Idalina, como muitos já sabem, é uma amazonense
autoexilada em Copacabana, no Rio de Janeiro. O que poucos sabem é que Idalina é
uma foliona de primeira. Ela adora Carnaval.
Desde sua última intervenção cirúrgica para fazer
um “lifting facial”, espalha por aí que tem somente sessenta anos. Não pode ser
verdade. Idalina é uma das fundadoras da Banda de Ipanema. O famoso bloco
carioca saiu pela primeira vez em 1965! Idalina já era uma
jovem adulta e estava no Rio em férias. Naquele ano aCidade
Maravilhosa era uma festa só! Festejava-se o QuartoCentenário
da cidade.
Portanto, quem fundou a Banda de Ipanema não pode
ter sósessenta.
Mas não se discute idade de senhoras. A Banda deIpanema é um dos mais conhecidos
blocos de Carnaval do Rio. O Ybloco
desfila no bairro que lhe dá nome, Ipanema, Zona Sul do Rio.A saída é
na Praça General Osório, no sábado, duas semanas antesdo
Carnaval. O bloco sai também no sábado e na Terça-Feira deCarnaval.
Aqui em Manaus temos a Banda da BICA. Umas das
bandas mais tradicionais do Carnaval de Manaus, a Banda da Bica, terá como tema,
neste ano de 2024, ‘A Bica cresceu, virou Patrimônio Cultural
e vai zoar no Carnaval’. Famosa por suas marchinhas sempre
com fortes críticas à política amazonense e pautas polêmicas,
A ‘Banda da Bica 2024′ está marcada para o dia 3 de fevereiro,
na Avenida 10 de Julho, Centro.
Idalina, por razões óbvias, sempre passou o
Carnaval no Rio.Quando soube que Mazé Mourão seria a Rainha da
Banda daBica de
2024 resolveu que viria para Manaus. Como a Banda deIpanema
sai duas semanas antes e a Bica é no Sábado Magro,dá para
participar dos dois eventos.
Idalina é fã da Mazé desde o tempo em que esta era
cronista de A Crítica. O jornal
perdeu muito com a saída dela. Mazé Mourão é como se fosse a nossa Danuza Leão.
Charme, inteligência e sofisticação.
Danuza personificava o “savoir-faire” carioca. Mazé Mourão é
tão estilosa quanto. Ambas sempre esbanjaram charme e
competência, inclusive como escritoras. Claro que Danuza era invejada
tanto quanto a Mazé. Como dizia Ibrahim Sued: “os cães ladram e
a caravana passa”.
De passagem comprada, Idalina ficará hospedada num
famoso “hotel
boutique” nos arredores do Largo de São Sebastião. Ela está ansiosa.
Depois de anos de frustrados planejamentos, irá conhecer finalmente
o Carnaval de Manaus.
Apesar dos preços das passagens aéreas estarem
abusivos, Idalinarealmente virá. Afinal, como ela disse, estará na
BICA com MazéMourão.
Max Carphentier tem duas
linhas marcantes na sua poesia: a mística, de fundo existencialista e
religioso; e a mítica, onde ele trabalha literariamente a paisagem e o
imaginário amazônicos. Por vezes, como no seu apreciado poema Sermão da Selva, essas vertentes se
imbricam e se tornam uma só, que podemos, por mero reducionismo didático,
denominar de “poesia cristã-amazônica”. No âmbito do Clube da Madrugada, a
poesia de Carphentier diferencia-se da poesia dos também
místicos-existencialistas L. Ruas e Farias de Carvalho exatamente por essa
singular e exuberante cor amazônica. Opção consciente, desde os primeiros
escritos dados a publicidade, a obra poética de Max Carphentier tem um quê de
libertária, sem a preocupação social de Farias de Carvalho, ao mesmo tempo em
que mantém o seu caráter místico em alta densidade, sem a angústia que perpassa
o trabalho de L. Ruas. Entenda o leitor que não estou comparando os três poetas
com a finalidade de estabelecer um juízo de valor, mas unicamente de mostrar
que, a despeito da opção por uma mesma direção, os três trilham caminhos
diferentes.
O livro Tiara do verde amor, de onde foram
extraídos os poemas que analisaremos, dá bem a dimensão dessa poesia que, sendo
profundamente cristã, não perde contato com a ancestralidade atemporal e o
telurismo amazônico, responsáveis, na obra de Max Carphentier, por livros como Nossa Senhora de Manaus e Nosso Senhor das Águas, poesia e novela,
respectivamente. O livro está dividido em três partes: “A Coroa de Anunciação”,
“A Coroa Mitológica” e “A Coroa das Águas”. Na primeira, o tema religioso está
centrado na chegada de uma mulher – a “Amada” –, alegoria do cristianismo,
impondo-se não mais pela violência, como registra a história, mas com a dádiva
do amor e da convivência harmoniosa. A segunda parte reporta aos mitos, à
“religião” da selva, mas não como algo vivo, contemporâneo: são fragmentos
reminiscentes de um tempo remoto, anterior à história, tatuados com os símbolos
do novo tempo. A terceira parte renova-se, telúrica e sensual, numa síntese
entre os dois mundos, que enfim se moldam num só.
O poema “Do urutau”, que
pertence à “Coroa Mitológica”, reproduz uma das muitas histórias que o lendário
caboclo preservou acerca da ave de hábitos noturnos e de natural habilidade
para a camuflagem, cujo canto lembra “uma gargalhada de dor”, segundo Camara
Cascudo anota em seu Dicionário do
Folclore Brasileiro.[1] Chamado
também de mãe-da-lua, além de outros nomes que parecem variações ou corruptelas
do primeiro, o urutau está associado sempre a histórias trágicas e a costumes
relacionados à moral sexual feminina. Uma dessas lendas conta que Tupã unira um
jovem casal, reservando-lhes para o futuro uma missão de muita gravidade. A
jovem esposa, porém, apaixona-se por um marinheiro branco e foge com ele,
provocando a ira do deus. Como castigo, Tupã condena-a a ter sua alma presa na
lua, permitindo-lhe voltar à terra à noite, sob a forma de um pássaro de canto
triste e aterrador. A essa ave o povo tupi chamou de urutau, que quer dizer
“pássaro fantasma”.
Carphentier, ao compor o
poema, foi fiel à narrativa popular, cuidando para que a linguagem poética
reproduzisse de maneira clara, mas sem concessões, toda a dor transmitida pelo
pássaro. Observe, desde o primeiro verso, construído sobre um belo oximoro – vivendo de morrer –, como essa linguagem
se estrutura, em decassílabos brancos. Há pouco a esclarecer. A expressão
“flautas tristes”, por exemplo, pode ter duas leituras: são metáforas para as
almas condenadas por Tupã, que andam a assombrar, pela noite; ou são as flautas
noturnas de Jurupari, cada som com um significado diferente, todos,
invariavelmente, melancólicos.
Mas o canto lúgubre do
pássaro, sendo mais que um lamento, é um desafio a quem o condenou a uma pena
maior que o crime que a jovem cometera. Para dar ideia da extensão dessa dor, o
poeta se refere a “esse cantar da lua à terra”; e os olhos do pássaro
“interrogam o céu” sobre o castigo do “amor sozinho”, como o sofrimento da
moça-urutau,
que, se um falaz amor tarde traíra,
do verdadeiro amor cedo partira.
Pela infidelidade a um
amor que não desejara, que lhe fora imposto pelo deus – ou, quem sabe, por seus
pais –, ela foi condenada a viver eternamente sem amor.
O poema seguinte, da
“Coroa de Anunciação”, trata, complementarmente, de assunto similar, mas vário:
o amor místico que, a despeito do sofrimento cotidiano, tende a crescer, tendo
por suporte a fé. Mas o poeta, inseguro da própria condição de crente,
compromete-se apenas a cantar “do que se acaba a luz que fica”, eternizando o
que lhe vem aos olhos. Do quinto ao oitavo verso, o poeta vê-se morto entre os
escombros, mas o milagre do retorno à vida – “lázaros de prantos” – se dá na
presença da “ave infinita”, metáfora da interferência divina.
Os versos seguintes
repetem o coro do amor necessário à salvação da selva, alegoria da própria
humanidade. O dístico final não poderia ser mais otimista: o prêmio de amor que
o amor de Deus dá ao crente é personificado na chegada da “Amada”, símbolo da felicidade
e da cessação de todo o sofrimento.
A poesia de fundo
religioso faz parte da tradição poética em todas as línguas. O espanhol San
Juan de la Cruz e a mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz, além do inglês John
Donne, são alguns dos nomes mais notáveis. Em português, desde o pioneiro
Anchieta, passando pelo injustamente mal-afamado Gregório de Matos, até os
recentes Jorge de Lima e Murilo Mendes, manteve-se a tradição. A literatura
amazonense tem em Max Carphentier um representante desse legado, tornando a
crença em beleza e a fé em poesia.
Do urutau - A coroa de Anunciação XXI
(Mauri Mrq - Max Carphentier)
Bibliografia Geral
1.Subsídios para uma apresentação da
poesia amazonense: o Clube da Madrugada
GARCIA, Etelvina. Zona Franca de Manaus: história, conquistas
e desafios. Manaus: Norma, Suframa, 2004.
LOUREIRO, Antônio. Síntese da História do Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1978.
RAMA, Ángel. Literatura e Cultura na América Latina. Org. de Flávio Aguiar e
Sandra Guardini T. Vasconcelos, Trad. de Raquel la Corte dos Santos e Elza
Gasparotto, São Paulo: Edusp, 2001.
TUFIC, Jorge. Clube da Madrugada – 30 anos. Manaus: Imprensa Oficial, 1984.
Obs: Por
justiça, devo citar também as conversas-entrevistas com os escritores Luiz
Bacellar, Anísio Mello, Almir Diniz e Armando de Menezes, que me passaram sua
visão e sua experiência pessoal sobre o assunto.
[1]
CASCUDO, Luís da Camara. Dicionário do
folclore brasileiro. 6.ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1988. p. 454.
Converso com o jovem Enzo. Estudante do Ensino Médio de uma
excelente escola aqui em Manaus. Pergunto-lhe se ele sabe o que é um ano
bissexto.
Enzo me diz que é quando fevereiro tem 29 dias. E também é o
ano das Olimpíadas, me explica. O único ano bissexto que não teve Olimpíadas
foi em 2020. As Olimpíadas de Tóquio 2020, no Japão, foram realizadas de 23 de
julho a 8 de agosto de 2021. Elas foram adiadas em um ano por causa da pandemia
do coronavírus. A 32ª edição das Olimpíadas foi a primeira da Era Moderna a ser
adiada. Outras três foram canceladas por guerras.
Pedi a Enzo que me explicasse a razão de termos ano bissexto,
de quatro em quatro anos. E o motivo de nesses anos fevereiro ter 29 dias.
Enzo, que é mesmo muito inteligente, me ensinou que ano bissexto é todo ano
cuja expressão numérica é divisível por quatro. E que o ano bissexto é quando
fevereiro tem 29 dias. Simplesmente porque ano é o tempo que a Terra faz o
movimento de translação em volta do Sol. Na verdade não leva somente 365 dias.
O tempo exato é de 365 dias e seis horas (ou um quarto de dia). O ano bissexto
faz essa compensação.
Enzo realmente é brilhante. Disse-me que aprendeu em História
que foi Sosígenes de Alexandria quem estabeleceu que o ano comum teria 365 dias
três vezes consecutivas. E, na quarta vez, 366 dias, acrescentando-se um dia no
mês de fevereiro. Assim, fevereiro tem 29 dias, de quatro em quatro anos.
Voltemos às Olimpíadas. Perguntei-lhe se ele gosta de alguma
modalidade específica. Enzo adora vôlei. O time de Enzo é campeão da modalidade
na escola. Adiantou-me que o vôlei masculino nos próximos jogos olímpicos em
Paris será disputado entre os dias 27 de julho e 10 de agosto de 2024.
E a seleção brasileira vai participar! Foram realizados três
torneios Pré-Olímpicos, em diferentes sedes, com oito países em cada um deles.
Os dois melhores de cada disputa asseguraram a vaga para Paris 2024, se
juntando à França, que já tinha seu lugar garantido por ser o país sede. Entre
as nações que conseguiram a classificação no vôlei masculino está o Brasil.
Enzo está muito empolgado. Garante que o Brasil vai trazer
medalha no vôlei. Simplesmente porque Bernardinho é novamente o técnico da
seleção masculina de vôlei do Brasil. Bernardinho foi escolhido como substituto
de Renan Dal Zotto, que pediu demissão em outubro passado.
O Brasil tem tradição no vôlei, me disse. E com Bernardinho
como técnico não tem para ninguém. Então Feliz Ano Bissexto. Com Olimpíadas!
Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão (Rubem Braga)
01. As breves sete notas em forma de manifesto são aqui dedicadas: a) ao povo da Comunidade da Ponte, do igarapé São Vicente, Bairro do Céu, vizinha ao centro de Manaus, devastada ontem (20 de janeiro de 2024) por um incêndio proporcional à omissão que bem caracteriza o poder público desta cidade; b) igualmente à Elvira Eliza França, lutadora social que faz da cidade de Manaus (tão maltratada e escarnecida por sua classe dominante e pelo descaso programático de seguidos governantes) o seu campo de embate (generoso, intelectual, terapêutico, anônimo) em favor de quantas e quantos têm sobre suas vidas o peso e o pesadelo cotidianos da miséria socialmente produzida pela ordem assassina do capital.
02. Manaus é o exemplo, desde longo prazo, de um infame laboratório social (de sofrimento e nefasta política) que dá matéria e forma ao seu reverso Plano Diretor. “Antes de te perder eu agravarei a tua demência – ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão”. O que faz de uma cidade uma cidade é a garantia, formalmente estabelecida desde a Antiguidade Clássica, de dois princípios: a isonomia e a isegoria. Isonomia como igualdade de seus moradores aos direitos politicamente definidos. Isegoria como direito coletivo de manifestação política e de uso público da razão.
03. Elvira Eliza França é a manifestação personificada do sentido do cuidado social e da solidariedade humana numa cidade adoecida, hostil, surda diante da tragédia social que se naturaliza como forma de vida para seus habitantes pobres e dos quais sua camada burguesa se abriga e se afasta em indecoroso conforto. Até quando? Quando na cidade domina a ordem do capital sem controle social, temos, como é o caso de Manaus, uma cidade partida, em que para a maioria da população só resta a inclusão pela porta do rebaixamento de direitos. Ai de ti, Manaus! É de ti, também, que fala Rubem Braga em sua crônica antológica de 1958, Ai de ti, Copacabana!, que me serviu de guia literário para falar da Manaus de 2024.
04. Sobre Rubem Braga testemunha Clarice Lispector: “Gostei dele à primeira vista. Sei coisas a seu respeito. Por exemplo, bondades que faz discretamente sem pedir nada em troca. Por exemplo, ele é a pessoa que perdoa muito e entende tudo e não se faz juiz de ninguém. Ele é corajoso. Simples. Delicado”. Dele, o registro: “Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite”. Sobre Manaus, diria: já te chamaram Paris dos Trópicos. Mas de Paris preferiste apenas bons modos e perfumaria e nada aprendeste da Comuna de 1871. Pior: renegas com o reacionarismo de tua classe dominante o espírito da Cabanagem que te fez irredenta 35 anos antes da experiência comunal do proletariado em Paris.
05. É sobre ti, Manaus, que a luminosidade da crônica de Rubem Braga me ajudou pensar as tuas sombras e cinzas. Ontem, 20 de janeiro de 2024, foste outra vez agredida pelo Nero pós-moderno que habita coração e mente de teus agentes de poder (econômico, político, administrativo), e queimaste teu povo à beira do rio, em mais um incêndio às margens do belo e maltratado rio Negro, que insiste, mas já não tem meios nem força para limpar a sujeira que te envolve o corpo e a alma. Ai de ti, Manaus! Como te fizeste pobre e miserável ao rejeitar a sabedoria étnica de tua ontologia indígena e caboca.
06. O que pode Elvira Eliza França fazer no contracurso da insana trajetória que te leva e te mantém no cume das piores estatísticas sociais? Como pode conspurcar e deformar tua simbiose natureza-cultura quem te faz declarações de amor, enaltece tuas belezas e te enche de promessas? “Ai de ti, Copacabana (Manaus), porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas”. Por que, Manaus, continuas, crente, a cultivar fascínio por quem te devota ódio e desprezo? Quando a cidade nega a política, reforça politicamente a pior política. Democracia como poder do povo implica que o povo encontre na política sua força teórica (consciência de classe) e a política encontre no povo sua força material (organização de classe).
07. Quem poderá enxugar as tuas lágrimas, Manaus? Quem poderá te salvar de ti mesma? Por que teus templos seguem cheios de almas vazias, com preces que só conhecem e se destinam ao culto da prosperidade e da acumulação, sempre à custa do sacrifício de quem nada mais tem a ser sacrificado? “Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana (e Manaus), e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?”. De quantos incêndios necessitas, Manaus, para que a cegueira voluntária de teus homens de bens, bem devotados à engenharia do mal e da barbárie, seja algum dia penetrada pelas imagens da tragédia social em que se transformou o cotidiano de tua gente?
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões, no Amazonas, e Jaguaribe, no Ceará.
A poesia
de Astrid Cabral tem uma dicçãorara,
senãoúnica,
na poesiabrasileira
contemporânea, desde Ponto de cruz,
seuprimeirolivro de poemas,
onde a seção
“Pequenomundo”
esmiúça rituais do banalcotidiano. Trata-se de uma poesia
visceralmente feminina, não necessariamente feminista,
o que significa uma posturamenos ideológica queestética. Essa poesiafeminina consiste emreconhecer no eulírico, no emissor
da mensagempoética,
a condição de mulher
– comtodos
os seussignos.
A água é um
deles.
O líquido
amniótico é a primeiraformalíquidacom a
qual temos contato.
Assim, a água se ligadiretamentecom
a figura da mãe,
sem a qualnão existe vida,
que, no serhumano, é representada pelamovimentação do líquidosanguíneoemnossocorpo. No
exterior do serhumano, a águatomaformamasculina ao ser o principalfator da fecundação da terra, seja pelachuva,
seja pelomovimento
das águas dos rios.
Na Amazônia, tãocara
a Astrid no livroVisgo da terra, onde
foi publicado o poema “Águadoce”,
numa seçãonão
à toachamada
“Água”, essa dicotomia
água-macho/terra-fêmea encontrasuaintegralrepresentação na área
de várzea, quemetade do ano
fica submersa, sendo fecundada, e onde, na outra
metade do ano, florescem as mais
diversas culturas, que
irão alimentar o ribeirinho
e o citadino.
A água
é umelemento
constante na obrapoética
de Astrid Cabral. O ápice dessa relação
é o premiado livroRasos d’água:
“uma viagemépicapelamemórialíquida, das lágrimas
à neve, banhando-se de chuva, perscrutando o mar,
os rios inúmeros, empermanentetensãocom o pathos da morte,
queora
se aproxima e sangra, ora se afasta e
observa a velhice inevitável, oraapenas
lembra/relembra a dorparasempre represada”, como
escrevi na apresentação da segundaedição. EmRasos d’água,
o eulírico
é umserlíquido, semformadefinida, quetomanovaforma a cadapoema. Para Astrid, a água é
muitomaisque a origem
da vida e metáfora
da criação: numa relaçãodialéticaquenão se esgotanunca, é tambémfonte de morte e de destruição.
O poema
“Águadoce”,
que é a água
da memória, da infância,
guarda a consciência
disso, quando opõe a água do rio à água
do mar, representada sempreporelementosnegativos,
como a “vândalaviolência do mar”,
“a ameaça constante das vagas”
e “a baba de espumas
brabas”. Mas, aos poucos,
essa consciência vai se redefinindo, a memória vai se recompondo, e as lembranças
vêm à tona, sempre
naquela relaçãovida/morte-criação/destruição: “A água
do rio é mansa
/ mastambém
se zanga”. E enumera o lado oposto da águadoce e mansa: banzeiro, enchente,
correnteza, repiquete,
cachoeira, redemoinho.
Paraquem
compartilha essas memóriascom Astrid, essas palavras
podem parecermotivos
de brincadeirasdistantes.
Masela
adverte: o riotransborda
e inunda, arrasta e mata, “afoga quemnão sabe nadar”, “enrola quemnão sabe remar”.
Comonosmitosgregos,
em que os rios
eram considerados filhos do Oceano e pais
das Ninfas, o rio
de Astrid parece dotado de formahumana, pois “também sabe lutar”, e na pororoca “enfrenta e afronta o
mar”. O fenômeno da pororoca
– perdoe-me o leitorcansado de saber disso –
ocorre quando o nível
do Atlântico sobe e uma onda de maré, gigantesca,
invade os riosque
formam o estuário do rioAmazonas, e colide com
a massa de águadoce fluindo na direçãocontrária, causando umgrandeestrondo,
arrastando e destruindo tudo o queencontrapela frente.
O poema
segue, explicando as distintas cores dos
rios, o que
lembra a minhaprimeiraviagem de barcopelorioNegro, aos 9 anos,
e o comentário de alguém,
acerca da cor
da água, agitadacomforçapeloleme do “Augusto
Montenegro”: “parece coca-cola”. A comparação não
fazia o menorsentidoparamim,
pois não sabia que diabos eraaquilo, mas
ficou-me na memóriapormuitosanos,
atéeu
compreender que a analogia ouvida era uma ofensa
à dignidade do velhoNegro.
Na sequência, Astrid compara
os “monstros” do marcom os correspondentes
do rio. E se usei a palavramonstro para a simpática baleia, pensei em
Moby Dick – provávelreferência, literária,
de Astrid. Os monstros do riosãotantos
na memóriaque
cabe atéum
“não sei mais
o quê”, parafechar a enumeração.
O poemaencerracomo se unisse as duas pontas do início
e do fim: começa
afirmado que “a água
do rio é doce”,
paraconcluir, depoisque as lembranças vieram à tona,
que “a águadocenão
é tãodoce.
/ Antes fosse”. Nesse poema, Astrid nãousaapenas
a memória, ela
se expressacomumeulíricoque
tem a idade da suamemória, a idade
da infância. Aliás, o Aurélio registra a
expressão “poeta de água doce” significando “poeta muito jovem”. As frases curtas, aliadas ao desenvolvimento
do poema, que sai de uma certeza (“a água
do rio é doce”)
para uma decepção
(“a águadocenão é tãodoce”), são
típicas de uma idadequenão sabe aindaconstruirumraciocíniocomplexo. Ela, então, arquiteta
uma cadeia de pensamento
fundada no contraditório: primeiroemrelação
ao mar, depoisemrelação
a simesma,
usando sempre a mesmafórmula adversativa (“mas também”), paraconcluircomnova
comparação com o mar.
O eulíricocriança descobre a dialética.
Se a água do rio
fosse mesmodocenão teríamos esse
belo poema.