sob a pele dominou a interdição. Os dogmas em torno
da natureza sagrada do sangue foram colocados ao largo e reiniciado o estudo da
anatomia nas muitas salas de dissecção espalhadas na Europa, especialmente, na
Itália e França.
A
harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou a todos e fez
vibrar também a pena dos poetas e os pincéis dos artistas. A sensibilidade de
Leonardo da Vinci (1452‑1519) buscou a profundidade da forma e produziu
inúmeros desenhos dos ossos, das artérias e veias com a perfeição.
Outros
artistas conseguiram transpor para a tela o instante em que o saber é a emoção,
como Rembrandt (1606‑1669) na tela a Lição
de Anatomia do Dr.Tulp. O quadro que deu vida à atitude majestosa do
cirurgião e aos semblantes dos alunos, é uma prova inquestionável do quanto o
desvendar da anatomia fascina o ser humano.
quarta-feira, 28 de maio de 2014
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Martin se prepara para morrer
Inácio
Oliveira
No dia em que morreria Martin acordou
cedo. Barbeou-se com meticuloso cuidado com uma navalha enferrujada olhando-se
no pequeno espelho pendurado num prego, pensou que talvez fosse aquela a última
vez em que via o próprio rosto, sentiu como que uma saudade de si mesmo. Os
primeiros raios de sol inflamavam a manhã. Porque era um homem sozinho Martin
havia adquirido a calma perfeita de todas as coisas, ele nunca tinha pressa.
Movia-se como se move um homem quando sabe que ninguém o está observando.
Preparou o café levemente amargo como gostava, sorveu com imenso prazer pequenos
goles do líquido escuro e quente. Observava a paisagem que amanhecia: as
plantas úmidas de cerração, o pasto abandonado e o gado esquecido, o vale que cortava
a propriedade e uma estrada perdida no horizonte. Ao longe uma cadeia de
montanhas lembrava o desenho de uma criança. Quando o matassem ele não
morreria, o que morreria seria o mundo visto por ele, Martin pensou isso com
bastante lógica e retidão, assim como um engenheiro pensa. Esboçou um leve
sorriso, satisfeito com o seu pensamento. Esperava aqueles que o matariam. Eles
viriam, era certo. A história da sua vida ganhava um caráter trágico, ele se
considerava um destino. Este seria o seu último dia e ao pensar nisso Martin
foi tomado de um assombro, mas nada perturbava os seus gestos. Apenas seus
pensamentos fervilhavam de milhares de possibilidades impossíveis. Pensou em
tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi, pensou em cada vez que disse não
e deveria ter dito sim, cada vez que foi para a esquerda e deveria ter ido para
a direita, tudo isso que ele pensava formava outro mundo, outra vida que parecia
pertencer a outra pessoa diversa dele mesmo, e a única coisa que Martin podia
ser era ele mesmo. Martin estava tão acostumado consigo mesmo que se
surpreendeu imaginando-se diferente. Procurou não pensar mais nisso, agora ele
selecionaria seus pensamentos para não desperdiçá-los. Martin pegou sua
espingarda 12, observou a coronha gasta e suja da arma, pensou como ela seria
bonita se fosse nova. Tocou o longo cano da 12, grosso demais para uma
espingarda, era frio o metal em contato com sua pele. Havia três cartuchos
vazios na cartucheira, há tanto tempo que ele não os usava. Ele preparou os
cartuchos, colocou a espoleta, o chumbo, a pólvora e a esponja. Isso era
inútil, ele sabia, porque os homens que o matariam não dariam tempo para que
ele disparasse um único tiro, mas Martin prepara-se para defender-se assim como
quem faz um ritual. Pensou numa tarde remota em que o pai o levou para dar o
primeiro tiro, o impacto da espingarda em seu peito o jogou para trás,
derrubando-o no chão e deslocando seu ombro. Martin ficara impressionado com a
violência daquele instrumento. Já que pensou no pai ele pensa também na mãe e
nos irmãos que morreram tão cedo, mas não quer pensar neles. Então imagina-se
morto, o corpo sem vida; agora liberto de todo pensamento. Por um instante ele
anseia a chegada daqueles que vão matá-lo. Martin acaba de preparar o último
dos três cartuchos, coloca-o na espingarda e mira com ela um gato que adormece
ao sol, se atirasse nele o gato se tornaria um bagaço de carne, ossos, pelo e
sangue; no peito de um homem seria diferente. Martin caminha pela varanda da casa
e já é manhã avançada, o calor que sobe pelas paredes vem carregado de uma
crescente inquietação. Martin não consegue parar de pensar naquilo que deve
acontecer a um homem um segundo depois que ele morre, na verdade Martin não
pode saber disso, mas ele pensa nisso assim como se pensa num lugar que
não se conhece. O que Martin pensa sobre a vida, sobre o mundo e sobre si mesmo
é tão confuso que é como se ele pensasse duas coisas contrárias ao mesmo tempo,
um pensamento invalidando o outro; um caos de onde resta o silêncio. Agora
Martin está sentado na cadeira de embalo que pôs na varanda, a espingarda
cruzada sobre as pernas. Se alguém o visse assim pensaria que ele está em
transe, assim como fica um monge ou um vidente, mas ninguém jamais suspeitaria que
sob as suas retinas escuras se passa o assombro de toda uma vida.
domingo, 25 de maio de 2014
sábado, 24 de maio de 2014
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 6/7
Zemaria Pinto
O professor Marcos
Frederico Krüger Aleixo, referindo-se a Dois irmãos , metaforiza a narrativa
de Nael e concebe uma estrutura em afluência : o
rio Nael recebe a matéria
de vários narradores-afluentes, como Domingas, Halim, Adamor, Rânia e Zana e alguns destes recebem informações
de outros subafluentes .
Marcos Frederico identifica ainda o tempo ,
a Amazônia e a cidade de Manaus como narradores que
influem diretamente no trabalho
de Nael.[1]
Allison Leão , referindo-se também a Dois irmãos , diz que
Nael manipula arquivos diversos para montar sua narrativa .[2]
O mesmo pode ser
dito da Moça
Sem Nome ,
do Relato, e de Lavo, em Cinzas do Norte . O narrador hatouniano monta
seu puzzle
narrativo a partir de arquivos
bastante diversificados. A Moça Sem Nome trabalha com sua própria memória
e com as memórias
gravadas de Hakim, Dorner, Hindié Conceição, e do marido
de Emilie, que Dorner registrara em um caderno , montando a narrativa
em forma de mosaico , para usar uma expressão de
Marcos Frederico. Lavo constrói sua narrativa a
partir de cartas ,
cartões-postais e um diário de Mundo ,
utilizando também o relato de Ranulfo, mas seu principal arquivo é sua memória , onde ele
recupera o contato com
outros personagens
da trama , como
Jano, Alícia e a tia Ramira. Neste caso , a narrativa
funde as duas técnicas : mosaico e afluência .
Em plena temporada de ópera, não é impróprio afirmar que os narradores
hatounianos orquestram a polifonia de vozes dos subnarradores que se espraiam
pelas narrativas.
O próprio Milton Hatoum traça
um paralelo
entre Euclides da Cunha
e Walter Benjamin: enquanto o filósofo alemão identifica dois tipos de narradores muito
comuns – o do viajante ,
que vem de longe ,
e o do camponês , fixado à terra ,
– Euclides, em À margem da História ,
fala do “observador
errante que
percorre a bacia amazônica ”
e do “homem sedentário ”,
postado à margem do rio .[3]
De muito longe
vêm boa parte dos personagens
de Hatoum, e são os que
têm mais histórias
a contar . O próprio
Milton, em entrevista ,
afirmou que nos
primeiros anos
de sua infância ,
ele escutava os mais
velhos conversarem em
árabe , “a ponto de pensar que essa língua era falada pelos adultos e o português pelas
crianças ”.[4]
Mas os enraizados também
têm muito a contar ,
estabelecendo uma conexão permanente entre
a tradição e as suas
histórias pessoais .
Em certo
ponto , os papéis se invertem: os viajantes se fixam na terra
e os nativos erram a esmo .
Equacionando: os três romances representam a construção
(via linguagem )
das ruínas (da memória ,
da linguagem ), que
se organizam a partir de arquivos
diversos , dispersos.
A Moça Sem
Nome , Nael e Lavo escrevem a história da fundação ,
apogeu e destruição
de três famílias .
Quase escrevo o lugar-comum
“saga ” em
vez do genérico
história . Mas
não há nada
de heróico nas três
narrativas . Trata-se de pessoas comuns ,
que andam pelas ruas
de uma Manaus que ainda
arranca suspiros saudosos
de uns poucos sobreviventes. Mas são vidas absurdamente
verossímeis, que evocam paisagens varridas pelo tempo , como a fantástica cidade-flutuante, que
eu-menino olhava de longe , com um misto de encanto
e de medo .
[1]
ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. O mito
de origem em
Dois irmãos .
In: Intertextos nº 3, Manaus: EDUA/Valer , 2002, p. 203-214.
[2] LEÃO , Allison. A narrativa poética
em Dois irmãos : lugar
de intercâmbio entre
suportes arquivísticos. In: Somanlu:
revista de estudos
amazônicos . Ano
5, n° 1. Manaus: Edua; Fapeam, 2006, p. 21-34.
O mau-olhado
João
Bosco Botelho
Não
há dúvida da universalidade da crença do mau-olhado. Luís da Câmara Cascudo, no
seu extraordinário Dicionário do Folclore
Brasileiro, sustenta sua antiguidade e presença nos cinco continentes.
O
grande mestre da mitologia grega, Junito Brandão, assinalou a origem pré-olímpica
do mau-olhado, explicando as mudanças na transição greco-romana para absorver a
concepção helenística predominante nos países cristãos. Na mitologia grega, a imortal
Medusa, com a cabeça coberta de serpentes, possuía olhos com excepcional brilho
e o olhar maligno que transformava em pedra quem ousasse fixá-los.
Carlo
Ginzburg interpretou do modo magistral os cultos agrários, no século 17, em uma
sociedade camponesa italiana. A crença no mau-olhado era comum naquela
comunidade e o tratamento só obtinha sucesso se realizado por alguém com poderes
especiais: o benandanti ou andarilho do bem. Em um dos processos
do Santo Oficio, para punir o benandanti, no depoimento de um
dos acusados, está claro o entendimento do mau-olhado: O que significa, pergunta o
inquisidor, ter mau-olhado? E a jovem explica: nós dizemos que têm mau-olhado
as mulheres que secam o leite das mulheres que amamentam e são também bruxas
que comem as crianças.
As
compreensões do mau-olhado são semelhantes e recebem nomes de significâncias próximas:
olho de seca pimenteira, malocchio, evil eye, bose blick, mal de
ojo, olho grande e olho gordo.
Os
relatos mantêm similitudes: a pessoa atingida pelo mau‑olhado sente, imediatamente
ou após algumas horas, apatia generalizada, dores no corpo e na cabeça, alterações
na digestão, inapetência, irritação e desânimo. Quando o alvo é criança, as
consequências são mais intensas, podendo incluir: sonolência profunda, olhos
encovados e moleiras afundadas.
O
mau-olhado é reconhecido como uma das doenças que devem ser tratadas pelos
curadores populares. Em algumas regiões brasileiras, o ritual de cura continua
sendo realizado com a ajuda de um ramo de arruda ou erva doce tirado do galho,
semelhante ao registro de Luiz Edmundo, no Rio de Janeiro, no século 18:
Todo mal que nesse
corpo entrou,
Ar de névoa, ar de
cinza,
Ar de galinha choca, ar
de cisco,
Ar de vivo em pecado,
Ar de morto
excomungado,
Ar de todo o
mau-olhado,
Seja desse corpo
apartado,
Deus te desacanhe de
quem te acanhou,
Deus te desinveje de
quem te invejou.
De
modo geral, o malefício do mau-olhado não é reconhecido pelos médicos. Contudo,
a ciência não consegue explicar o maior paradoxo das práticas médicas: em qual
dimensão da matéria viva o “normal” se transformaria em “doença”. Se é que,
realmente, existe a doença como a medicina concebe. Desse modo, a explicação da
veracidade do mau-olhado poderia estar numa dimensão ainda desconhecida dos
corpos. Dessa forma, a medicina não tem respostas para todas as perguntas. Os médicos
observam no cotidiano, que certos doentes portadores de determinados cânceres, que
evoluem favoravelmente ao tratamento, ao tomarem conhecimento da gravidade da
própria doença, inexplicavelmente, pioram e acabam morrendo rápido. Ao contrário,
outros que sabem da doença e lutam para viver, acabam superando os índices das
estatísticas de sobrevivência.
O
conhecimento historicamente acumulado insiste, há milhares de anos, na
veracidade do mau-olhado sugerindo que as emoções, ainda pouco compreendidas
pela medicina, interferem no rumo de certas doenças e na saúde das pessoas.
quarta-feira, 21 de maio de 2014
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Lábios que beijei 20
Zemaria Pinto
Fátima
Durante duas décadas,
Fátima foi a mulher mais linda que passou por minha vida. À época, Fátima só
tinha paralelo em Ingrid Bergman, ninguém menos. O corpo adolescendo,
indefinido, Fátima era sobretudo o rosto mais sublime que eu vira – e ainda por
cima, em tecnicolor e 3D. Dentes fortes, cabelos lisos, castanhos, lábios
rubros, a voz com uma modulação ligeiramente grave, a pele branca queimada pelo
sol do equador, um biótipo estrangeiro, cearense, perdido nas imensidões da
Amazônia. Fiz planos com Fátima, para um futuro que então nos parecia distante.
A vida, contudo, foi mais rápida e nos separou, mas não me apagou a lembrança
do seu semblante iluminado – olhos, boca, o sorriso pleno e o jeito autoritário
de falar, mesmo quando queria ser carinhosa. Durante muito tempo, Fátima foi
meu supremo arquétipo de beleza, até que outro mito tomasse conta de meus
devaneios. Mas esta é uma outra história.
domingo, 18 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 5/7
Zemaria Pinto
IV
Tantas são as nuanças na arquitetura narrativa
de Relato de um
certo Oriente ,
Dois irmãos
e Cinzas do Norte [1]
que preferi, preterindo o autor , falar de suas obras , ou melhor , de um aspecto muito especial
de suas obras :
o narrador. Mas não
quero entrar em
matéria acadêmica ;
antes , quero recuperar
a vida que
pulsa nesses personagens-narradores: a moça sem nome de Relato
de um certo
Oriente , Nael, o neto bastardo
de Dois irmãos ,
e Lavo, o memorialista de Cinzas do Norte .
Pretendo demonstrar , nesta alocução ,
que há algo
em comum
entre essas criaturas ;
ou , tecnicamente, examinar
a poética da narrativa
no romance de Milton Hatoum.
Os três romances
têm como matéria
principal a vida
na cidade de Manaus, a cidade que viu seu autor nascer há 54 anos . É claro que não é da sua experiência pessoal
que ele
fala , mas
de histórias inventadas, que poderiam ser as histórias de sua
família , de seus
conhecidos , ou
que ele
simplesmente ouvira contar ,
na Pensão Fenícia
da sua infância .
Histórias criadas a partir
da matéria-prima que
a vida lhe
oferece: a história pessoal
do autor puxa
a história da família ,
que se liga
à história da cidade ,
que converge para
a história do país ,
que deságua na história
do nosso tempo ...
Há muitos tipos
de narradores. Simplifiquemos, dividindo-os em
dois grandes grupos : os que
participam da história diretamente e os que
contam a história sem
dela haver tomado parte . A este
grupo pertence
o narrador onisciente , que
o leitor desavisado ,
muitas vezes , confunde com o autor . Os
narradores de Milton Hatoum pertencem ao primeiro grupo , são personagens , embora
secundários , têm nome
(até , com
certeza , a moça
sem nome
do Relato de um
certo Oriente )
e envolvem-se diretamente na trama .
Os três narradores distanciam-se no tempo , com relação aos acontecimentos
narrados. A narradora do Relato, a partir de agora nominada
Moça Sem
Nome , depois
de quase vinte anos
de ausência , recolhe depoimentos sobre
acontecimentos muito
anteriores , e transcreve-os com a sua própria voz , que plana “como um pássaro gigantesco
e frágil sobre
as outras vozes ”. Nael, o narrador de Dois irmãos, organiza sua
narrativa , o material
que colhera durante
toda a vida ,
buscando uma resposta inalcançável,
somente na maturidade . Lavo começa a escrever suas memórias
apenas “uns vinte anos depois ” da culminância dos acontecimentos divulgados
em Cinzas do Norte.
Mas o ponto essencial
a observar sobre
as três narrativas
é que elas
são construídas sobre
as ruínas de três
casas : a casa
de Emilie, a casa de Zana e Halim e a casa de Jano e Alicia. Essa alegoria
benjaminiana da construção da narrativa
fundada nas ruínas da memória é arquitetada a partir
de estratégias narrativas
que envolvem a memória
do próprio narrador e de seus
informantes, gravações , entrevistas , cartas ,
depoimentos , relatórios
e até , em
Cinzas do Norte ,
uma narrativa paralela ,
feita pelo personagem Ranulfo, que
Lavo integra ao seu relato.
Mnemósine, a mãe das nove musas ,
preside a narrativa hatouniana, sem prescindir , entretanto , do auxílio
das filhas Melpómene, Calíope e Clio: a memória
da tragédia deixa-se envolver
num halo de poesia ,
infiltrando-nos na história , para lembrar-nos que
essas tragédias fazem parte do nosso cotidiano . Se da Grécia passarmos ao Oriente
e pensarmos em Sherazade como arquétipo
de narrador, teremos um
narrador-artesão, que tece, uma a uma, cada narrativa .
O narrador moderno , entretanto ,
não se limita a contar
histórias : a linguagem
é, em si
mesma , uma aventura .
Ele tem consciência
da fragmentação e do caos que
ordenam a paisagem ao seu redor – de
Manaus a Beirute , passando por Londres, Barcelona ou
São Paulo. Os narradores de Milton
Hatoum seguem a máxima benjaminiana: “contar
histórias sempre
foi a arte de contá-las de novo .”[2]
Isto quer
dizer preservar a memória em
relatos que não
são apenas
histórias contadas, mas
tramas arquitetadas em
limites de espaço
e de tempo marcados por
uma historicidade clara e definida .
HATOUM, Milton. Dois irmãos .
São Paulo: Companhia
das Letras , 2000.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte . São Paulo: Companhia
das Letras , 2005.
[2]
BENJAMIN, Walter. O Narrador – considerações sobre
a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica ,
Arte e Política .
Trad. de Sergio Paulo Rouanet. 2ª ed. São
Paulo: Brasiliense , 1986, p. 205.
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