Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Vai de Curupira!

Pedro Lucas Lindoso

 

Wladimir Lênin não tem esse nome por acaso. Seu pai era um aficionado da cultura russa. Não necessariamente por questão ideológica. Apesar de ser adepto do socialismo, nunca foi militante. Sequer foi membro de qualquer partido de esquerda.

Seu sonho de consumo era conhecer Moscou e principalmente Leningrado. A cidade de São Petersburgo tornou-se Leningrado em homenagem a Lênin, um dos líderes da Revolução Russa. Esse nome permaneceu até o fim da União Soviética em 1991. Houve um plebiscito e a população local optou por restabelecer o nome original da cidade que voltou a ser São Petersburgo.

Outra paixão do pai de Wladimir era Fiodor Dostoievski, um dos maiores escritores da literatura russa e mundial. É conhecido por sua habilidade em explorar a psicologia humana, a moralidade e a espiritualidade em suas obras. E também Tolstói, o principal representante do realismo russo, que escreveu obras marcadas por doutrinação moral, nacionalismo crítico e temática social.

O pai de Wladimir Lênin estudava a língua russa por puro diletantismo. Chegou a ter uma professora polonesa, de origem russa, que falava e ensinava o idioma. Mas como já era idosa, veio a falecer. Entretanto, deu ao seu aluno uma base sólida do idioma.

Durante o período militar seu pai esteve preso pelo simples fato de falar russo! Não havia feito nenhuma militância e sequer era membro de partido comunista. Foi preso por falar russo e conhecer a literatura russa! Coisa de regime autoritário! Viva a democracia!

Wladimir Lênin nunca foi socialista. Ao contrário.  É um empresário de sucesso. Mas herdou do pai uma certa implicância com os americanos. Conhece a Europa e até o Canadá. Mas jamais foi aos Estados Unidos. E, curiosamente, é uma das poucas pessoas que conheço que nunca tomou uma Coca-Cola!

Seu filho, Wladimir Junior é possivelmente o único aluno de sua escola que nunca foi a Disney. Mas já conhece a Europa e até o Japão. Ano passado fez quinze anos e pediu novamente para conhecer a Flórida. Wladimir pai convenceu o filho a ir para a África do Sul e fazer um safári.

Nesse outubro a escola de Junior vai fazer uma grande festa de Halloween. Wladimir pai considera a festa uma ingerência cultural. Macaquice de brasileiros. Wladimir quer ir vestido de Chucky, o boneco assassino. O pai dele protestou veementemente. E sugeriu que ele fosse fantasiado de Curupira.

 

Veja mais sobre o tema em:

Nem ralouin nem Saci: hoje é o dia do Curupira!

 

domingo, 29 de outubro de 2023

Manaus, amor e memória DCXLII


Manaus vista de um igarapé.
Ao fundo, o Teatro Amazonas.

 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Lira da Madrugada – Moacir Andrade 2/15

  

Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Moacir Andrade

Nome completo: Moacir Couto de Andrade

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 17 de março de 1927

Falecimento: 17 de julho de 2016

 

Obra poética:

·       Portais (2006)


ESPERA                    

               Moacir Andrade (1927-2016)


Como rosas de ouro debruçadas

sob esta noite – musgos ressequidos

mora minh’alma que sonha contigo

fundida em sóis e tardes cismarentos.

 

Chegaste agora musa do meu canto

gregoriano canto de alvoradas

oh cofres de oferendas encantadas

pousando nos meus olhos como brumas.

 

És meu vaticínio predizendo

que o meu por ti será atado

como plectro aos sons gerando estrelas

num bailado de cores encantadas

lívido estou, agora, neste instante,

navegando meu sonho como astros

montado neste azul do meu tormento

galopando meus versos do infinito.

 

Tu és amor, a chama que me aquece

sons de flauta, de liras irreais

ninando este abandono olor da morte

que me esmaga de dor, de angústia e pranto.

   

Notável artista plástico, Moacir Andrade jamais deixou de escrever poemas, uma atividade paralela, embora bissexta, usando a nomenclatura de Manuel Bandeira para os poetas eventuais. Talvez por ser produzida esparsamente, a poesia de Moacir Andrade não guarda um “programa”, uma unidade: são registros momentâneos, “dores de cotovelo”, homenagens a amigos, reflexos de momentos particulares. Em conversa pessoal, o próprio pintor confidenciou-me que sua arte está toda em seus quadros, sendo a poesia uma espécie de passatempo, um hobby ocasional. Entretanto, como não poderia deixar de ser, há um forte colorido nas imagens que o poeta cria, como se as quisesse levar para um quadro, embora não prevaleçam sobre o abstrato que domina a sua poesia, feita mais de sentimentos e menos de matéria concreta.

O poema “Espera” faz parte de uma coletânea reunindo vários autores, o que dificulta sua análise comparativa com poemas de um determinado grupo, dentro da obra do autor. De qualquer forma vamos observar o poema em si mesmo, seus aspectos técnicos e sua inserção histórica no grupo que fez poesia dentro do Clube da Madrugada.

O poema divide-se em quatro estrofes, mas talvez a intenção inicial do autor tenha sido dividi-lo em cinco, ocorrendo na terceira um erro de impressão, o que não altera em nada a essência do texto. Os versos, na sua maioria, são decassílabos, com dois eneassílabos (o nono e o décimo primeiro) e um octossílabo (o décimo), o que parece ser outra falha, especialmente em relação a este último, onde há um truncamento da ideia que se quer passar. Porque estou a contar sílabas se o poeta pode optar pelo verso livre dessas amarras tolas? É que o poema, pela forma como se estrutura, física e mentalmente, pede simetria de estrofação e de métrica, do contrário não consegue atingir o ideal romântico que está em seu cerne. É um caso de forma imbricada ao conteúdo, necessariamente. Vejamos a primeira estrofe.

Os símbolos positivos transformam-se em negativos, num movimento brusco, depressivo: “rosas de ouro” se transformam em “musgos ressequidos”; “noite”, em “sóis e tardes cismarentos”; estes abrigam a alma do eu lírico que sonha com a amada impossível. Na segunda estrofe, a chegada da “musa” é saudada com um “gregoriano canto de alvoradas / oh cofres de oferendas encantadas”. Curioso é que esse canto coral é o canto do poeta, individual, e que este pouse em seus “olhos como brumas”, outro símbolo negativo, pois embaça a visão. Em outras palavras, a chegada da musa transtorna o eu lírico, impedindo-o de ver a realidade.

A terceira e alongada estrofe começa com uma tautologia: “és meu vaticínio predizendo”. O verso seguinte, embora pareça truncado, tem uma leitura simples: “que o meu destino ao teu será atado”. Os versos consequentes “como plectro aos sons gerando estrelas / num bailado de cores encantadas” são ilustrativos, sem relação direta com o discurso poético, mas buscando um efeito plástico, a partir das imagens que produz. A sequência enfatiza a ideia de solidão atormentada, estabelecendo uma relação inusitada entre “navegando” e a combinação montado/galopando.

A última estrofe fecha a ideia clássica do poeta romântico que só encontra a paz na morte – o mal do século. Século 19. A “chama que me aquece” não é a presença física, mas apenas a idealizada, que o faz ouvir “sons de flauta, de liras irreais”, e trazem também o “olor da morte”. Neste ponto, o que parecia dúbio se esclarece: a amada só existe em sonhos e na imaginação do poeta: está morta. Analisemos o último verso do poema, um heroico perfeito: “que me esmaga de dor, de angústia e pranto”. É a presença espectral da amada que o esmaga, que o atormenta. A “espera” a que o título de refere não é pela chegada da mulher amada, mas sim pela viagem final do poeta ao encontro dela.

Essa vertente ultrarromântica – no Brasil, a chamada “segunda geração romântica”, de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela – tem certas características que hoje podem soar estranhas, como essa fidelidade extrema diante da morte. Mesmo antes do Romantismo, e até depois dele, era comum essa idealização da vida, optando o poeta por viver como uma personagem de si mesmo. Daí morrerem cedo, acometidos da imensa tristeza de viver. Além da tuberculose, claro, que, aos olhos de hoje, era mera consequência dessa prostração. Os poetas que chegavam à maturidade, entretanto, eram aqueles que separavam vida e poesia – e levavam suas vidinhas medianas longe das musas, chegando-se a elas somente quando convocados – pelo estro, que pressiona e impulsiona, ou pela necessidade financeira, o que é, por si, justificável. 

A poesia de Moacir Andrade, a tomar como parâmetro o texto “Espera”, distancia-se da excelência dos poetas não pintores do Clube da Madrugada. Volto novamente às lições de Manuel Bandeira, ao escrever na sua autobiografia intelectual, Itinerário de Pasárgada, que – parceiro de Jaime Ovalle e Villa-Lobos, entre outros – ao colocar letra em uma melodia, ele só pensava no efeito musical, jamais na poesia. Moacir Andrade, como um bom vate, acertou em cheio ao elaborar a letra que iria harmonizar com a boa música que Mauri Mrq faria para ela.  


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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A poesia é necessária?

 

O mundo coberto de fumaça


Inácio Oliveira

 

Daqui do pórtico ardente

vejo insanas criaturas

sofrendo sob a canícula;

 

em voos de fuga inútil,

tristes pássaros confusos

sob um turvo céu de bronze;

 

vejo um cão que fecha os olhos

retendo a última lágrima

no meio dia da sede.

 

Cobras, onças e crianças

estão imóveis na espera

que a vida seja possível.

 

Só as árvores resistem

inventando abrigo, frutos

amargos e compaixão.

 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Manaus – nossa imagem e semelhança

 Aldisio Filgueiras

(Poeta, jornalista, membro da Academia Amazonense de Letras)

 

Os homens constroem cidades à sua imagem e semelhança. O medo dos homens faz das cidades fortalezas. A religião dos homens faz das cidades santuários e arenas de guerras santas. A ganância dos homens faz das cidades paraísos fiscais e centrais de mercadorias, cujo único valor é despertar o querer pelo que não se precisa.

A maldade dos homens faz das cidades campos de extermínio. A indiferença dos homens faz das fortalezas, dos santuários, dos paraísos fiscais, dos campos de extermínio, um simples acidente de percurso, porque os homens sempre têm a arrogante certeza de que tudo já foi escrito e sempre será como sempre foi: o mundo não tem cura – com certeza, por isso, sempre que escavam sob os próprios pés, surge a antiguidade de uma cidade, com a cara e a coragem dos que a habitaram, antes que outra ambição de cidade a substituísse.

Quando uma cidade (isto é, os que a habitam) comemora a sua fundação ela já é muito mais antiga do que o seu calendário cívico tenha capacidade de registrar. Mesmo que tenha sido fundada hoje e agora.

Hoje e agora, aos 354 de fundação e 174 de elevação a essa categoria que a todos enleva, Manaus cumpre, desta vez, o ritual de aniversário, meio que sem jeito de festejar: a garganta dos rios que a cortejam está seca; o céu do seu território sem indústrias, pleno de fumaça, e não de nuvens; a floresta que a circunda, empurrada para cada vez mais longe dos seus mirantes, que ainda nem foram de todo construídos – Manaus sempre quis ver a floresta de longe; e sua população multirracial, perplexa, tatua na pele, como está na moda, o sinal interrogação, que não deixa o sono tranquilo, e impregna de mal-estar o café da manhã e o resto dos dias.

Qual é a importância da idade de uma cidade, senão o que representa no presente e para os presentes – os ausentes não podem saber o que estão perdendo?

É possível extrair dessa interrogação uma oferenda aos presentes deste presente e à memória venerável dos ausentes e, quem sabe, para esclarecimento dos que virão (e para que não precisem escavar muito fundo para saber qual a imagem e semelhança do que herdaram) uma verdadeira história desta cidade que amamos e odiamos, como a nós mesmos, porque a construímos exatamente como a queremos ou a queríamos... e não deu certo.

Se alguma coisa não vai bem com uma cidade é porque a humanidade que a constrói e desconstrói a todo momento está doente. A História, mesmo em fragmentos, é o “remédio caseiro” que levará à cura de todos os males. É preciso conhecê-la, como à palma da mão. A História nos lembra que NÓS (assim em letras graúdas) somos a cidade. NÓS temos a idade da cidade; ela é a NOSSA responsabilidade, ninguém mais – responsabilidade não se transfere (vamos brincar – não é uma festa de aniversário? – de tentar lembrar o nome de quem elegemos para nos representar na última eleição).

Manaus é a nossa imagem e semelhança. Queiramo-nos bem, e tudo, tudo vai dar pé. Quando nos sentimos mal (ou bem), estamos diante do espelho. Manaus ainda não se viu no espelho. Não sabe(mos) o que está(mos) perdendo. Os portugueses não construíram um império contando piada em botequim. Provavelmente, foi assim que o perderam. Manaus pede passagem. Queiramo-la bem. Nós merecemos.



Manaus, Manaós: manaú

 Zemaria Pinto

 

Toda cidade é uma musa. E como tal, inalcançável. Apenas sonhada.

 

De mãos dadas com Elliot,

 

sigamos então, tu e eu,

enquanto Manaus se estende sob o céu

como um paciente anestesiado sobre a mesa. (*)

 

A Manaus real está em coma desde o dia em que a descobri na plenitude de sua miséria:

 

a cidade, com seus círculos vorazes

de granizo e fogo e gelo e sangue e serpes:

a cidade-precipício e suas sendas,

suas sombras, seus pudores, seus pecados. (**)

 

A cidade-musa não é física. Fictícia, ela vomita sua sintaxe indefinida, arrastando-se pelas ruas apodrecidas de suas tristes entranhas.

 

Ah, maninha, o que sinto por ti é

 

o horror o horror o horror o horror o horror o horror o horror




(*) Fragmento do poema “A canção de amor de J. Sebastião”, de Zemaria Pinto.

(**) Fragmento do poema “exercício n.° 14”, de Zemaria Pinto. 

(In: Musica para surdos. Valer: Manaus, 2001.)


O grande nevoeiro

Pedro Lucas Lindoso

 

São Paulo é a terra da garoa. Fortaleza é conhecida pela gostosa brisa do mar. Londres tem o famoso “fog” londrino. Um nevoeiro que pode ser considerado uma instituição inglesa. Como o nosso mormaço e os ventos de Codajás.

Manaus amanheceu com um nevoeiro estranho e ameaçador. Nossa cidade enfrentou esse fenômeno insalubre e desagradável. Como se fôssemos Londres às avessas. Se a canção diz que nosso porto nunca será Liverpool, tampouco nossa metrópole terá um nevoeiro romântico e palatável como o “fog” londrino. Mesmo porque as origens são diversas.

O nosso nevoeiro, diferente do londrino, é consequência das queimadas. O caboclo amazônida faz isso desde sempre. Nessa época do ano eles queimam os roçados para prepará-lo para a chegada das chuvas. Mas isso era sempre feito em pequena escala. Agora há queimadas criminosas. E a floresta está cada dia que passa em maior perigo.

Quanto ao nevoeiro de Londres a estória é outra. Ir a Londres e não se deparar com um nevoeiro é praticamente impossível. O “fog”, como é chamado pelos britânicos, traz charme para a cidade. Normalmente faz muito frio e raramente neva em Londres. No inverno e em muitos dias do ano a cidade está envolta a essa tão conhecida neblina. O “fog” faz parte da vida e da cultura dos londrinos, como o nosso mormaço.

Entretanto, em de dezembro de 1952, há 70 anos, um grande nevoeiro cobriu toda Londres. De início, os cidadãos acreditaram que a névoa seria como as outras tantas que comumente fazem parte do cotidiano britânico. Porém, ao anoitecer, o ambiente começou a ficar estranho. O céu ficou amarelado e a cidade toda foi tomada por um cheiro de ovo podre. Aquela névoa era letal, e começou devido a um desastre ecológico de poluição que ficou marcado na história britânica.

Devido aos problemas no pós-guerra, o carvão de melhor qualidade para o aquecimento havia sido exportado Como resultado, os londrinos usaram o carvão de baixa qualidade, rico em enxofre. Isso causou o desastre ecológico conhecido como “The Great Smog”. Muitas pessoas morreram. A fumaça tóxica invadiu até os ambientes fechados.

Manaus nunca foi Liverpool, mas já foi a Paris dos trópicos.  Estaria agora em triste processo de emulação a Londres, com seu “Great Smog”. Ou seja, o que ficou na História da Inglaterra como o “Grande Nevoeiro”. Mas o que aconteceu há 70 anos, não mais se repetiu. E nós? Quando iremos controlar esse “great smog baré”. Socorro, por favor! Help, somebody help!



 

domingo, 22 de outubro de 2023

Manaus, amor e memória DCXLI

Porto de Manaus.

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Lira da Madrugada – Thiago de Mello 1/15

Zemaria Pinto


 Ficha biobibliográfica

 

Autor: Thiago de Mello

Nome completo: Amadeu Thiago de Mello

Naturalidade: Barreirinha – AM

Nascimento: 30 de março de 1926

Falecimento: 14 de janeiro de 2022

 

Obra poética:

·       Silêncio e palavra (1951)

·       Narciso cego (1952)

·       A lenda da rosa (1983)

·       Vento geral (1960)

·       Faz escuro mas eu canto (1965)

·       A canção do amor armado (1966)

·       Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975)

·       Os estatutos do Homem (1977)

·       Vento geral – poesia 1951/1981 (1981)

·       Horóscopo para os que estão vivos (1984)

·       Mormaço na floresta (1984)

·       Num campo de margaridas (1986)

·       De uma vez por todas (1996)

·       Campo de milagres (1998)

·       Acerto de contas (2015) 


O TESTEMUNHO

Thiago de Mello (1926-2022) 

III – AMAR

                      

 

No campo de silêncio

onde, existindo, sou,

não me retardo. Tardo

 

a ser, e quando sou

– sou pouco. O muito é a dor.

As têmporas estalam.

 

O tempo que ficou,

e, aquém de mim, me espera,

reclama o existir turvo.

 

Então, perdido, torno;

a caminho transbordo,

transvio-me de mim:

 

quando chego, sou pouco.

Crestam-me a vida vã

saudades de ter sido.

 

A dor é eco longínquo

de grito soterrado.

O ser é estrela extinta,

 

lua de treva em céu

já desabado, pedra

lavada pela chuva.

 

Permaneço, contudo,

e comigo a amargura,

quando o amor é o caminho

 

que em mim se faz e faz-me

correr ao campo branco

onde alvoradas sonham,

 

onde me espera o pasto

onde a fome fareja

a dor antiga, eterna:

 

dor esplêndida e dura

dor de ser e de amar.

Porque de amar, perdura.

 

 

E trago dessa viagem

uma treva mais doce

para a noite do mundo.

 

Às vezes é uma aurora

que me aclara também:

e vejo em amargor

 

a face que me coube,

a face dessa noite

noite tão noite e fria

 

que é minha e de meu mundo,

ai, mundo meu não mundo,

perdido, em pranto, e pouco.

 

O muito em mim, e grande,

e sofredor grandioso

mesmo o coração:

        pois nele cabe Deus.

 

Na história da literatura amazonense Thiago de Mello ocupa uma posição singular: seu livro Silêncio e Palavra, de 1951, saudado pela nata da crítica brasileira como a mais grata revelação da Geração de 45, coloca a literatura amazonense no mapa da literatura brasileira. Mesmo morando no Rio de Janeiro, nunca perdeu contato com sua terra e, a despeito de realizar uma literatura universal, sua condição de jovem cabocloum jungle boy da poesia – despertava o interesse de mestres como Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athayde e Gilberto Freyre, entre outros. O pessoal que, três anos depois, iria fundar o Clube da Madrugada ainda ensaiava seus primeiros passos quando Thiago obtinha reconhecimento nacional. Até que ponto isso estimulou os que aqui ficaram? No mínimo, abriu-lhes a perspectiva do aeroporto, incutindo-lhes a confiança de que também eles poderiam voar alto. Foi o que fizeram os participantes da “caravana”, que em 1951 e 1953 empreenderam viagens procurando saber o que afinal se produzia no restante do país.

A poesia de Thiago de Mello tem três fases distintas: a primeira, marcadamente lírica e existencialista; a segunda, de cunho social e político; a terceira, reunindo características das duas anteriores, traz à tona a preocupação com a saúde do planeta. Em resumo, uma poesia que começa intimista, voltada ao interior do poeta, evolui para uma poesia de interesse coletivoinicialmente, com relação ao país, que passou mais de 20 anos em regime de exceção, e, na fase atual, com relação a todo o planeta. Nesta, além da abordagem sobre o meio ambiente, quando o poeta se transforma em guerreiro defensor da floresta, persiste a inquietação política e social.

O poema “O testemunho” está inserido na primeira fase, como parte da coleção de poemas O andarilho e a manhã (1953-1955), inserido em Vento Geral, volume que reúne 30 anos da poesia de Thiago de Mello, de 1951 a 1981. O poema, na verdade, divide-se em três partes: “Ser”, “Ter” e “Amar”. Vamos analisar com mais detalhes a última, mas, para sua melhor compreensão, façamos um breve relato sobre as primeiras. O poema relaciona o fazer poético com uma predestinação divina: o poeta não escolhe, é escolhido. Mas isso é dito por palavras formando imagens nem sempre claras ao leitor menos atento. EmSer”, ele ouve o chamamento e sua reação é de recusa, mas é inútil: o poeta alimenta-se de “dor e silêncio”, no campoonde pastam manhãs” – ele mesmo. Thiago de Mello dá uma conotação metafísica para explicar o que o vulgarmente chamamos inspiração. A segunda parte do poema, “Ter”, mostra, sob alta tensão poética, a recompensa por essa escolha: “dor sofrida é salário”; mais adiante: “com essa dor se cunha / a moeda em cuja efígie / vê-se o perfil dos anjos”. O ofício do poeta é construir a manhã – “envolta em cânticos” – para se contrapor à “noite do mundo”.

Amar” é a síntese dialética desse movimento entre o ser e o ter. O poeta inicia falando da dificuldade para criar: “no campo de silêncio... / tardo / a ser, e quando sou / – sou pouco. O muito é a dor”. As estrofes seguintes metaforizam essa dor da criação: “lua de treva em céu / desabado, pedra / lavada pela chuva”. Mas a luta não é de todo vã, “pois a dor antiga, eterna... / dor de ser e de amar” permite ao poeta trazer dessa viagem ao âmago de si “uma treva mais doce / para a noite do mundo” – e às vezes uma aurora que o aclara também. ele percebe – humilde, mas amargurado – que pouco avançara na construção da manhã. Consola-o, no entanto, saber que o que há de grande em si, inclusive de grandioso sofrer, é seu coração, “pois nele cabe Deus”.

Essa conclusão pode parecer decepcionante, do ponto de vista estético, mas devemos analisá-la sob a perspectiva do homem e não do artista, pois é este que, desde a primeira parte do poema, se nos apresenta, ao tentar fugir do chamado da poesia. A um poema frustrado, o poeta-artista reagiria como Drummond: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã”. O poeta-homem, contudo, se recolhe piedosamente em suas orações, pedindo forças renovadas – para continuar tentando, ou quem sabe, parar, de uma vez por todas. As preces de Thiago de Mello, ao que parece, foram para continuar construindo manhãs – o que ele faz com maestria há mais de 60 anos.

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Este é o primeiro de uma série de 15 textos de breves análise de poemas, extraídos do livro Lira da Madrugada, que comemorou os 60 anos do Clube da Madrugada. Junto com o livro, saiu um CD, com as músicas que Mauri Mrq compôs para os poemas e que hoje podem ser ouvidas no YouTube: 


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