Anne Pogoda. |
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
terça-feira, 29 de setembro de 2015
Achei um pente
Pedro Lucas Lindoso
André Souza trabalha no Ministério do Turismo
em Brasília. Conheceu Manaus em 2011 e encantou-se com a cidade. Hospeda-se
sempre no centro e justifica:
– Há sempre algo de bom para se ver no Teatro
Amazonas. O centro de Manaus é charmoso e deve ser melhorado e preservado. Os
turistas agradecem.
Mas as viagens de André são sempre direcionadas
para municípios do interior, não só do Amazonas, mas de todo o Brasil. Há um
projeto antigo do ministério para apoio ao turismo nas pequenas cidades
brasileiras. Deve-se apoiar as festas do interior para atrair mais e mais
turistas.
No nosso estado, além do festival de Parintins,
André já conheceu o Festival de Cirandas de Manacapuru, a Festa do Guaraná em
Maués e muitas outras. Em Barcelos,
conhecida por suas belas praias de rio, André esteve no Festival do Peixe
Ornamental, sempre nos meses de janeiro. Presidente Figueiredo, sede do
ecoturismo da região, tem a Festa do Cupuaçu em novembro.
Perguntei a ele se o trabalho era só diversão.
André me disse que visita os municípios para orientar e promover estratégias
para melhorar o turismo.
– Às vezes a gente esbarra na comunicação. O
Brasil é grande. Há expressões e falares diversos. Eu nem sempre sou
compreendido. Muitas vezes não entendo o que o povo fala.
Disse ter vontade de ir a Itacoatiara para o
Festival da Canção, em setembro. Ouviu falar que em Iranduba, aqui pertinho de
Manaus, tem o Festival do Bodó com farinha, no mês de novembro.
Interessei-me em saber a questão da comunicação
com o pessoal do interior. E ele me disse:
– Gosto de me reunir com o povo, líderes
comunitários, gente da cidade que participa dos festivais, aqueles que ensaiam
as danças. É uma experiência incrível. Até em Espanhol eu já me comuniquei. Em
Atalaia do Norte, Município distante mais de mil quilômetros de Manaus,
localizado no tríplice-fronteira com Colômbia e Peru, tem o interessante Jogos
das Três Fronteiras. O evento é em dezembro.
Voltei ao assunto. Alguma coisa engraçada
ocorreu nessas reuniões com o pessoal local?
– Várias. Quem não se comunica se trumbica. Fiz
uma reunião com líderes de uma comunidade que organizavam a festa da padroeira.
Havia muitas pessoas no evento. Ao final da reunião, perguntei a um dos
participantes:
– O que o senhor achou?
– Achei um pente, me disse.
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
domingo, 27 de setembro de 2015
sábado, 26 de setembro de 2015
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
exercício nº 16
Zemaria Pinto
Setembro não tem sentido,
nas mãos
encanecidas e nas cãs vibráteis
à força do vento,
nós invisíveis
de forcas plantadas
sobre o caminho.
Setembro não tem sentido,
nas pedras
que o tempo acumulou com
precisão
sob nossas retinas
tão fatigadas
e nossos pés vegetais,
tão inúteis.
Os dias fastos são lembranças
fúteis
forjadas na temperança
do ocaso
de nossas últimas desesperanças.
A nós nos resta agora esse torpor
mal encoberto em raras alegrias:
nonadas.
Setembro não tem sentido.
Cristianização da ética médica grega
João
Bosco Botelho
O
processo da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após,
fruto do enfraquecimento das fronteiras romanas, pelas invasões dos visigodos,
introduziu mudanças no sistema mercantil-escravista para o feudal e em
conceitos éticos e morais, especialmente, nos da prática médica. Nesse processo
complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da físis e se
aproximou da doença como mal, entendido como castigo de Deus. Sem pretender
simplificar, o tratamento mais importante para a doença como mal, seria a força
de Deus, Jesus Cristo ou a dos santos protetores, promovendo a cura por meio do
milagre.
É
possível compreender essa abordagem cristã nos conceitos teóricos da ética e da
moral, também nas práticas médicas, como espécie de regressão às conquistas
greco-romanas, que também iria se materializar na organização urbana, no
medievo cristão europeu. As administrações das cidades descuidaram-se com a
higiene pessoal, traçados das ruas, abastecimento de água potável, enterramento
dos corpos nos limites urbanos e esgoto sanitário.
Com
o fechamento das escolas de Medicina nos moldes greco-romanos, no final do
século 5, as práticas médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde
padres e freiras prestaram assistência aos doentes sob a égide da ética e da
moral cristã.
Nesse
período, no interior das abadias e conventos, distante das recomendações
hipocráticas, os padres que exerciam a Medicina provocaram tantos conflitos,
motivados pela má prática, causando sequelas e mortes, que as autoridades
cristãs, nos Concílios de Rems (1131) e de Roma (1139) proibiram que os
religiosos exercessem a Medicina fora das abadias e mosteiros.
Ao
mesmo tempo, os grandes teóricos do cristianismo como Abelardo, Bernard de
Chartre, Tomás de Aquino, entre outros, iniciam o processo de resgate
doutrinário das obras de Platão e Aristóteles, obrigando novas leituras da
ética médica.
No
século 13, tentando vencer as resistências eclesiásticas, Jean Pitard,
cirurgião-barbeiro, funda a Confraria dos Cirurgiões, sob a guarda de São Cosme
e São Damião, introduz normas éticas aos cirurgiões-barbeiros e roupas
diferenciadas que os distinguiriam dos outros que permanecem contrários ao novo
código ético.
Do
outro lado, esses núcleos médicos em algumas abadias e certos mosteiros,
serviram como sementes às futuras universidades que seriam criadas a partir do
século 13, em vários reinos da Europa, na alta Idade Média, quando a ética
médica passaria por novas mudanças.
As
abadias de Salerno e Montpelier, dois núcleos importantes das futuras
universidades, se distinguiriam por retomarem antigos conceitos éticos gregos
da Escola de Cós. Ambas valorizaram a base ética da Medicina, até hoje válida:
“Em primeiro lugar, não façam mal”.
As
fricções sociais e outros fatores econômicos e políticos abriram as portas para
o Renascimento europeu que marcaria novo tempo na Europa, interferindo
diretamente na ética médica oriunda do medievo: publicação mecanizada dos
livros, ruptura com as interdições eclesiásticas e dissecção pública de corpos
humanos, publicação dos livros “De humani corporis fabrica” de André Vesálio;
“A cirurgia”, de Ambroise Paré; “Christianismo restitutio”, de Miguel Servet,
contestando a veracidade da Trindade Cristã; “De viscerum structura”, de
Marcelo Malpighi, descrevendo o mundo somente visível sob as lentes de aumento,
iniciando o pensamento micrológico.
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
terça-feira, 22 de setembro de 2015
Objetos de desejos
Pedro Lucas Lindoso
Há
pessoas que são viciadas em consumir, comprar coisas. Até mesmo coisas que não
precisam.
A
querida tia Idalina soube que Imelda Marcos havia deixado cerca de mil e
duzentos pares de sapatos para trás. Isso lá pelos anos oitenta do século
passado. O fato ocorreu quando Imelda e o ditador Ferdinand Marcos foram
expulsos das Filipinas. Titia correu para ver quantos pares havia em seu closet. Chocada, contou vinte e oito
pares. De imediato, livrou-se de oito. Um tanto quanto contrariada, pois como
Imelda Marcos, adora um sapato. Mas foi
uma questão de consciência, explicou-me.
Em
viagens, somos todos levados a comprar. Há gente que viaja tão somente para
fazer compras e não são comerciantes. Normalmente, somos atraídos por coisas
que não existem em nossas cidades.
Tina,
sobrinha de Idalina, comprou um enorme cocar do Caprichoso, no último festival
de Parintins. No avião, a aeromoça pediu que colocasse o cocar no bagageiro,
por medida de segurança. Tina se recusou. As lindas penas de cor azul seriam
amassadas e estragadas. A solução foi usá-lo durante a viagem até o Rio de
Janeiro. A moça causou espanto e admiração entre os passageiros.
Meu
colega e amigo Chaguinhas esteve em Cancun, no México. Viu um enorme sombrero.
A mulher dele foi logo avisando:
–
Isso não cabe na mala. Não conte comigo para levar na mão.
Chaguinhas
não resistiu. Desde que assistiu na sua juventude, filmes western, Zorro e outros filmes americanos do gênero, quis ter um
sombrero.
Os
sombreros têm normalmente um cone comprido e largas abas, usadas para a
proteção contra o sol escaldante do México. O sombrero do Chaguinhas tinha um
cone consideravelmente comprido e abas muito, mas muito largas mesmo.
Do
México até Manaus, incluindo uma conexão na Cidade do Panamá, o sombrero só foi
motivo de discórdia. De fato não coube na mala e ninguém queria ser responsável
por carregar o tal enorme sombrero ao avião. Alojá-lo no bagageiro da aeronave
foi bem complicado.
Em
Manaus, a polêmica continuou. Não havia lugar para o tal majestoso sombrero nem
na sala, nem no quarto de ninguém, nem no escritório do Chaguinhas. Chaguinhas
havia pagado trinta dólares pelo sombrero. Conseguiu vendê-lo por cem reais num
site da internet.
Sapatos,
cocar indígena, sombreros e outros tantos, são objetos de desejos de muitas
pessoas. Mas transportá-los pode ser um problema.
domingo, 20 de setembro de 2015
sábado, 19 de setembro de 2015
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Marcileudo Barros (16/02/1951 – 17/09/2015)
Autor de O Boteco, Meninas, Esquinas, Sobre o amor e suas nuances, entre outros títulos, Marcileudo Barros foi um escritor à margem – agora, ele chega à terceira margem. |
Mundo
cão! E eu nele
Maldição!
E eu nele.
Mil
traças pra me consumir.
Mil
garras pra me destruir.
Tento
o avanço, canso.
Mil
barreiras, mil desvios,
mil
abismos pra cair...
Meninas
(fragmento)
A menina pediu;
a mãe resistiu.
A menina insistiu;
a mãe permitiu.
A menina saiu
com promessas mil
de não chegar tarde demais.
A mãe ficou sozinha, mas
uma ponta de inveja da
menina dela e a saudade
dela menina foram atrás.
Esquinas
(fragmento)
Pra quem se acha
Rei ou Rainha
e não vê mais ninguém,
na esquina tem um Rei
e uma Rainha também.
Tem palhaço, trapezista,
homem de aço, equilibrista.
Tem também ilusionista
que pode se transformar
em qualquer tipo da lista.
Pra quem se acha
Rei ou Rainha
e não vê mais ninguém,
a esquina tem surpresas
e sofrimentos também.
O beijo
O beijo não abre
toda válvula de escape
do desejo.
Até porque ele é o começo.
E quando ele é o fecho,
a apoteose,
ou não temos o desejo
ou temos o gozo precoce.
Caindo a ficha
Vendo revista feminina
Cheia de mulheres nuas
Bumbuns maravilhosos
Xiri em feitio de lua
Foi que eu vi quanta bosta
Tenho comido pela rua.
Catarse
Creio que algumas pessoas
Vêem nos poemas pornográficos
Uma espécie de gráficos
De suas incompetências
E se tornam críticos ácidos
Taxando-os de indecência.
E se perdem da ludicidade
Em cada experiência.
Invenção
Tem mulher que a boca é dez
Os peitos pontos abaixo
A bunda menos ainda
O xiri um esculacho.
Você goza no boquete
Ai inventa um diabete
Pra não enfiar no tacho.
No Sense
Tem casal enciumado
E faz sentido.
O neguinho é sarado
Neguinha só peito e priquito.
Um bumbum arredondado
Um rosto bonito.
Mas tem casal que, puta merda
Ciúme de cu pra cu
Só um comeria o outro
Famoso casal “only you”.
Desprovida
Tem mulher que mais parece
Uma carta em desmazelo
Um buraco e um corte
Arrodeado de pelo.
Os peitos é que lembram a carta
Pois mais parecem dois selos.
Desgaste
Se xiri gastasse dedo
Feito pedra de esmeril
Eu não teria mais que três
Por mais que tivesse mil.
(Poemas de Marcileudo Barros)
Código de ética médica na Grécia platônica e hipocrática
João Bosco Botelho
O marco organizador da ética médica na Grécia
platônica e hipocrática foi a escola de Cós, e Hipócrates o seu principal
agente. Apesar de os indicativos etimológicos e linguísticos indicarem que as
72 obras contidas no “Corpo Hipocrático”, como é conhecido o conjunto de textos
produzidos na ilha de Cós, somente 12 terem sido escritos por Hipócrates, esse
conjunto filosófico e médico iniciou o processo da separação da Medicina das
ideias e crenças religiosas e instrumentalizou a ética médica.
Um dos mais importantes é o texto de Políbio,
genro de Hipócrates, que elaborou a Teoria
dos Quatro Humores, a primeira para explicar a saúde e as doenças fora das
ideias e crenças religiosas. O corpo seria constituído de quatro humores:
sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso preto; quando ocorresse a
predominância de um sobre os outros, ocorreria a doença. Por essa razão, é
possível considerar esse acontecimento como o primeiro corte epistemológico da
Medicina.
Um exemplo marcante da presença do pensamento
jônico é o livro “Dos ventos, águas e regiões”, de autor desconhecido, do
século 4 a.C., que assegura a impossibilidade de ser bom médico aos que não
conhecem as características das estações do ano, o clima, os ventos, as águas e
o curso do Sol.
Platão, além de reconhecer a notabilidade de
Hipócrates, deixou claro algumas características da Medicina grega desse
período, com forte influência dos conceitos jônicos da natureza. Entre os mais
importantes a noção de físis, como elemento de ligação da Medicina à materialidade
da doença.
Nesse contexto, com certa influência jônica das
igualdades do clima sobre todos, no extraordinário livro “Leis” (857D e 720
C-D), pela primeira vez na História, Platão aclarou à humanidade que, naquele
tempo, como hoje, existia marcante diferença entre as práticas médicas nos
ricos e pobres. De modo satírico, Platão
descreve que quando estão contando pessoas ricas, os médicos explicam
detalhadamente a doença e as características do tratamento. Ao contrário,
quando consultam os escravos, as consultas eram rápidas, sem qualquer
explicação sobre a doença e o tratamento.
Um dos textos da Escola de Cós, o Juramento,
voltado ao interesse do doente, mesmo com forte presença das ideias e crenças
religiosas ainda no parágrafo introdutório, é o estágio divisor entre o antes e
o depois na história da ética médica. Desse modo, a Medicina iniciou outra fase
– ser útil ou não ser nociva à vida humana (primum
non nocere) – e o médico entendido como o agente dessa ação. A segunda mais
importante mudança em relação ao Código de Hammurabi foi a introdução do
segredo médico. A vertente dominante para conceber a Medicina como suporte à
vida, jamais causando malefício, também está no juramento ao condenar a
cirurgia para a retirada da pedra da bexiga, quando sempre determinando a morte
do doente.
Ao lado desses extraordinários avanços e
controle ético da Medicina, os gregos não abandonaram os deuses protetores.
Asclépio, o deus protetor da Medicina, filho de Apolo, também curador, com a
bela mortal Corones, foi educado pelo centauro Quirão, para ser mais cirurgião
do que médico. O deus da Medicina grega, representado pela serpente enrolada no
bastão da madeira, era celebrado no dia 18 de outubro, mesma data na qual, na
atualidade, os médicos continuam comemorando o dia da Medicina, sob a proteção
de São Lucas, o evangelista médico.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
terça-feira, 15 de setembro de 2015
A priori, um chopp
Pedro
Lucas Lindoso
Advogado
militante, Chaguinhas vive o Direito e coisas da Justiça vinte quatro horas por
dia. Entre uma galhofa e outra, adora usar o juridiquês, o jargão típico dos
operadores do direito, em situações do dia a dia. Quando algo é anormal ou fora
do esquadro, Dr. Chaguinhas vai logo dizendo:
–
Isso é inconstitucional.
Essa
semana encontrei-o apavorado. Teria cometido uma ilicitude gravíssima.
Chaguinhas
foi a um seminário jurídico em Salvador. Chaguinhas é fiel a sua esposa, mas
foi seduzido por uma garota de programa. Precavido, decidiu que quem pagaria a
conta não seria a pessoa física Chaguinhas, mas o CNPJ da pessoa jurídica
Chaguinhas Advogados Associados. Tudo isso para enganar melhor a cônjuge
virago.
Infelizmente
o pior aconteceu. A mulher dele desconfiou daquele fim de semana inusitado em
Comandatuba. Marquinhos, um “faz tudo”
de Chaguinhas, para evitar perder o emprego, abriu o jogo para a patroa. Algo
como uma delação premiada.
A
mulher de Chaguinhas pediu o divórcio. Seria o fim, a essa altura da vida,
dividir todo o patrimônio, incluindo os imóveis herdados de seu pai, posto que
Chaguinhas é casado em comunhão universal de bens.
Pediu
desculpas e nada. Foi aí que Dr. Chaguinhas propôs um acordo de leniência.
Muito na moda ultimamente, é aquele em que uma pessoa jurídica (no caso o
escritório do Chaguinhas) envolvida em ilegalidade denuncia o esquema e se
compromete a auxiliar na sua investigação. O Chaguinhas Advogados se
comprometeu a comprovar que era só uma acompanhante e nada mais. Prometeu
ressarcir todos os custos da noitada em qualquer viagem ao exterior. Em troca, Chaguinhas pessoa física pode
receber o benefício do perdão e retirada do pedido de separação.
A
esposa aceitou. Vão viajar para Austrália e Nova Zelândia, antigo sonho de
consumo da virago.
Estávamos
num barzinho comemorando o acordo de leniência, quando Chaguinhas pediu ao
garçom:
–
A priori, um chopp. Eu disse que o rapaz não ia entender. E ele:
–
Entende sim. A posteriori darei a ele um bom pixuleco, nome em voga para
gorjeta.
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
A cena de uma vida
Inácio
Oliveira
As
cortinas se fecham e a plateia aplaude, sem entusiasmo. É o fim da linha, eu
sei. Tudo porque Joana insistiu que encenássemos uma peça do Nelson Rodrigues.
Enquanto as comédias abarrotam os teatros, nós apresentamos uma peça em que o
personagem diz que o ser humano é um fracassado, para três ou quatro pessoas na
plateia. Depois desta noite, nossa companhia irá se dissolver: alguns irão para
outras companhias, uma moça irá trabalhar na televisão, alguém fará stand up e os outros, simplesmente,
desistirão do teatro.
Restamos
Joana, Armando e eu. Armando diz que só abandonará o teatro quando fizer o
papel do Rei Lear. Ensaia todos os dias as falas do seu personagem, está pronto
para entrar em cena a qualquer momento. Olhando para seus cabelos brancos,
sentado à cabeceira da mesa, enquanto jantamos, penso que ele ficou velho com
este único propósito, o de interpretar Rei Lear. O que Armando não sabe é que
já não mais há teatro para ele abandonar. Joana e eu continuamos insistindo
porque, na verdade, já não sabemos fazer mais nada das nossas vidas.
Foi
por isso que aceitamos fazer parte do desvario daquele triste senhor. O
telefone toca e alguém diz que Dr. Herculano desejava ter uma audiência comigo.
Desculpe-me, não conheço nenhum Dr. Herculano. Mas ele conhece o senhor, admira
seu trabalho e quer lhe fazer uma proposta. Proposta? Que tipo de proposta? Ele
prefere dizer pessoalmente. Marquei o encontro com Sr. Herculano no Bar
Sebastian. Estava lá há uns quinze minutos pensando que mais uma vez alguém me
enganara. Já me preparava para ir embora quando um senhor atravessou a porta do
bar, olhou em minha direção e pareceu me reconhecer. Sentou-se à mesa comigo,
apoiando-se na bengala. Impressionou-me sua bengala esculpida de uma maneira
impecável. Tive vontade de pedir para tocá-la, mas fiquei com medo que ele me
achasse esquisito. Chamou o garçom com um gesto que era ao mesmo autoritário e
elegante. Jurei que ele fosse pedir chá, mas pediu whisky, sem gelo. Sorveu o
líquido do copo de vidro com um único gole. Suas mãos pareciam o chão de um
lugar onde nunca chove.
Quero
parabenizá-lo pelo seu trabalho, ele disse. Assisti a montagem de Dias sem Febre, de João Marcilio.
Encantou-me a forma como você manipula os elementos dispersos da trama, a
sobriedade do cenário e o uso sensato da iluminação. Devo dizer que, sem
dúvida, você é um jovem talentoso. Eu sabia que tudo aquilo era mentira, mas me
agradavam suas palavras e eu gostei do tom rouco e cansado da sua voz, como se
tudo que ele dissesse tivesse o peso de uma incontestável verdade. Fiz um gesto
que pretendia indicar modéstia e deixei que ele continuasse falando. A razão do
nosso encontro é que eu tenho uma peça e quero que ela seja encenada.
Um
dramaturgo tardio, eu pensei. Veja bem, senhor, as coisas no teatro são
difíceis. Conseguir espaço, público, tudo isso é muito difícil. Além disso
minha companhia de teatro se desfez, restamos três pessoas apenas. Eu estou
disposto a arcar com todas as despesas, pago o que for preciso. Bem, nesse
caso, as coisas mudam. Quantos atos têm a sua peça? Atos? Não, não há atos.
Certo, partes. Quantas partes sua peça têm? Não se trata de partes, é só uma
cena. Então o senhor me dê o texto escrito e veremos os custos para encená-la.
Não é algo que eu, propriamente, tenha escrito. É algo banal, meu caro. Uma
cena que poderia acontecer na mesa de um bar como este, ou na rua, com qualquer
pessoa, mas que para mim tem um sentido muito particular. Pagarei o quanto você
achar razoável, mas preciso que a cena seja exatamente como vou lhe dizer.
O
cenário é o de uma praça em uma cidade do interior. Há um playground e um pipoqueiro. Algumas árvores, e as folhas caem dando
à praça um aspecto de abandono. Passa um garoto em um triciclo e em seguida um
senhor com um cão. Em um banco estão sentados um rapaz e uma moça. O rapaz
veste um camisa polo azul, uma calça brim de cor marrom e um sapato preto sem
cadarços. A moça usa um vestido florido, curto, porém discreto e possui nos
cabelos um laço em forma de borboleta. Entre eles se dá o seguinte diálogo.
A
MOÇA – Se você pedir para eu ficar, eu fico.
(O
rapaz fica em silêncio, enquanto passa uma mulher empurrando um carrinho de
bebê).
A
MOÇA – Basta uma palavra sua...
O
RAPAZ – Fique, tudo o que eu quero é que você fique.
É
só isso, pensei em perguntar, mas percebi que minha pergunta soaria estúpida. Quero
que você me dê a ilusão de uma grande obra de arte, disse-me, porque só a arte
é perdurável. Lembrei do teatro intimista de Strindberg, mas preferi não
mencionar o dramaturgo sueco. É uma cena interessante, disse-lhe. Mas, senhor,
com todo o respeito, quem iria ao teatro assistir apenas a uma cena? Além
disso, ninguém nesta cidade compreenderia o simbolismo das árvores com as
folhas caindo e a metáfora do tempo no senhor que passa com o cão e na mulher
empurrando o carinho de bebê. Ele riu como se caçoasse de mim. Você não
entendeu, meu jovem, está peça não é para o público, apenas eu vou assisti-la e
ninguém mais. Colocou algumas notas sobre a mesa e disse. Espero que isto sirva
como adiantamento, me procure quando tiver a data de estreia da minha peça.
Comecei
a preparar o cenário naquela tarde. Aluguei um galpão que havia servido como
teatro há alguns anos, mas agora estava abandonado. Foi difícil colocar três
árvores no palco e fazer com que suas folhas caíssem no momento exato da cena,
fora isso, foi fácil recriar uma praça de interior. Depois de pronto ficou até
bonito, nostálgico. Convidei dois jovens da escola de teatro para fazerem a
moça e o rapaz. Precisava, agora, de um pipoqueiro, de um cão, de um garoto com
um triciclo e um carrinho de bebê. Joana seria a mulher que empurra o carrinho
e Armando, o senhor que passa com cão. Pobres figurantes, uma atriz que já
havia sido Medeia e um ator que deseja ser Rei Lear. Ninguém entendeu porque eu
queria montar uma cena de cinco de minutos para uma única pessoa. Eu, para
justificar a mim mesmo, dizia, dinheiro, é só dinheiro.
No
dia de estreia o senhor Herculano apareceu, pontualmente, no horário marcado.
Vestido em traje de gala como se fosse assistir a uma ópera. Quando as cortinas
se abriram eu senti a mesma emoção de quando, pela primeira vez, uma peça minha
estreou em um teatro lotado. Olhei para a plateia e vi o único espectador, um
octogenário muito concentrado, à espera do grande espetáculo. A iluminação
procura imitar o pôr-do-sol. Na última hora decidi não colocar música nenhuma
para não tornar a cena ainda mais vulgar. As folhas fictícias das árvores caem
lentamente, em silêncio. O pipoqueiro faz um breve giro com seu carrinho no
canto esquerdo do cenário. Há um playground
recém-abandonado, como se as crianças tivessem deixado de brincar ainda há
pouco. Sentados no banco, o rapaz e a moça são duas sombras semi-iluminadas;
aos pouco uma luz incide sobre eles revelando seus rostos. Eles estão se
olhando fixamente como se procurassem ver a imagem de si mesmos nos olhos do
outro. Um garoto atravessa o palco fazendo manobras no triciclo, dando à cena
um tom que não pretendia ser cômico. Armando caminha puxando um cão pela
coleira, tem a postura ereta e a expressão aristocrática de um lorde; neste
momento ele me parece um canastrão. A luz se concentra sobre o casal sentado no
banco. Ela diz – Se você pedir para eu ficar eu fico.
Olho
para plateia e percebo que o senhor Herculano se sobressalta ao ouvir a voz da
garota. O rapaz, sempre em silêncio, adquire uma expressão pensativa,
ponderando sobre o futuro. Joana passa empurrando um carrinho de bebê; parece
uma mãe frustrada, desgostosa da vida. Novamente a moça. Basta uma palavra sua.
O rapaz olha para ela e diz, empostando a voz. Fique, tudo o que eu quero é que
você fique. A cortinas se fecham, ninguém aplaude. O senhor Herculano está
sozinho na plateia, vejo ele chorando, mas ninguém se aproxima.
domingo, 13 de setembro de 2015
sábado, 12 de setembro de 2015
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
exercício nº 8
Zemaria
Pinto
os
ecos de setembro inda ressoam
na
seda refletida em cores débeis
no
manto da cidade adormecida
nos
tímpanos noturnos da manhã
os
gritos de setembro são vagidos
impressos
em meu peito mineral
abutres
e panteras concertados
na
lúgubre canção das incertezas
os
gestos tatuados nas retinas
são
rastros que carrego como um fardo
da
inútil temporada em nosso inferno
no
meio bem no meio do caminho
a
escolha didatiza meu fracasso
entre
o sim que é não e o adeus que é sempre
Prêmios e castigos do trabalho médico na Mesopotâmia e no Egito antigos
João Bosco Botelho
Um
desses indícios de práticas médicas oficiais executadas por médicos
reconhecidos pelas estruturas de poderes, é o Código de Hammurabi, do fim do
século 19 a.C., um dos mais antigos códigos de leis voltado à organização
social, na Mesopotâmia, em escrita cuneiforme, na estela de diorito negro,
hoje, em exposição no setor de antiguidades orientais, no Museu do Louvre. Na
realidade, foi a primeira estrutura de leis contendo, claramente, os direitos e
deveres dos médicos, estabelecendo o pagamento pelos bons serviços e severas
punições pela má prática. Também é interessante assinalar que os preços e
castigos variavam de acordo com o estamento social do doente. Os preços mais
caros pelos serviços prestados e castigos mais severos pelos maus resultados
estavam ajustados aos doentes mais ricos e socialmente importantes.
Apesar
de não ser o código de leis mais antigo, é possível estruturar alguns preceitos
valorativos em torno do Código de Hammurabi, até hoje, entendido para manter a
ordem interna do reino:
–
Mesmo reconhecido como uma gigantesca tentativa de unificar e reformar o
direito no reino, claramente, não abrange todos os pontos conflituosos do
cotidiano social da época;
–
É essencialmente dirigido para conter os abusos em diversas áreas das relações
sociais, certamente, geradoras de situações de conflito;
–
Dos 282 artigos do Código de Hammurabi, 12 deles regulavam os trabalhos dos
médicos, contidos num conjunto de outros que tratava dos direitos e deveres dos
veterinários, barbeiros, pedreiros e barqueiros;
–
As dos trabalhos médicos compreendem oito leis, todas voltadas ao trabalho
médico cirúrgico;
–
Os direitos e deveres dos médicos que executavam procedimentos invasivos e os
dos doentes submetidos às cirurgias estavam vinculados, estritamente, à ordem
escravista numa sociedade rigidamente hierarquizada. Nesse sentido, o pagamento
pela boa prática e o castigo para má prática, eram proporcionais à importância
social do doente, respectivamente, quanto mais importante na ordem social fosse
o doente, mais dispendioso o pagamento e os castigos mais severos;
–
Para que o Código de Hammurabi legislasse de modo tão explícito os direitos e
deveres dos médicos e doentes, em detrimento de outros que não foram citados,
era porque os conflitos sociais determinados pelas más práticas e/ou maus
resultados alcançaram níveis de conflitos suficientes para gerar resposta
administrativa. Dessa forma, na Mesopotâmia, no período Hammurabi, foi iniciado
o processo de controle das atividades profissionais dos médicos.
No
Egito, as principais fontes históricas que fornecem informações das práticas
médicas, são o livro de Heródoto, “História”, e o de Deodoro de Sicília, “Livro
Sagrado”, os papiros que receberam os nomes das pessoas que divulgaram os
respectivos conteúdos, Smith, Eberth. Os tratamentos eram espécies de receitas
de bolo, usadas sem variações. Contudo, algumas delas são particularmente muito
interessantes porque além de prescreverem corretamente, como o uso do digital
para as doenças do coração, adicionavam prognósticos, em duas vertentes, as doenças
curáveis e as incuráveis.
É
possível que os conflitos entre médicos e pacientes não tenham alcançado níveis
suficientemente intensos para gerar respostas junto à administração. No Egito,
do segundo milênio a. C., não se conhecem registros específicos de códigos que
regessem, a exemplo do de Hammurabi, as práticas médicas.
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
terça-feira, 8 de setembro de 2015
A mulher que virava trouxa
Pedro
Lucas Lindoso
Lendas
urbanas são histórias de caráter fabuloso e geralmente divulgadas de forma
oral. O termo “lenda urbana” foi usado
pioneiramente por Jan Harold Brunvand, professor de Inglês da Universidade de
Utah.
Brunvand
escreveu sobre lendas urbanas americanas e seus significados. A ideia do
professor era chamar atenção para o fato de que as lendas e folclores não
acontecem exclusivamente nas chamadas sociedades primitivas ou tradicionais. E
ainda, pode-se aprender bastante sobre a cultura moderna e urbana ao estudar
tais lendas.
A
nossa querida cidade de Manaus é cheia delas.
Domingo
passado fui ao Bairro da Compensa pegar uma encomenda de costura. Dona Auxiliadora, a costureira, ralhava com
uma moça que jurava não ter furtado determinada calça.
Dona
Auxiliadora relatava que quando jovem, uma moça jurou para a mãe dela que não
tinha praticado um furto. A moça teria respondido:
–
Se fui eu quero que a maior fera do mundo me pegue.
Um
enorme jacaré, saído do Igarapé de Educandos, teria abocanhado a tal moça. A fera
passeou com a garota por todo o bairro. Arrastando-a pela boca. Uma outra,
matou a irmã, chamada Neca. Negou o fato e fez a mesma jura. Foi devorada pela
fera ao lavar roupa no Igarapé. Esclareceu-se assim o homicídio, segundo a
vizinhança.
Disse
a dona Auxiliadora que já tinha escutado essa história. Ela me afiançou ser
verdade. Contou-nos ainda da fogueteira. Também moradora de Educandos, a moça
fogueteira teve o desplante de bater na sua mãe. Virou porco. Teve esse nome
porque, antes de virar porco, furtava, desobedecia e batia na mãe. E pegava
fogo. Virou a fogueteira de Educandos.
A
cabocla já estava bastante assustada com as histórias e os relatos da dona
Auxiliadora. Por fim contou-nos a lenda
da mulher que virava trouxa, de roupa, claro. Rolava pelas ruas e ladeiras do
bairro, assustando todo mundo. Sempre depois da meia-noite
A
mocinha saiu apavorada. Retornou com a tal calça, desculpando-se com a
costureira. Pegou a calça por engano, explicava-se. Não iria ser comida por
fera nenhuma. Muito menos correr o risco de pegar fogo ou transformar-se em
porco. Menos ainda virar trouxa e sair rolando pelas ruas do bairro, assustando
as pessoas.
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Lábios que beijei 50
Zemaria Pinto
Romana
Nos anos 1960, o mundo
virou literalmente de cabeça para baixo. Passado dos 30, era difícil acompanhar
o turbilhão de mudanças que os jovens promoviam – e alguns nem tão jovens, como
Luther King e Timothy Leary. Mas os grandes paradigmas, pelo menos na minha
cabeça, eram as drogas e a liberalidade sexual – que, aliás, eu já praticava,
apenas pelo meu lado, havia mais de duas décadas. Foi então que conheci Romana,
15 anos mais jovem, meio hippie, um tanto mística, e absolutamente desregrada. Romana
fazia teatro, escrevia crônicas para um jornal “alternativo”, que era publicado
junto com um jornalão, aos domingos, e apresentava-se como poeta e artista
plástica. Não era uma coisa e nem outra: não produzia nada, além de muita
fumaça, o dia inteiro. E quando estava sem erva ficava extremamente depressiva.
Mas era jovem e bela – qualquer sacrifício seria suportável. Insuportável só
mesmo o seu discurso feminista, que ela liberava a qualquer momento, nas horas
mais impróprias, o que acabou por me tornar alvo de piada dos amigos. Mas como
era gostosa!.., especialmente quando estava chapada, gozando vezes sem conta e
falando coisas desconexas e belas – êxtase, transe, poesia. O sol de mim
vasculha a madrugada vem de girassóis encharcado o cheiro de mato pra mim meu bichinho
bonito vem comigo nesse campo de estrelas as flores na minha cara a carne nas
minhas pétalas macias gardênia solitária vem meu pelo no teu mamilo minha boca
tua boca saliva mel a tua mão na minha luz vem meu veleiro o mar revolto porto
vem... Gravei essas palavras sem o consentimento dela; eram mais de 15 minutos
de delírio. Quando mostrei-lhe, num acesso de fúria, quebrou o gravador e fez o
mais destruidor discurso que uma mulher, dona de sua privacidade e de sua
poesia, faria – e nunca mais me olhou nos olhos. Tantas vezes repeti aquela
fita, que ainda ouço Romana gemendo gozos e murmurando pássaros nas madrugadas
da minha devastação.
domingo, 6 de setembro de 2015
sábado, 5 de setembro de 2015
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