Zemaria Pinto
Uma característica marcante na poesia de
Alcides Werk é a presença da noite,
realçada na dicotomia claro/escuro.
A noite protetora, envolvente, cúmplice do caboclo amazônico. A noite, caminho da antemanhã. A noite, precursora
da luz. Ele diz no poema “Da noite do rio”:
Nesta noite sem
medidas
eu todo banhado
em sombras
fugi de casa,
fugi
para o branco
desta praia,
como se a
aurora que busco
neste rio se
afogou.
(p. 36)
Perdido o refúgio, perdido o sonho, o homem
renova-se, a partir do rio – o símbolo mesmo da mudança, pois que nunca se
repete. Mas o “rio noturno” é
apenas a projeção
da angústia do
“homem noturno”: adormecido,
cansado de viagens, arauto de mortes. O
homem ensombrecido, impotente pela impotência do rio, encontra-se ilhado: não
há como lutar contra a noite que se abate sobre seu mundo.
Esse homem noturno em busca da luz é o lado menos visível
da poesia de Alcides Werk, da qual se divulga muito a poesia telúrica, a poesia
das pequenas e das grandes coisas amazônicas. Porque se esta expressa o espaço
amazônico, aquela poesia noturna é uma reflexão sobre o momento histórico, mas sem
nada de panfletário, apenas refletindo a angústia de uma alma sensível, vivendo
sob o tacão de uma ditadura que tinha o absoluto repúdio popular.
A noite irreversível e sem fim abate-se sobre o
poeta e não apenas o cobre. Toma-o. Doma-o. Internaliza-o. A noite é ele. A
poesia se espraia pelo tempo sem retorno e se alonga em ocasos que se repetem
de forma tão igual que parecem um só: o ocaso da longa noite que o poeta viveu
vagando pelo Médio Amazonas.
Eis-me aqui nesta ausência de mim mesmo
(p.
147)
Este verso, do “Soneto VII”, reúne em suas dez
mágicas sílabas toda a força da poesia que explode em angústia e dor. De igual
modo o “Soneto VI” refere-se à
ronda
inútil
por
além dos limites do meu nada
(p. 146)
Como se o alheamento dos acontecimentos nacionais o
isolasse ainda mais do mundo físico ao seu redor – assumindo definitivamente a “condição
de ilha” a que se refere o poema “Aos meus irmãos solitários”. Da mesma forma,
os “Sonetos V” e “VIII” perseguem essa imagem do ser ensombrecido – o homem noturno
e vazio. Neste, há algo de loucura dominando a expressão poética:
Silêncio.
Sinto apenas o silêncio
em mim. (....)
Busco-me,
a medo, e vejo pelos cantos
vozes
vazias, sons de antigamente,
projetos
inconclusos, teias, nada
e
tua linda presença estilhaçada.
(p. 148)
Mas é no “Soneto I” que ele resiste da melhor forma
– vivendo o seu ofício, escrevendo:
Na meia-luz da tasca entra
uma lua
Que inventa novas sombras
nas paredes.
Dos meus olhos de espanto e
de tristeza
Vai caindo um poema sobre a
mesa.
(p. 141)
Os doze sonetos de Estudos, a parte que fecha Trilha
dágua, trazem alguns do poemas mais belos, significativos e bem
arquitetados da nossa literatura. São apenas doze poemas – que valem por toda
uma obra. Antológicos.
O “Soneto IX” – o coroamento desses cânticos
libertários – é a síntese definitiva da noite que se instaurara no país a 31 de
março de 1964. Suas palavras são imagens retiradas a sangue frio de retinas
ainda cálidas. Palavras que a boca não dirá jamais. Imagens, apenas.
Fez-se
uma curta pausa. E a noite baça
estendeu
seus lençóis sobre as cidades.
Ventos
frios de morte andavam soltos,
e
formas embuçadas destruíam
restos
vagos de luz.
(p. 149)
O “Soneto XII” – o último poema de Trilha Dágua – representa a profissão de
fé do autor no futuro, futuro que se constrói com o tempo e com o trabalho
indispensável da poesia. Futuro que virá – o poeta o sabe – não com a manhã,
pois a aurora é apenas a transição entre a noite de terror e a luz do novo dia.
O dia que se constrói aos poucos, na indolência dos segundos. Para o poeta é
Impossível voltar, e continuo.
Elaboro miragens e as persigo
com a determinação dos suicidas.
(p.
152)
Meu caro Alcides, foi muito bom te encontrar, aqui
na Academia, nesta bela noite de abril. Amanhã é sábado – e nos últimos tempos sempre
nos encontrávamos nas tardes de sábado, lembras? Tu recitavas
Gosto de frequentar esta taberna
onde me sirvo de meu próprio vinho,
nem perguntam quem sou. Meu companheiro,
que antes cantava e me aplaudia, agora
embuçado em silêncio me observa
como se eu lhe devesse algum milagre.
(p.
141)
Aquele companheiro mudo era eu. Há mais de 10 anos
não nos vemos, mas a tua lembrança está sempre comigo, como está sempre com
teus amigos, com teus filhos e tua Santina. Foi muito bom relembrar teus poemas
e tuas lições – “soneto é coisa séria, rapaz!” – e a tua alegria por reconhecer
nos 14 versos que te dediquei, enfim, um soneto – num momento em que estavas
triste, mas triste de não ter jeito. Aqui o repito e a ti o consagro, em
definitivo:
Trago nas mãos a lâmina dos anos
que passaram por mim tragando sonhos:
sementes de um passado sem memória,
inúteis fragmentos de silêncio.
As velhas alegrias disfarçadas
tatuam sombras em meu rosto pálido.
Sorrio amargo, o limo transparente
refletido nos dentes amarelos.
Meus olhos baços já não sonham luzes
sob o cantar monótono do vento:
palavras surdas nos meus lábios cegos.
Antúrios se renovam no meu peito
e de meus braços pendem sensitivas.
Nos pés carrego o peso desses sonhos.
V
Meus caros Dom Mario Pasqualotto, Sérgio Cardoso e Prof. Gláucio
Campos Gomes de Matos. Vencemos mais uma etapa de nossa jornada. Daqui a pouco estaremos todos
de volta às singularidades de nossas vidas particulares, à azáfama de nossos afazeres cotidianos.
Mas esse
tempo em
que aqui
estivemos juntos se estenderá em nossos corações
e mentes como
uma teia de afeto recíproco – de nós, acadêmicos, para com vocês; de vocês para conosco; e de todos
aqui presentes
para com a memória de Péricles Moraes.
Muito obrigado!