Amigos do Fingidor

domingo, 30 de abril de 2023

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 1/8

Zemaria Pinto[1]

 

Introdução e fundamentação. A Relacion del nuevo descubrimiento del famoso rio grande de las Amazonas[2] foi escrita por Gaspar de Carvajal[3] pouco tempo após os feitos de que dá notícia, entre 1542 e 1543. Testemunha ocular dos fatos narrados, Carvajal pretendia com seu texto mostrar que Francisco de Orellana[4] não traíra Gonzalo Pizarro, enumerando os incidentes que resultaram numa aventura diversa do que fora planejado (MARTINS, p. 41). A ira de Pizarro, e de muitos historiadores, era com o fato de que o acaso reservou a glória histórica ao subalterno, enquanto o comandante voltava para casa humilhado.

O texto de Carvajal tem três camadas facilmente identificáveis, intercambiáveis entre si:

1 – histórica: onde se registram os fatos ocorridos, especialmente após a separação da expedição em dois grupos, relatando a descida pelo “rio de Orellana” até o mar;

2 – religiosa: onde se observa que o dominicano Carvajal pontua sua narrativa com palavras de agradecimento e louvor a sua fé; 

3 – ideológica: a camada mais complexa, onde Carvajal pretende demonstrar a bravura e a lealdade de seu capitão; para tal, lança mão de artifícios que hoje reconhecemos como literários – daí o devaneio do título deste artigo; a mescla desses recursos com a história revelou-se, com o tempo, um processo de mistificação que, mesmo apontado desde o início por seus críticos, encontrou guarida no imaginário popular.

Servindo-nos das estratégias da Análise de Discurso, vamos indicar, dentro do texto de Carvajal, os principais pontos em que ele troca a história pela literatura, num exercício de realismo maravilhoso, culminando com a transposição do mito grego das amazonas para a região que, de tão marcada pela narrativa do dominicano, herdou-lhe o nome. São as primeiras representações da Amazônia, sob forma de relato histórico, arquitetadas ora num simulacro de fantasia literária, ora na mais deslavada mistificação.

Para que compreendamos melhor como essas camadas discursivas se interpenetram formando um só discurso, precisamos de duas definições: a primeira refere-se à aceitação da religiosidade como uma forma de ideologia; a segunda é a própria definição de ideologia, para efetivação deste trabalho. Eni Orlandi afirma que o trabalho da ideologia é “produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência” (ORLANDI, p. 46). Para efeito da narrativa de Carvajal, considerando a defesa que ele faz de Orellana, pedimos permissão à teórica para trocar “condições materiais” por “condições reais” de existência. A mudança é sutil, de abrangência, colocando o sujeito Orellana no seu papel histórico, visto por Carvajal, a partir do lugar de fala deste: o de historiador, ainda que involuntário. Na sequência, a referida professora diz que a característica comum da ideologia é “dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento, produzindo um tecido de evidências ‘subjetivas’, (...) nas quais se constitui o sujeito” (PÊCHEUX, apud ORLANDI, p. 46). À medida que lemos a relação, percebemos essas evidências, que “constroem” a personagem Orellana. Precisamos ainda ter em mente que linguagem e ideologia, para a Análise de Discurso, não se somam; antes, constituem um conflito, de onde o analista irá extrair seu trabalho: o de desnudar a ideologia do autor, entranhada no emaranhado polissêmico da linguagem (FREIRE, p. 15-16).  

Situemo-nos, pois, no contexto da narrativa, dentro da camada histórica do texto.  

 

Em busca de riqueza e aventura. Com o objetivo de descobrir o País de La Canela e o El Dorado – um fim claramente comercial –, a expedição liderada por Gonzalo Pizarro sai de Quito em fevereiro de 1541, com 220 espanhóis e 4 mil servos, entre negros e índios, sendo estes maioria.[5] No Vale do Zumaco, a 30 léguas[6] de Quito, vindo de Santiago de Guayaquil, onde era “capitão general e tenente governador”,[7] o aventureiro Francisco de Orellana, à frente de 23 homens, se junta à expedição, sendo nomeado lugar-tenente de Pizarro. Entenda-se que Orellana paga uma cota pela sua participação, tendo direito a lucro proporcional.

As primeiras palavras do texto:

 

Tudo que eu vou contar d’aqui por diante será como testemunha de vista e homem a quem Deus quis dar parte de um tão novo e nunca visto descobrimento, como é este que adiante direi. (CARVAJAL, p. 13)[8]

 

Carvajal mescla, em quatro linhas, os três discursos que são as linhas-mestras do seu texto: o discurso histórico (“Tudo o que vou contar... como testemunha de vista”); o discurso religioso (“homem a quem Deus quis dar parte”); o discurso ideológico (“um tão novo e nunca visto descobrimento”). É neste último, para o qual a figura de Orellana seria a ilustração perfeita, que ele põe a ênfase. Observe-se também que a forma como Carvajal se assenhoreia da narrativa (“d’aqui por diante... adiante direi”) é a de quem vai narrar algo linearmente – o que contraria a ideia de muitos comentaristas que falam no “diário” de Carvajal. Não há um diário, mas sim uma relação – tecnicamente, um relatório, com a finalidade de informar sobre um determinado feito ou acontecimento.

A narrativa começa exatamente no ponto onde se frustra o primeiro objetivo da expedição: depois de muitas privações, eles encontram uma região onde havia muita canela, mas cuja exploração mostra-se economicamente inviável. Pizarro ordena a construção de um bergantim – barco de médio porte, movido a remos –, para seguir a exploração pelo rio, “que aí tinha meia légua de largura” (p. 14).

 

Embora fosse Orellana de parecer que se não fizesse tal barco, por boas e justas razões, mas que voltássemos às cabanas e seguíssemos os caminhos que levavam a terras já povoadas, insistiu Gonzalo Pizarro em que se construísse a embarcação. (p. 14-15)

 

É importante frisar a observação de Carvajal quanto a Orellana ser contra a construção do bergantim. Sendo contra, por que ele depois “fugiria”, com um contingente reduzido e sem provisões? O próprio Orellana foi o responsável, por ordem de Pizarro, pela construção.

O barco não navegou mais que 50 léguas: a falta de alimento e o despovoamento das margens, que não ofereciam oportunidade de saques, geraram um início de motim, reivindicando-se o retorno – não nos esqueçamos de que os espanhóis tinham foros de fidalgos. Orellana pede permissão a Pizarro para sair com um grupo pequeno em busca de alimento; se ao cabo de “três ou quatro dias ou o tempo que lhe parecesse melhor” (p. 16-17) eles não retornassem, o grupo maior deveria refazer o caminho de volta. Tanto desprendimento é observado pelo cronista, embora sem muita sutileza, como um ato de bravura:

 

Vendo o capitão Orellana o que se passava e a grande penúria em que todos estavam, tendo por sua vez perdido já tudo o que possuía, pareceu-lhe que não seria honroso voltar depois de tantos prejuízos. (p. 16)

 

Pizarro concede.

 

Tomou consigo o Capitão Orellana a 57 homens, com os quais se meteu na embarcação que construíra e em algumas canoas que haviam tomado aos índios, começando a descer o rio com a intenção de volver logo que encontrasse víveres. Mas tudo saiu ao contrário do que todos pensávamos, pois não descobrimos comida num decurso de 200 léguas, nem nós a encontramos, padecendo por isso grandes necessidades, como adiante se dirá. (p. 17)

 


(Este ensaio será postado em oito partes, todas as sextas-feiras, até 16 de junho.) 

[1] Do livro A história como metáfora e outros ensaios amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 121-148.

[2] Este título, pelo qual o texto é divulgado hoje, não foi dado por Carvajal, que nomeou o rio “descoberto” como “rio de Orellana”, mas por Toríbio de Medina, o primeiro a publicar o texto integralmente, com os devidos créditos de autoria, em 1894, 350 anos depois de escrito. Até então, o texto fora usado por vários historiadores e comentaristas, como Gonzalo de Oviedo, que entrevistou o próprio Orellana, mas nunca teve contato com Carvajal (BARLETTI, p. 2-3). Em português, a única edição encontrável data de 1941.

O título de Carvajal, na íntegra, é: Relación que escrebió fray Gaspar de Carvajal, fraile de la Orden de Santo Domingo de Guzmán, del nuevo descubrimiento del famoso Rio Grande que descubrio por muy gran ventura El Capitán Francisco de Orellana desde su nacimiento hasta salir a la mar, con cincuenta y siete hombres que trajo consigo y se echo a su ventura por el dicho rio, y por el nombre del capitán que le descubrio se llamó el Rio de Orellana (MARTINS, p. 55).

[3] Gaspar de Carvajal nasceu em Trujillo, na, Espanha, em 1504, vindo a falecer em Lima, no Peru, em 1584.

[4] Francisco de Orellana nasceu também em Trujillo, em 1511, e faleceu em uma segunda viagem à Nova Andaluzia – o nome que os espanhóis deram à região “descoberta” por ele –, em 1546. Algumas (poucas) fontes dão o seu nascimento como 1490, o que o envelheceria 21 anos, deixando-o com mais de 50 anos no período da aventura, o que, para os padrões da época, seria pouco provável.

[5] Os números são aproximados. Carvajal cita a presença de negros escravos apenas de passagem.

[6] Um dos editores dos Diários de Colombo diz que “a légua empregada por Colombo é aquela que era utilizada pelos marinheiros italianos e equivale a 4 milhas. Por convenção, a milha náutica vale 1.852 metros” (COLOMBO, p. 32). Portanto, se Carvajal usava a mesma medida, cada légua corresponde a 7.408 metros. Mas essa medida é apenas uma referência, pois não havia uma padronização internacional.

[7] Informação fornecida pelo tradutor C. de Melo-Leitão (CARVAJAL, p. 13).

[8] Todas as citações de Gaspar de Carvajal têm uma mesma fonte, mencionada nas Referências. Deste ponto em diante, citaremos apenas as páginas onde as mesmas se encontram.


quinta-feira, 27 de abril de 2023

A poesia é necessária?

 

Emily Dickinson (1830-1886)

 

O Sucesso é mais doce

A quem nunca sucede.

A compreensão do néctar

Requer severa sede.

 

Ninguém da Hoste ignara

Que hoje desfila em Glória

Pode entender a clara

Derrota da Vitória

 

Como esse – moribundo –

Em cujo ouvido o escasso

Eco oco do triunfo

Passa como um fracasso!

 

(Trad. Augusto de Campos)


terça-feira, 25 de abril de 2023

Bebê cidadã

Pedro Lucas Lindoso


Antigamente, nem muito tempo faz, só sabíamos o sexo dos bebês após o nascimento. Minha netinha Isadora só vai chegar em agosto e já tem nome e já é bastante amada. Com sua maninha Catarina foi a mesma coisa. Ambas tiveram o já famoso “chá revelação”. Coisa impensável até alguns anos atrás.

De acordo com um amigo obstetra, foi em 1974 que se instalou o primeiro aparelho denominado Vidoson 635, de propriedade da Maternidade de São Paulo. Foi na época, o primeiro equipamento de ultrassom existente no Brasil e o primeiro da América do Sul.

No início as imagens não eram muito nítidas para os leigos. Hoje se pode ver a carinha dos bebês nas ultrassonografias mais próximas ao parto.

O mais interessante é saber-se o sexo do neném com bastante antecedência. As mamães podem se programar e até conversar com os bebês chamando-os pelos seus nomes, mesmo antes de nascerem. Há pessoas que acreditam que eles podem sentir o carinho dos papais ainda na barriga da mamãe.

Tudo hoje em dia parece acontecer muito rápido. Minha netinha Catarina já saiu da Maternidade registrada e com CPF!

O CPF, segundo informações do Google, tem números que não são atribuídos na ordem. Seguem um algoritmo complicadinho. O primeiro não era 000.000.000-1. Cada CPF é feito a partir de duas séries de números que codificam vários dados da pessoa. O final do CPF de Catarina é o número 3. O que indica que ela nasceu no norte do Brasil.

Durante muito tempo o CPF só era tirado quando o sujeito abria sua conta em banco. Hoje é o registro mais confiável e mais utilizado no Brasil. Mesmo porque tem uma abrangência nacional.

Nessa semana fomos tirar o Registro Geral da Catarina. Ou CI- Carteira de Identidade, como alguns chamam o documento. Antigamente aqui no Amazonas era atribuição da Secretaria de Segurança Pública. Tirava-se os documentos nas delegacias policiais. Hoje é responsabilidade da Secretaria de Justiça e Cidadania.

O importante é que Catarina já tem seus documentos. Só falta o passaporte. Catarina é muito lindinha. Tem nove meses. Já engatinha, balbucia sons, tem quatro dentinhos e reconhece os pais e avós.

Apesar de ainda não votar, Catarina, com todos esses documentos, pode ser considerada uma bebê cidadã.

 

domingo, 23 de abril de 2023

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Terra em transe: a história como metáfora 3/3


Zemaria Pinto

 

Barroco-Expressionista. O caráter barroco do cinema de Glauber Rocha já foi explorado a exaustão. Para Ismail Xavier, por exemplo, “Terra em transe leva ao extremo a dimensão barroca do cinema de Glauber” (XAVIER, 2001, 131). E mais, referindo-se ainda a Terra em transe:

 

O olhar de Glauber é táctil, sensual, enquanto a moldura da sua representação é alegórica, tendente à abstração, numa convivência de contrários tipicamente barroca. (XAVIER, 2001, 129)

 

Claudio M. Valentinetti, ao referir-se ao dialogismo do filme com a obra de Eisenstein, diz que:

 

Todos esses elementos levam-nos a considerar um outro aspecto que vem a ser fundamental nos filmes de Glauber: o barroco, aqui entendido como um componente particular da cultura de derivação ibérica de outros países coloniais. (VALENTINETT, 2002, 83)

 

O que eu discuto agora é o caráter expressionista de Terra em transe. Não no aspecto formal, consagrado por diretores como Robert Wiene (O gabinete do Dr. Caligari), Friedrich Murnau (Nosferatu) e Fritz Lang (Metrópolis). O expressionismo de Terra em transe está na sua representação enquanto objeto visual. Vejamos uma definição bem didática do que seja o Expressionismo:

 

Movimento artístico e literário nascido no início do século na Alemanha, como reação à estética tradicional, buscando um percurso de vanguarda e caracterizando-se pela deformação das figuras apresentadas, no intuito de chocar o gosto burguês e a mentalidade dominante, apresentando o absurdo e o grotesco da guerra, da exploração social e da morte. (PAZ; MONIZ, 1997, p. 91)

 

Outra definição, por um estudioso do movimento, Malcolm Pasley:

 

Querermos colar esta etiqueta (i.e., expressionismo) num determinado autor ou numa obra particular vai depender da importância que atribuirmos ao seguinte: 1) o emprego de diversos artifícios antinaturalistas ou “abstrativos”, tais como condensação sintática ou sequências pictóricas simbólicas; 2) o assalto às vacas sagradas da burguesia guilhermina à partir de uma posição internacionalista de esquerda; 3) a escolha do tema de regeneração ou renovação espiritual e 4) a adoção de um tom declamatório fervoroso. (PASLEY, p. 579, apud FURNESS, 1990, p. 7-8)

 

Então, em vez de “enquadrar” Terra em transe nos postulados acima – o que seria, por tudo o que já foi dito, óbvio e redundante –, valho-me de um depoimento de Nelson Rodrigues, dramaturgo cuja obra é reconhecidamente expressionista.[1] Em crônica publicada no Correio da Manhã, em 16 de maio de 1967 – o filme estreara dia 8, uma segunda-feira –, Nelson escreve:

 

Na madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda. (RODRIGUES, 1985, p. 23)

 

O Expressionismo confunde-se com o próprio conceito de Modernismo, constituindo-se antes como uma visão de mundo que como um movimento estético. É nesse sentido que Terra em transe é um filme expressionista: antinaturalista; antiburguês; vanguardista; declamatório; utilizando personagens deformadas; buscando a renovação a partir da denúncia do absurdo e do grotesco das relações humanas – pessoais e políticas.

 

Paulo Martins e a fome do absoluto. A figura de Paulo Martins domina o filme em sua totalidade. Terra em transe é o país interior de Paulo Martins. Em um ensaio onde discute os limites entre poesia e realidade, a escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, afirma:

 

O poeta é aquele que vive com as coisas, que está atento ao Real, que sabe que as coisas existem. (...) Esta relação com a realidade é essencialmente encontro e não conhecimento. (...) O poeta não tem curiosidade do Real, mas sim necessidade do real. A verdadeira ânsia dos poetas é uma ânsia de fusão e de unificação com as coisas. (...) Esta fome do encontro absoluto com a Poesia está presente em todos os poetas, com mais ou menos força, com mais ou menos evidência. (ANDRESEN, 1960, p. 53-54)

 

Paulo Martins é um poeta dilacerado entre a necessidade exterior da ação política exigida pelo momento histórico e a necessidade interior exigida pela poesia. Sara percebe o sofrimento de Paulo ao afirmar que “a política e a poesia são demais para um só homem” (p. 300). Paulo quer fundir-se com as coisas e com isso encontrar-se no absoluto – tanto no nível abstrato da arte quanto no nível da realidade cotidiana, que não comporta reflexão, mas ação. É isso que ele tenta o tempo todo – seja ao lado de Diaz, pelo ele representa de falso desprendimento:

 

O que eu não posso explicar aos meus inimigos são as razões que me levaram a abandonar o exercício da solidão pelo sacerdócio da vida pública! (p. 290-291)

 

Seja ao lado de Vieira, o líder populista que simboliza o fracasso da esquerda na América Latina.

A última fala de Paulo Martins, ao responder a Sara sobre o sentido de sua morte, é reveladora desse dilaceramento, dessa fome pelo “encontro absoluto com a Poesia”: “O triunfo da Beleza e da Justiça!” (p. 324) Ora, um conceito e outro só serão encontrados juntos de forma idealizada, porque um não depende do outro para realizar-se. Para Cláudio da Costa,

 

Essa frase de Paulo é absolutamente irônica. Se ele crê nesses valores absolutos e universais, sua morte não possibilita nenhuma mudança, não prova nenhuma justiça. (COSTA, 2000. p.76)

 

Paulo é um romântico utópico. Seu ideal é ter como poeta voz ativa na construção da justiça social. Mas o poeta, desde Platão, é um pária, ou, na melhor das hipóteses, no imaginário popular, um ser à parte. Mas Paulo não se dá conta disso, entregando-se em holocausto, como penitência pela sua queda –, metáfora da queda de toda uma geração de intelectuais (poetas, inclusive), que tentaram mudar o curso da história, mas foram dominados pela força – “pelo amor da força” (p. 324), como vocifera, em sua derradeira fala, o ditador Diaz.

 

Ópera e carnaval. A trilha sonora tem um papel destacado no filme. As imagens de Alecrim são sempre acompanhadas de uma trilha carnavalesca e de temas afros. Outro detalhe é que Dom Felipe Vieira nunca está só, afinal o carnaval só tem sentido coletivamente. As imagens de Eldorado, por outro lado, especialmente as que ilustram as cenas de Dom Porfírio Diaz, aproveitam temas de Villa-Lobos, Carlos Gomes e Verdi – deste, a abertura do Otello, bem apropriada para uma trama plena de traições sugeridas.  Nas cenas de orgia, das quais Diaz não participa, prevalece a sensualidade do jazz. É importante assinalar a solidão que envolve a figura de Diaz. Nem a presença eventual de Sílvia anula essa solidão. Em entrevista a uma revista francesa, a propósito da cena em que Paulo e Diaz discutem sobre amizade e traição, Glauber revela: “queria sublimar um lado homossexual e solitário de Diaz.” (VALENTINETTI, 2002, p. 84) 

 

A mulher e o bibelô. Duas personagens femininas orbitam em torno de Paulo Martins: Sara e Sílvia. As duas são os polos opostos de um mesmo eixo. Sara é a protofeminista, num momento em que o conceito ainda não ganhara as ruas. Tem um discurso próprio, independente. E nem seu amor por Paulo a faz desviar de seus objetivos. Sílvia, pelo contrário, é a mulherzinha, a dondoca, submissa e desprovida de qualquer traço de vontade própria. Ela não tem uma fala sequer no filme. Na mesma entrevista acima citada, Glauber diz, a propósito da personagem Sílvia:

 

Não consegui colocar-lhe na boca uma só palavra. Escrevi diversos diálogos para ela, mas todos foram cortados depois, já que tudo que dizia era ridículo. (VALENTINETTI, 2002, p. 87)

 

 Sara e Sílvia são metáforas da condição feminina, desde sempre.

 

Personagens alegóricas. Diaz, Vieira, Fuentes, Felício, Jerônimo, Aldo e o padre Gil são personagens simbólicas, representantes dos segmentos sociais que compõem o universo onde Paulo gravita. Do ponto de vista literário, são personagens sem nenhum aprofundamento psicológico. Entretanto, para servir ao arcabouço do roteiro, não poderia ser diferente. Elas existem para dar verossimilhança ao dilaceramento de Paulo. Elas representam o domínio no centro do qual Paulo se imola: ele trai Diaz, porque este não o merecia; mais adiante, é traído por Fuentes e, de certa forma, porque não corresponde às suas expectativas, por Vieira. Por este ângulo, a história de Paulo resume-se a uma história de traições, muito bem explorada no “documentário” à Cidadão Kane que ele produz sobre Diaz, onde o verbo trair é ouvido diversas vezes.

Uma personagem muito curiosa é o “repórter” vivido pelo ator Zózimo Bulbul, que, sem nenhuma fala, está sempre com uma aparelhagem a tiracolo, incluindo um microfone, registrando os acontecimentos em Alecrim. Sua presença chega a ser bizarra, mas ela deve ser vista como mais um símbolo, dos muitos semeados ao longo do filme – a imprensa emudecida, mas ativa? – e é, sem dúvida, pelo inusitado e patético das situações, um índice expressionista.

 

A História como metáfora. Terra em transe, é preciso enfatizar, é uma ficção construída a partir de fatos tragicamente reais. Criado no calor dos acontecimentos, buscando fugir da censura, mas sem perder de vista o objetivo de forjar um novo cinema para o Brasil – um cinema que não fosse apenas entretenimento, mas servisse também à reflexão; um cinema que não mudasse o estado de coisas, não promovesse revoluções, mas que pudesse mudar pessoas, provocar revoluções interiores. Pensar o Brasil a partir de uma criação estética – para além de um artefato meramente comercial. Terra em transe metaforiza a História para contá-la com toda isenção. O atingimento desse objetivo está selado na reação à esquerda e à direita: um filme desagradável, feio, “confuso”, que, ao recriar a História, transcende-a, elevando-a ao patamar de mito.

Passados mais de 40 anos, os nomes dos ditadores assassinos, dos covardes líderes populistas, dos empresários falsamente nacionalistas, dos anônimos líderes populares, das mulheres que saíram às ruas, dos poetas que deram a vida pela causa – todos foram esquecidos. Mas a mitologia de toda uma época está gravada a fogo em cada fotograma de Terra em transe.

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e realidade. In: Colóquio, revista de artes e letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, nº 8, abril, 1960.

COSTA, Cláudio da. Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro. Rio de janeiro: 7Letras, 2000.

FURNESS, R. S. Expressionismo. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1990.

LEITE, Maurício Gomes. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

MACIEL, Katia. Poeta, herói, idiota. O pensamento de cinema no Brasil. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.    

PAZ, Olegário; MONIZ, António. Dicionário breve de termos literários. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

ROCHA, Glauber. Roteyros do terceyro mundo. Organização: Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985.

RODRIGUES, Nelson. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

VALENTINETTI, Claudio M. Glauber, um olhar europeu. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi / Prefeitura do Rio, 2002.

VIANA, Antônio Moniz. Terra em transe. In: Glauber por Glauber. Mostra da obra completa de Glauber Rocha, como ele a desejou. Filmes Exposição Livros Vídeo (catálogo). Edição: João Luiz Vieira. Embrafilme, 1985.

XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

 

 

DEPOIS DO TRANSE. Documentário realizado pela equipe de restauração de Terra em transe, com entrevistas e cenas inéditas. Brasil: 2006. DVD. 113min.

TERRA EM TRANSE. Direção e roteiro: Glauber Rocha. Produção executiva: Zelito Viana. Fotografia: Luiz Carlos Barreto. Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Autran, José Lewgoy, Paulo Gracindo e outros. Brasil: 1967. DVD. 115min.

 



[1] Ver FRAGA, Eudinyr. Nelson Rodrigues Expressionista. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.


quinta-feira, 20 de abril de 2023

A poesia é necessária?

 

homero

Luiza Romão

 

os gregos foram capazes de

X                                                                                  X

x                                                                                  X

x                                                                                  X

x                                                                                  X

x                                                                                  X

x                                                                          X

                                                 milhares de troianos

 

porém

no último canto da ilíada

aquiles devolve a príamo

o corpo de seu filho heitor

 

hoje nesse momento aqui

no sul do sul do mundo

ainda não se tem notícia

dos mais de duzentos desaparecidos

na ditadura militar

 

um corpo é um atestado de barbárie


até os gregos tinham piedade

 

 

terça-feira, 18 de abril de 2023

Absoluta prioridade!

Pedro Lucas Lindoso


Os filhos crescem, casam-se, viram pessoas de bem. Achamos que, em tese, não teríamos mais que nos preocupar. Refiro-me aos perigos que correm as crianças e os adolescentes. Desastres, perigos diversos, drogas, peripécias perigosas, doenças da infância, dentre outros temores. Ledo engano!

De repente chegam os netos. Como disse a grande Rachel de Queiroz: “Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus.”

Tenho três netinhas: Maria Luísa, Maria Helena e Catarina. Isadora, a quarta princesa, está a caminho. Não existe nada mais sublime e divertido do que ser avô.

Para Jesus as crianças são um sinal da bênção do Criador. Elas são inocentes e donas do Reino dos Céus. Vejamos o que diz o Mestre Jesus sobre as crianças: “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas.” (Mateus 19: 14); “Cuidado para não desprezarem um só destes pequeninos! Pois eu digo que os anjos deles nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai celeste.” (Mateus 18:10); “Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo; e quem me recebe, não está apenas me recebendo, mas também àquele que me enviou.” (Marcos 9:36-37).

A nossa Carta Magna de 1988 expressa toda uma preocupação com os pequeninos que não existe, quiçá, em nenhuma outra Carta Política vigente no planeta. Vejamos: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

O primeiro direito expresso com absoluta prioridade é o direito à vida. As nossas crianças devem estar a salvo de toda forma de violência.

Jamais pensei que no outono da vida teria que me preocupar angustiadamente com a segurança de minhas netas e de todos os brasileirinhos e brasileirinhas nos seus ambientes de escola. Como diz a Constituição, é dever de todos, com absoluta prioridade, cuidar da segurança de nossas crianças. É urgente!

 

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Novo livro de Marta Cortezão: uma poética cartografia de silêncios e seus diálogos


Marta Cortezão lança meu silêncio lambe tua orelha.


Marta Cortezão está com o seu terceiro livro de poemas, meu silêncio lambe tua orelha (Editora Toma Aí Um Poema/PR) em pré-venda pelo site de financiamento coletivo Benfeitoria e pode ser acessado pelo endereço https://benfeitoria.com/projeto/lambe. A campanha vai até o próximo 1º de maio.

meu silêncio lambe tua orelha revela uma poética cartografia de silêncios que suscita infindos diálogos entre as inúmeras vozes que se desviam, mas que, ao mesmo tempo, se encontram no corpo nu, flexível e dinâmico da linguagem.  Diálogos que fogem à lógica e transcendem sua corporalidade semântica bem como a essência das coisas e seus ruidosos silêncios, mas que não se esgotam, pedem mais e mais interação. Do ponto de vista literário, o livro traz uma abordagem poético-contemporânea sobre a escrita de autoria feminina e seu devir criativo, mas não somente.



A escritora Vania Clares (SP), que assina a orelha do livro, opina que meu silêncio lambe tua orelha “nitidamente nos remete ao universo feminino numa dimensão diversificada e vasta. A poeta parte das citações de outras escritoras e embrenha-se com maestria em cada palavra para escrever o poema, não só acatando o sentido na sua interpretação, mas criando um corpo que complementa as premissas. (...) Muito mais que isso, a elasticidade dos silêncios devora o corpo desde as entranhas até a alma, quando escancara a sua compreensão de mundo, vivência esta que exercita freneticamente.” 

Uma amostra da poesia de Marta Cortezão:

 

Eu não nasci rodeada de livros, e sim rodeada de palavras.

{Conceição Evaristo}

 

geossintaxe

 

com passos indecisos

percorro as sentenças

da língua que me devora

 

reviro os escaninhos

dos verbos obtusos

cuja geometria

adensa os advérbios

que florescem das pedras

 

meus sapatos sujos de pausas

deixam todas as pegadas

órfãs de sintaxe-delírio

 

onde guardei a palavra exata

com gosto de chuva? 

 

onde minha língua

se entrelaçará na tua

para cópula ardente

de neologismos?

 

quando o sexo verbal

gozará metonímias

em teu corpo metáfora

afro afrodisíaco

Afrodite de palavras?

 

A poeta, escritora e professora Lucila Bonina, ao ler o poema “geossintaxe” que compõe o terceiro poemário de Marta Cortezão, afirma o seguinte: “‘geossintaxe’ é um poema sussurrado por voz afrodisíaca: interroga, induzindo a resposta; oculta, sugerindo onde encontrar; provoca a memória silenciada a vislumbrar um futuro sonoro. Cai na alma como escudo e inspiração. É assim que me toca o poema de Marta. A força que emerge da voz poética feminina que sabe de si e de outras, da língua e do mundo, da luta e do amor.”

Nas palavras de Marta Cortezão, o livro surge “de um silêncio ancestral, social, histórico e político (...). É um compêndio de sonhos repleto de um silêncio eloquente que pede revoada, exige o movimento, o grito, a voz, o canto, a alma, o corpo com todos os seus sentidos, a dança, a liberdade para conjugar o verbo existir em toda sua amplitude, essência e intensidade (...), porque a linguagem que se (re)move em “distraído silêncio” é pássaro indomável, flana livre, foge e se desata mundo afora em busca do “fero desejo de pássaros” a esticar infinitos.” A proposta da autora é de que o livro possa ampliar o diálogo com outros olhos leitores, dedilhando outras silentes notas que, por sua vez, romperão a barragem de outros desconhecidos silêncios, “deixando seu rastro / azul de céu / no mar das coisas / inomináveis”, porque a poesia é correnteza de águas fluindo linguagens.

Os silêncios são o adubo para escrita da autora e ganham, dentro de sua textura volátil e paradoxal, liquidez e profundidade linguístico-poéticas. Para Cortezão, há silêncios que gritam, outros que sugerem, outros que cantam, outros que libertam, outros que aprisionam... Há tanta vida nos silêncios que se solidificam em nós, também nas memórias não vividas que herdamos pela linguagem... Há uma solidão sonora, fria muitas vezes, que brota das pedras, do vento, das águas, de lugares impensáveis para não dizer, mas sempre dizendo do inominável... É preciso afinar os sentidos! Há sempre tanto para essa condição real e humana de sermos tão pouco ou nada no mundo! Eis aqui o que há: silêncios, aqueles no quais nos converteremos quando tudo chegar a ser nada.

 

Sobre a autora

Marta Cortezão (@martacortezaopoeta) nasceu em Tefé, no Amazonas. É escritora e poeta. Possui publicações em antologias nacionais e internacionais. Livros de poesia publicados: Banzeiro manso (Porto de Lenha Editora, 2017), Amazonidades: gesta das águas (Penalux, 2021), Zine Aljavas para Cupido (2022). meu silêncio lambe tua orelha (TAUP, 2023) é seu terceiro livro de poesia. Colunista da Revista Literária Voo Livre. É idealizadora das Tertúlias Virtuais (Prêmio APPERJ/2021) e do blog Feminário Conexões (https://feminarioconexoes.blogspot.com/).

 

Serviço

meu silêncio lambe tua orelha (poesia, 87 p.; editora Toma Aí Um Poema/TAUP). R$ 40,00.

Pré-venda: https://benfeitoria.com/projeto/lambe