Zemaria Pinto
A leitura dos originais
de O teatro urbano de mulheres de Lazone,
de Sergio Cardoso, reavivou-me o debate sobre texto teatral ser ou não
literatura, tão antigo quanto o teatro e a literatura. Polêmica similar ocorre
entre letra de música popular e poesia, outra velha e boa discussão.
É preciso observar que o
texto dramático guarda total homologia com a prosa de ficção, mantendo uma estrutura básica,
formada por enredo,
fábula, personagens,
ambiente e tempo. Entretanto, o texto dramático
alicerça-se na fala das personagens; sem
fala não
há texto dramático, mas pode haver
teatro. Dito de outra maneira: um texto dramático
formado só de indicações cênicas não é
literatura, mas pode ser teatro.
Conclusão: teatro é
sobretudo espetáculo, com ou sem falas, mas o texto de teatro, se o há, é, sim,
literatura. E mais ainda quando transformado em livro: se no palco ele, o
texto, é apenas um dos componentes do espetáculo – e nem sempre o mais
importante –, no livro ele é absoluto, transferindo ao leitor as funções de
encenador, figurinista, contrarregra, iluminador, ator...
O teatro urbano de mulheres de Lazone reúne 12 textos de Sergio Cardoso,
todos, salvo engano, levados ao palco, experimentados no embate com o público.
Olhando-os agora, em conjunto, podemos observar o trabalho paciente, quase
artesanal, do autor, construindo um universo próprio, a mítica Lazone, à margem
direita do rio das Sombras, com seu imponente teatro, suas galerias
subterrâneas, sua “cidade flutuante” e seus dramas humanos e sobre-humanos,
sempre numa atmosfera suprarreal.
Sergio trabalha sobre um
fio de navalha: humor e tragédia se misturam, em cenas antinaturalistas, com
uma agilidade cinematográfica. Não à toa, o cinema é uma referência constante,
seja no nome das personagens seja nas inúmeras citações de títulos clássicos.
Tudo potencializado, as situações criadas, de um humor amargo (o humor pode ser
doce?), aproximam-se do dramalhão hollywoodiano das primeiras décadas do cinema
falado, com pitadas de noir; mas
algumas figuras monstruosas remetem ao expressionismo alemão. Os fantasmas,
aliás, são outra recorrência – ora como um recurso de flashback ora como personagens, interagindo na trama, interferindo
em seu curso.
As mulheres de Lazone,
criadas por Sergio Cardoso, reinventam a história da cidade de Manaus, desde a
crise da borracha até a primeira década deste início de século, contemplando
exatos cem anos de imaginação a serviço da fantasia, onde convivem em deliciosa
desarmonia cobras-grandes, vampiros, tartarugas radioativas, mendigos, loucos, socialites, prostitutas, malandros,
políticos corruptos, fantasmas diversos e toda uma fauna de criaturas
aprisionadas no dia a dia da cidade. E a despeito da grande quantidade de
personagens a transitar no palco, a solidão das protagonistas – muito mais que
a geografia e a história comuns – é o fio que costura as peças, dando-lhes
unidade, estabelecendo vasos comunicantes entre elas, como num corpo vivo,
montando esse extraordinário painel da arte cênica amazonense.
Mundica, Gilda, Carmem,
Dorothy, Mercedita e todas as outras são mais que meras criações da mente
inquieta do também artista plástico Sergio Cardoso: são arquétipos de mulheres
que pintaram, com tintas épicas, a história cotidiana, banal, medíocre, desta
cidade abrasadora, à margem esquerda do rio Negro.
Obs: apresentação do livro O teatro urbano das mulheres de Lazone, de Sergio Cardoso. Manaus: Valer, 2013.