Zemaria Pinto
Há exatos 90
anos, Ezra Pound publicou a primeira versão da sua teoria poética,
definitivamente sistematizada três anos depois.
Numa palestra para entendidos em poesia, esse tópico frasal causaria comoção:
90 anos?!... Certamente, começariam a abandonar o recinto ou a desligar o
aplicativo. Acrescento ainda, para os que não sabem, que Pound (1885-1972),
norte-americano, era assumidamente fascista, tendo vivido na Itália de
Mussolini, de 1925 a 1945, quando foi capturado pela Resistência e entregue às
forças de seu país natal, sendo preso, torturado e declarado “doente mental
perigoso”, ficando isolado nessa condição por doze anos. Uma teoria de 90 anos,
formulada por um fascista, então? Sim. E ainda não ultrapassada. Se você –
minha cara leitora, meu caro leitor – estivesse naquela hipotética sala, continuaria
me ouvindo? Se positivo, sigamos adiante. Se não, obrigado pela atenção e até outra.
Só não me cancele...
A teoria de Pound
resume-se ao seguinte: há três modalidades de poesia; aquela em que predominam
propriedades musicais, baseadas em características próprias da poesia, como
metrificação, estrofação, rima, assonância, aliteração, anáfora etc.; uma
segunda, onde as imagens são construídas a partir de figuras de linguagem consagradas
na retórica, como metáfora, metonímia, alegoria, sinestesia, hipálage etc.; e,
por fim, aquela em que predominam as ideias, a reflexão, sem prescindir das
propriedades musicais e imagéticas – Pound dizia que esta é “a dança do
intelecto entre as palavras”. Respectivamente, o querido leitor, a querida
leitora, irão encontrar essas definições com os nomes gregos que Pound preferia:
melopeia, fanopeia e logopeia.
Memórias de
barrancos, de Isaac Melo, é um livro singular.
Sua primeira qualidade é fugir de modismos e hermetismos inócuos, construindo
uma poesia que tem cores e odores próprios. Uma poesia sensorial, que quase
pode ser tocada. E que os idiotas – os daqui e os de lá – chamariam de regionalismo,
como se isso fosse um crime de lesa-literatura e não um atributo para além do
meramente acessório, o que leva à segunda qualidade do livro: sua universalidade.
Calcada no contemporâneo, longe de se datar, colabora com a compreensão do que
acontece para além do noticiário ordinário, atrelado a facções e a discursos
que entendem a obra de arte apenas na sua superfície visível a olho nu com a
mente em suspensão.
Alguns clichês
descartáveis, um ou outro adjetivo supérfluo e até mesmo inevitáveis “gralhas”,
podem ser corrigidos (ou não) numa próxima edição – o que me lembra um ensinamento
poundiano: poesia é condensação, poesia é medula. Só assim, o poeta pode
alcançar o máximo da sua expressão, atingindo a “linguagem carregada de
significado até o mais alto grau possível” – outra sacada de Pound. Formado em
filosofia, o autor orienta sua poesia a repensar a condição humana – e como ele
está em Rio Branco ou Tarauacá, não em São Paulo ou no Paraná, sua poesia
repensa o seu universo próximo – não apenas a gente, mas os mitos que fundaram
essa gente.
Os oitenta e
quatro poemas que compõem o livro não estão divididos por temas, embora
obedeçam a uma organização lógica – que, às vezes, é negada. Mas isso não tem
muita importância, embora fosse desejável. O poema que abre o livro – “Da
Amazônia” – tem uma clara função de “poética”, na medida em que anuncia para o
leitor o que o espera na leitura dos poemas consequentes:
escrevo
da Amazônia (...)
escrevo
com estes barrancos (...)
escrevo
com estes igarapés podres (...)
São os versos que
iniciam as três primeiras de dez estrofes. “Corpos rebeldes / que sucumbem nas
periferias”; “rios assoreados”, onde faltam peixes “e se envenenam as águas”; a
violência das queimadas; o sangue de indígenas, posseiros e quilombolas; matas
que viram pastos, pastos que viram cemitérios.
escrevo
também com as mãos calejadas
deste
povo sofrido (...)
às
vezes atadas, às vezes em oração
mãos
em luta ou em luto
mas
jamais em vão
O segundo poema,
que dá título à coletânea, “Memórias de barrancos”, tem uma construção inusual,
nas suas seis páginas e meia, misturando versos curtos e versos longos, que
podem ser, equivocadamente, tomados como prosa, mas são poesia de alta tensão,
lembrando um remoto Roberto Piva ou ainda um não menos longínquo José Agripino
de Paula. E aqui, sigo o ensinamento soberano de Pound: nenhum poeta está
sozinho no mundo. É preciso comparar e descobrir conexões, ainda que não
intencionais. O poema de Isaac Melo tem um tom de manifesto, procura vínculos, nexos,
links:
coração
de ouricuri, dentes de coco jarina
olhos
de sementes de mulungu
pele
de barranco, cabelos pretos de igapós
mãos
de sapupemas, dedos de cipós (...)
kaxinawá
yawanawá katukina ashaninka (...)
e
foi assim, sem brasão nem nobiliarquia, às margens do rio tarawaká, que tudo se
deu. (...)
aí
chamaram o delegado que chamou o pastor que chamou o padre que chamou o bispo
que chamou a corte celestial do supremo (...)
A ironia de Isaac
Melo tange a crueldade, quando trata da poesia como mero instrumento de
ascensão social:
poesia,
poesia sempre, não a guardada em potinhos, daquelas que os poetas lavram e
levam para a admiração das confreiras e confrades sempre casta e castrada nunca
cáustica.
Aliás, poesia
cáustica não cabe na mediocridade de grupinhos de mensagens.
A aproximação com
a poesia de Thiago de Mello é explícita: “faz escuro e eu me espanto”. Tal como
em Thiago, a poesia de Isaac é comprometida – com a vida. “Memórias de
barrancos” corre o risco mesmo de datar-se: quem haverá de lembrar-se, daqui a
vinte, trinta anos, do sentido destas palavras de maldição?
chores
por quem trocou o cristo pelas figuras caricatas dos messias de armas nas mãos
com seus apóstolos da ignorância e da ignomínia do medo e da morte
Os dois poemas
citados dão o tom geral do livro, mas não esgotam o prazer de novas descobertas,
surpreendendo o leitor com subtextos diversos. Mulheres fortes: “A bisavó”, “Chica”,
“Maria Mulher”, que “trabalhava o dia inteiro / e à noite ainda apanhava do
companheiro”. Futebol-ópio: abordado no poema-título, retorna em “Seleção”, “e
as almas exangues / já não aguentam gritar / tantos gols de sangue”. A poesia
do silêncio: “Intervalo”, “O pó”, “A sombra”, “Epifania”, “No escuro”. A
delicadeza dos tercetos, nas páginas 57 a 68. Imagens de altíssima densidade
poética, como “o vento, pendurado no varal” (“Porque é domingo”); “o desossar
das horas” (“Prisioneiros”); “sob o escarro do tempo” (“A existência”); “as
vísceras das horas” (“A sombra”); “a vida tem o comprimento / de um banzeiro”
(“Banzeiro”); “a lembrança em mim é água de repiquete” (“Memorial lírico da
infância”); “o sangue das horas lentas” (“Momento”), um improvável diálogo com
Raimundo Monteiro, como improvável é o diálogo com Anibal Beça em “Terna
colheita”.
Sem descuidar do ritmo,
da melodia e da harmonia, a principal sustentação das ideias em Memórias de
barrancos são mesmo as imagens. O neologismo “servilização”, por exemplo,
do poema “Coração doador”, é em si mesmo uma ideia que reflete uma imagem de
servilidade, opondo-se à civilidade – esta, tão transparente que prescindimos
de imagem para entendê-la. O poema “Uma tarde na Amazônia” tem um desfecho
surrealista:
acordo-me,
a rede é agora um poema
meu
corpo, um rio de palavras
leio-me
na nudez de minhas águas
E lembrando que,
afinal, ninguém está sozinho, o poema “Epitáfio” é um papo descontraído com uma
das “Polonaises” de Leminski: “um dia / a gente ia ser homero / a obra nada
menos que uma ilíada”.
Intertextos.
A ironia, figura
presente na maior parte dos poemas de Isaac Melo, pode ser ilustrada, sem
necessidade de maiores explicações, no poema “Depois do último”, que transcrevo
na íntegra:
depois
do último
indígena
sucumbir
pela
bala envenenada
do
capital
vão
erguer
em
plena capital
em
bronze maciço
um
grande memorial
para
eternizar
e
ensinar
às
gerações futuras
o
amor
e
o valor
das
culturas
Se “os artistas são as antenas da raça”, como
acreditava Ezra Pound, Isaac Melo, de seu posto, às margens do Tarawaká plantado,
capta, processa e retransmite os sinais da servilização, fazendo o seu trabalho
de metamorfose – mudando a banalidade em linguagem – para que um dia cheguemos ao
estágio da civilização. Ou não.
|
Criador e criatura. |