Wladimir
Lênin não tem esse nome por acaso. Seu pai era um aficionado da cultura russa.
Não necessariamente por questão ideológica. Apesar de ser adepto do socialismo,
nunca foi militante. Sequer foi membro de qualquer partido de esquerda.
Seu
sonho de consumo era conhecer Moscou e principalmente Leningrado. A cidade de
São Petersburgo tornou-se Leningrado em homenagem a Lênin, um dos líderes da
Revolução Russa. Esse nome permaneceu até o fim da União Soviética em 1991.
Houve um plebiscito e a população local optou por restabelecer o nome original
da cidade que voltou a ser São Petersburgo.
Outra
paixão do pai de Wladimir era Fiodor Dostoievski, um dos maiores escritores da
literatura russa e mundial. É conhecido por sua habilidade em explorar a
psicologia humana, a moralidade e a espiritualidade em suas obras. E também Tolstói,
o principal representante do realismo russo, que escreveu obras marcadas por
doutrinação moral, nacionalismo crítico e temática social.
O pai
de Wladimir Lênin estudava a língua russa por puro diletantismo. Chegou a ter
uma professora polonesa, de origem russa, que falava e ensinava o idioma. Mas
como já era idosa, veio a falecer. Entretanto, deu ao seu aluno uma base sólida
do idioma.
Durante
o período militar seu pai esteve preso pelo simples fato de falar russo! Não
havia feito nenhuma militância e sequer era membro de partido comunista. Foi
preso por falar russo e conhecer a literatura russa! Coisa de regime
autoritário! Viva a democracia!
Wladimir
Lênin nunca foi socialista. Ao contrário.É um empresário de sucesso. Mas herdou do pai uma certa implicância com
os americanos. Conhece a Europa e até o Canadá. Mas jamais foi aos Estados
Unidos. E, curiosamente, é uma das poucas pessoas que conheço que nunca tomou
uma Coca-Cola!
Seu
filho, Wladimir Junior é possivelmente o único aluno de sua escola que nunca
foi a Disney. Mas já conhece a Europa e até o Japão. Ano passado fez quinze
anos e pediu novamente para conhecer a Flórida. Wladimir pai convenceu o filho
a ir para a África do Sul e fazer um safári.
Nesse
outubro a escola de Junior vai fazer uma grande festa de Halloween. Wladimir
pai considera a festa uma ingerência cultural. Macaquice de brasileiros.
Wladimir quer ir vestido de Chucky, o boneco assassino. O pai dele protestou
veementemente. E sugeriu que ele fosse fantasiado de Curupira.
Notável artista plástico,
Moacir Andrade jamais deixou de escrever poemas, uma atividade paralela, embora
bissexta, usando a nomenclatura de Manuel Bandeira para os poetas eventuais.
Talvez por ser produzida esparsamente, a poesia de Moacir Andrade não guarda um
“programa”, uma unidade: são registros momentâneos, “dores de cotovelo”,
homenagens a amigos, reflexos de momentos particulares. Em conversa pessoal, o
próprio pintor confidenciou-me que sua arte está toda em seus quadros, sendo a
poesia uma espécie de passatempo, um hobby
ocasional. Entretanto, como não poderia deixar de ser, há um forte colorido nas
imagens que o poeta cria, como se as quisesse levar para um quadro, embora não
prevaleçam sobre o abstrato que domina a sua poesia, feita mais de sentimentos
e menos de matéria concreta.
O poema “Espera” faz
parte de uma coletânea reunindo vários autores, o que dificulta sua análise
comparativa com poemas de um determinado grupo, dentro da obra do autor. De
qualquer forma vamos observar o poema em si mesmo, seus aspectos técnicos e sua
inserção histórica no grupo que fez poesia dentro do Clube da Madrugada.
O poema divide-se em
quatro estrofes, mas talvez a intenção inicial do autor tenha sido dividi-lo em
cinco, ocorrendo na terceira um erro de impressão, o que não altera em nada a
essência do texto. Os versos, na sua maioria, são decassílabos, com dois
eneassílabos (o nono e o décimo primeiro) e um octossílabo (o décimo), o que
parece ser outra falha, especialmente em relação a este último, onde há um
truncamento da ideia que se quer passar. Porque estou a contar sílabas se o
poeta pode optar pelo verso livre dessas amarras tolas? É que o poema, pela
forma como se estrutura, física e mentalmente, pede simetria de estrofação e de
métrica, do contrário não consegue atingir o ideal romântico que está em seu
cerne. É um caso de forma imbricada ao conteúdo, necessariamente. Vejamos a
primeira estrofe.
Os símbolos positivos
transformam-se em negativos, num movimento brusco, depressivo: “rosas de ouro”
se transformam em “musgos ressequidos”; “noite”, em “sóis e tardes
cismarentos”; estes abrigam a alma do eu lírico que sonha com a amada
impossível. Na segunda estrofe, a chegada da “musa” é saudada com um
“gregoriano canto de alvoradas / oh cofres de oferendas encantadas”. Curioso é
que esse canto coral é o canto do poeta, individual, e que este pouse em seus “olhos
como brumas”, outro símbolo negativo, pois embaça a visão. Em outras palavras,
a chegada da musa transtorna o eu lírico, impedindo-o de ver a realidade.
A terceira e alongada
estrofe começa com uma tautologia: “és meu vaticínio predizendo”. O verso seguinte,
embora pareça truncado, tem uma leitura simples: “que o meu destino ao teu será
atado”. Os versos consequentes “como plectro aos sons gerando estrelas / num
bailado de cores encantadas” são ilustrativos, sem relação direta com o
discurso poético, mas buscando um efeito plástico, a partir das imagens que
produz. A sequência enfatiza a ideia de solidão atormentada, estabelecendo uma
relação inusitada entre “navegando” e a combinação montado/galopando.
A última estrofe fecha a
ideia clássica do poeta romântico que só encontra a paz na morte – o mal do
século. Século 19. A “chama que me aquece” não é a presença física, mas apenas
a idealizada, que o faz ouvir “sons de flauta, de liras irreais”, e trazem
também o “olor da morte”. Neste ponto, o que parecia dúbio se esclarece: a
amada só existe em sonhos e na imaginação do poeta: está morta. Analisemos o
último verso do poema, um heroico perfeito: “que me esmaga de dor, de angústia
e pranto”. É a presença espectral da amada que o esmaga, que o atormenta. A “espera”
a que o título de refere não é pela chegada da mulher amada, mas sim pela
viagem final do poeta ao encontro dela.
Essa vertente ultrarromântica
– no Brasil, a chamada “segunda geração romântica”, de Álvares de Azevedo,
Casimiro de Abreu e Fagundes Varela – tem certas características que hoje podem
soar estranhas, como essa fidelidade extrema diante da morte. Mesmo antes do
Romantismo, e até depois dele, era comum essa idealização da vida, optando o
poeta por viver como uma personagem de si mesmo. Daí morrerem cedo, acometidos
da imensa tristeza de viver. Além da tuberculose, claro, que, aos olhos de
hoje, era mera consequência dessa prostração. Os poetas que chegavam à
maturidade, entretanto, eram aqueles que separavam vida e poesia – e levavam
suas vidinhas medianas longe das musas, chegando-se a elas somente quando
convocados – pelo estro, que pressiona e impulsiona, ou pela necessidade
financeira, o que é, por si, justificável.
A poesia de Moacir
Andrade, a tomar como parâmetro o texto “Espera”, distancia-se da excelência
dos poetas não pintores do Clube da Madrugada. Volto novamente às lições de
Manuel Bandeira, ao escrever na sua autobiografia intelectual, Itinerário de Pasárgada, que – parceiro
de Jaime Ovalle e Villa-Lobos, entre outros – ao colocar letra em uma melodia,
ele só pensava no efeito musical, jamais na poesia. Moacir Andrade, como um bom
vate, acertou em cheio ao elaborar a letra que iria harmonizar com a boa música
que Mauri Mrq faria para ela.
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(Poeta,
jornalista, membro da Academia
Amazonense de Letras)
Os
homens constroem cidades à sua imagem e semelhança. O medo dos homens faz das
cidades fortalezas. A religião dos homens faz das cidades santuários e arenas
de guerras santas. A ganância dos homens faz das cidades paraísos fiscais e
centrais de mercadorias, cujo único valor é despertar o querer pelo que não se
precisa.
A
maldade dos homens faz das cidades campos de extermínio. A indiferença dos
homens faz das fortalezas, dos santuários, dos paraísos fiscais, dos campos de
extermínio, um simples acidente de percurso, porque os homens sempre têm a
arrogante certeza de que tudo já foi escrito e sempre será como sempre foi: o
mundo não tem cura – com certeza, por isso, sempre que escavam sob os próprios
pés, surge a antiguidade de uma cidade, com a cara e a coragem dos que a
habitaram, antes que outra ambição de cidade a substituísse.
Quando
uma cidade (isto é, os que a habitam) comemora a sua fundação ela já é muito
mais antiga do que o seu calendário cívico tenha capacidade de registrar. Mesmo
que tenha sido fundada hoje e agora.
Hoje e
agora, aos 354 de fundação e 174 de elevação a essa categoria que a todos
enleva, Manaus cumpre, desta vez, o ritual de aniversário, meio que sem jeito
de festejar: a garganta dos rios que a cortejam está seca; o céu do seu
território sem indústrias, pleno de fumaça, e não de nuvens; a floresta que a
circunda, empurrada para cada vez mais longe dos seus mirantes, que ainda nem
foram de todo construídos – Manaus sempre quis ver a floresta de longe; e sua
população multirracial, perplexa, tatua na pele, como está na moda, o sinal
interrogação, que não deixa o sono tranquilo, e impregna de mal-estar o café da
manhã e o resto dos dias.
Qual é
a importância da idade de uma cidade, senão o que representa no presente e para
os presentes – os ausentes não podem saber o que estão perdendo?
É
possível extrair dessa interrogação uma oferenda aos presentes deste presente e
à memória venerável dos ausentes e, quem sabe, para esclarecimento dos que
virão (e para que não precisem escavar muito fundo para saber qual a imagem e
semelhança do que herdaram) uma verdadeira história desta cidade que amamos e
odiamos, como a nós mesmos, porque a construímos exatamente como a queremos ou
a queríamos... e não deu certo.
Se
alguma coisa não vai bem com uma cidade é porque a humanidade que a constrói e
desconstrói a todo momento está doente. A História, mesmo em fragmentos, é o
“remédio caseiro” que levará à cura de todos os males. É preciso conhecê-la,
como à palma da mão. A História nos lembra que NÓS (assim em letras graúdas)
somos a cidade. NÓS temos a idade da cidade; ela é a NOSSA responsabilidade,
ninguém mais – responsabilidade não se transfere (vamos brincar – não é uma
festa de aniversário? – de tentar lembrar o nome de quem elegemos para nos
representar na última eleição).
Manaus
é a nossa imagem e semelhança. Queiramo-nos bem, e tudo, tudo vai dar pé.
Quando nos sentimos mal (ou bem), estamos diante do espelho. Manaus ainda não
se viu no espelho. Não sabe(mos) o que está(mos) perdendo. Os portugueses não
construíram um império contando piada em botequim. Provavelmente, foi assim que
o perderam. Manaus pede passagem. Queiramo-la bem. Nós merecemos.
São
Paulo é a terra da garoa. Fortaleza é conhecida pela gostosa brisa do mar.
Londres tem o famoso “fog” londrino. Um nevoeiro que pode ser considerado uma
instituição inglesa. Como o nosso mormaço e os ventos de Codajás.
Manaus
amanheceu com um nevoeiro estranho e ameaçador. Nossa cidade enfrentou esse
fenômeno insalubre e desagradável. Como se fôssemos Londres às avessas. Se a
canção diz que nosso porto nunca será Liverpool, tampouco nossa metrópole terá
um nevoeiro romântico e palatável como o “fog” londrino. Mesmo porque as
origens são diversas.
O nosso
nevoeiro, diferente do londrino, é consequência das queimadas. O caboclo
amazônida faz isso desde sempre. Nessa época do ano eles queimam os roçados
para prepará-lo para a chegada das chuvas. Mas isso era sempre feito em pequena
escala. Agora há queimadas criminosas. E a floresta está cada dia que passa em
maior perigo.
Quanto
ao nevoeiro de Londres a estória é outra. Ir a Londres e não se deparar com um
nevoeiro é praticamente impossível. O “fog”, como é chamado pelos britânicos,
traz charme para a cidade. Normalmente faz muito frio e raramente neva em
Londres. No inverno e em muitos dias do ano a cidade está envolta a essa tão
conhecida neblina. O “fog” faz parte da vida e da cultura dos londrinos, como o
nosso mormaço.
Entretanto,
em de dezembro de 1952, há 70 anos, um grande nevoeiro cobriu toda Londres. De
início, os cidadãos acreditaram que a névoa seria como as outras tantas que
comumente fazem parte do cotidiano britânico. Porém, ao anoitecer, o ambiente
começou a ficar estranho. O céu ficou amarelado e a cidade toda foi tomada por
um cheiro de ovo podre. Aquela névoa era letal, e começou devido a um desastre
ecológico de poluição que ficou marcado na história britânica.
Devido
aos problemas no pós-guerra, o carvão de melhor qualidade para o aquecimento
havia sido exportado Como resultado, os londrinos usaram o carvão de baixa
qualidade, rico em enxofre. Isso causou o desastre ecológico conhecido como
“The Great Smog”. Muitas pessoas morreram. A fumaça tóxica invadiu até os
ambientes fechados.
Manaus
nunca foi Liverpool, mas já foi a Paris dos trópicos.Estaria agora em triste processo de emulação
a Londres, com seu “Great Smog”. Ou seja, o que ficou na História da Inglaterra
como o “Grande Nevoeiro”. Mas o que aconteceu há 70 anos, não mais se repetiu.
E nós? Quando iremos controlar esse “great smog baré”. Socorro, por favor!
Help, somebody help!
·Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975)
·Os estatutos do Homem (1977)
·Vento geral – poesia 1951/1981 (1981)
·Horóscopo para os que estão vivos (1984)
·Mormaço na floresta (1984)
·Num campo de margaridas (1986)
·De uma vez por todas (1996)
·Campo de milagres (1998)
·Acerto de contas (2015)
O TESTEMUNHO
Thiago de Mello (1926-2022)
III – AMAR
No campo de silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo
a ser, e quando sou
– sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.
O tempo que ficou,
e, aquém de mim, me espera,
reclama o existir turvo.
Então, perdido, torno;
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:
quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.
A dor é ecolongínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,
lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.
Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho
que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,
onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:
dor esplêndida e dura
– dor de ser
e de amar.
Porque de amar, perdura.
E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para a noite do mundo.
Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor
a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria
que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.
O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
– sómesmo
o coração:
pois nele cabe Deus.
Na história
da literaturaamazonense
Thiago de Mello ocupa uma posiçãosingular: seulivroSilêncio e Palavra, de 1951, saudado pelanata da críticabrasileiracomo
a maisgratarevelação da Geração
de 45, coloca a literaturaamazonense
no mapa da literaturabrasileira. Mesmo
morando no Rio de Janeiro,
nunca perdeu contatocomsuaterra e, a despeito
de realizar uma literaturauniversal, suacondição de jovemcaboclo – umjungle boy
da poesia – despertava o interesse de mestrescomo Manuel Bandeira,
Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athayde e Gilberto Freyre, entreoutros. O pessoalque, três anosdepois, iria fundar
o Clube da Madrugadaainda ensaiava seusprimeirospassosquando Thiago já
obtinha reconhecimentonacional. Atéquepontoisso estimulou os queaqui ficaram? No mínimo,
abriu-lhes a perspectiva do aeroporto, incutindo-lhes a confiança
de quetambémeles poderiam voaralto. Foi o que
fizeram os participantes da “caravana”, queem 1951 e 1953 empreenderam viagens procurando saber o queafinal se
produzia no restante do país.
A poesia
de Thiago de Mello tem trêsfases distintas: a primeira,
marcadamente lírica e existencialista; a segunda,
de cunhosocial
e político; a terceira,
reunindo características das duas anteriores, traz à tona
a preocupaçãocom
a saúde do planeta.
Emresumo,
uma poesiaquecomeça intimista, voltada ao interior do poeta, evolui para uma poesia de interessecoletivo
– inicialmente, comrelação ao país,
que passou mais
de 20 anosemregime de exceção,
e, na faseatual,
comrelação
a todo o planeta.
Nesta, além da abordagemsobre o meioambiente, quando
o poeta se transforma emguerreirodefensor
da floresta, persiste a inquietação
política e social.
O poema
“O testemunho” está inserido na primeirafase, comoparte da coleção de poemasO andarilho
e a manhã (1953-1955), inserido emVentoGeral, volumeque reúne 30 anos
da poesia de Thiago de Mello, de 1951 a 1981. O poema, na verdade,
divide-se emtrêspartes: “Ser”,
“Ter” e “Amar”. Vamos analisarcommaisdetalhes a
última, mas,
parasuamelhorcompreensão,
façamos umbreve
relato sobre as primeiras. O poema relaciona o fazer
poético com uma predestinaçãodivina: o poetanão escolhe, é escolhido. Masisso é ditoporpalavras formando imagensnemsempreclaras ao leitormenosatento.
Em “Ser”, ele ouve o chamamento e suareação é de recusa, mas
é inútil: o poeta
alimenta-se de “dor e silêncio”, no campo
“onde pastam manhãs”
– elemesmo.
Thiago de Mello dá uma conotaçãometafísicaparaexplicar o que o vulgarmente chamamos inspiração.
A segundaparte
do poema, “Ter”,
mostra, sobaltatensãopoética, a recompensapor essa escolha:
“dor sofrida é salário”;
maisadiante:
“com essa dor
se cunha / a moedaemcujaefígie / vê-se o perfil
dos anjos”. O ofício
do poeta é construir a manhã – “envoltaemcânticos”
– para se contrapor à “noite do mundo”.
“Amar”
é a síntesedialética
desse movimentoentre
o ser e o ter. O poeta inicia falando da dificuldadeparacriar: “no campo de silêncio...
/ tardo / a ser,
e quando sou / – sou pouco. O muito
é a dor”. As estrofesseguintes metaforizam essa dor da criação:
“lua de trevaemcéu / já desabado, pedra
/ lavada pelachuva”.
Mas a lutanão é de todo
vã, “pois a dorantiga, eterna...
/ dor de ser
e de amar” permite ao poetatrazer dessa viagem
ao âmago de si
“uma trevamaisdoce / para a
noite do mundo”
– e às vezes uma auroraque o aclara também.
Aíele
percebe – humilde, mas
amargurado – quepouco
avançara na construção da manhã.
Consola-o, no entanto, saberque o que
há de grandeemsi, inclusive
de grandiososofrer, é seucoração, “pois nele cabe Deus”.
Essa conclusão
pode parecer decepcionante, do ponto
de vistaestético,
mas devemos analisá-la sob a perspectiva
do homem e não
do artista, pois
é esteque,
desde a primeiraparte do poema,
se nos apresenta, ao tentarfugir do chamado da poesia.
A umpoema
frustrado, o poeta-artista reagiria como
Drummond: “Lutarcompalavras / é a lutamais vã. / Entanto
lutamos / mal rompe a manhã”. O poeta-homem, contudo,
se recolhe piedosamenteemsuasorações, pedindo forças
renovadas – paracontinuar
tentando, ouquem
sabe, parar, de uma vezpor todas. As preces
de Thiago de Mello, ao que parece, foram
paracontinuar
construindo manhãs – o queele faz commaestria há
mais de 60 anos.
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Este é o primeiro de uma série de 15 textos de breves análise de poemas, extraídos do livro Lira da Madrugada, que comemorou os 60 anos do Clube da Madrugada. Junto com o livro, saiu um CD, com as músicas que Mauri Mrq compôs para os poemas e que hoje podem ser ouvidas no YouTube:
Clique sobre a figura, para ter acesso ao YouTube.