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| Segunda Ponte Romana, na antiga rua Municipal. |
ensaios, contos & outras prosas
Alma corsária
Claudia Roquette-Pinto
De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.
Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.
O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.
Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
– e só me apaixono por casos
perdidos,
homens com um quê de irremediável.
Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça sequestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.
Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo.
Sim, eu acredito no corpo.
Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.
Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.
Pedro Lucas Lindoso
Tia
Idalina, como sempre, adora bater um papo via Whatsapp. Eu muitas vezes ligo para titia para saber as
novidades. Ela sempre tem uma opinião sobre fatos, podcasts, notícias de jornal
impresso, programas de TV e outras mídias.
Idalina
assiste a concursos de miss. Disse-lhe que achava esses concursos um tanto démodé.
O charme dos anos sessenta e setenta não existe mais. As moças de hoje ficam
todas muito parecidas, com idade indefinida. Antigamente as misses eram garotas
solteiras, com, no máximo, 24 anos. Hoje há mulheres casadas e algumas quase
balzaquianas, sem querer ser incorreto ou misógino.
Ela
concordou comigo. Mas assiste para ver até onde vai a falta de bom senso e a
ousadia da produção. E o nível de despreparo e cafonice de algumas candidatas.
Então o assunto foi o Concurso de Miss Universo 2025. De acordo com Idalina
este é o mais prestigiado e possivelmente o mais antigo.
Foi no
certame de 1954 que a baiana Martha Rocha ficou em segundo lugar por ter duas
polegadas a mais. Como se sabe, nos Estados Unidos não se usa metro e
centímetros. Ora, uma polegada equivale a 2,54 centímetros. Então Martha Rocha perdeu
por pouco mais que cinco centímetros. Titia me disse que foi na cintura. O
traje típico de Martha Rocha foi, evidentemente, de baiana. Fez sucesso.
O
Amazonas não esquece a sua eterna miss Terezinha Morango. Também ficou em
segundo lugar. O traje típico de Terezinha também foi de baiana. Hoje seria de
cunhã-poranga. Mas naquele longínquo ano de 1957, o traje típico oficial das
brasileiras era de baiana, graças a famosa Carmen Miranda.
Sobre o
assunto traje típico, Idalina me disse que nesse ano a brasileira se superou na
questão de falta de senso, desrespeito, cafonice e quiçá um ato de heresia.
Como assim heresia, perguntei. E ela indignada, estupefata e até certo ponto
nervosa, disparou:
–
Aquela pequena nossa representante teve a audácia de se fantasiar de Nossa
Senhora Aparecida. Quando vi aquilo quase tive um troço. Traje totalmente
inapropriado. A moça errou feio. Em outros tempos poderia ser excomungada. Eu
já vi de tudo nessa vida. Mas esse tipo de heresia é a primeira vez. Não se
brinca nem se desrespeita Nossa Senhora. Vestir-se de Nossa Senhora Aparecida
para desfilar no Miss Universo foi algo inadmissível. Perguntei-lhe onde havia
sido o concurso. Ela me disse que foi em Bangkok na Tailândia. Quem venceu foi
a mexicana. Ora, a brasileira poderia ter ido de baiana! Aquilo não é traje
típico. É traje atípico.