Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A poesia é necessária?


Lembranças

Grace Cordeiro


O calor do meu corpo

Escorrendo pelo teu corpo

Como uma vazante

Que te limpa e purifica

 

E o brilho dos meus olhos

Te iluminando, te dando

Energia como o sol sorrindo

 

Porque o espaço é amplo

E a vida nem um pouco mansa

O mundo é trabalho

E meu beijo, descanso.

 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Sol e vento

Pedro Lucas Lindoso

 

O apagão elétrico ocorrido neste mês de agosto acendeu novas e requentadas preocupações sobre a geração e distribuição de energia em nosso país. Mesmo porque as causas do evento ainda não foram suficientemente esclarecidas.

O que nos parece senso comum é que devemos priorizar formas de energia limpas advindas do vento e do sol. Há ainda muito negacionismo. O fato é que estamos maltratando demais nosso planeta.

A energia eólica já é uma realidade no Brasil e está integrada ao famoso linhão de transmissão. Esse que por alguma razão deixou o Brasil sem energia naquela manhã de terça-feira de agosto.

A energia dos ventos é gerada a partir da energia desses ventos que movimenta pás e ativa as turbinas. Essas turbinas geradoras são instaladas em regiões altas para captar a maior quantidade de vento possível.

Os estados brasileiros que mais geram energia eólica estão no Nordeste e o Rio Grande do Sul também se destaca. O estado do Piauí é um dos maiores produtores dessa energia. (Informações obtidas após leituras no Google).

A energia dos ventos sempre foi importante para nós, brasileiros. Os ventos impulsionaram as caravelas de Cabral. Para alegria do reino de Portugal e seus aliados. E muita tristeza para os povos originários daqui. Depois foram buscar, ainda em naus movidas pelos ventos, os povos da África. Em condições já relatadas por Castro Alves, há muitos anos.

Na mitologia grega os ventos eram comandados pelo deus Éolo. Que esses ventos que produzem uma energia limpa e renovável nos sejam benfazejos!

Temos ainda ao nosso dispor, também em grande quantidade, a energia que vem do sol. A Energia solar é, assim como a eólica, uma fonte alternativa, renovável e sustentável de energia que provém da radiação emanada diariamente pelo sol. Essa energia pode ser utilizada por diferentes tecnologias, inclusive nas usinas termossolares. Desde os primórdios da humanidade o homem também utiliza a energia solar. Como a geração de fogo através do calor dos raios de Sol concentrados por meio de vidros ou espelhos.

Apolo é um dos deuses mais conhecidos da mitologia também por ser o deus do Sol. Mas a personificação do Sol está em Hélio, irmão da deusa Éos, personificação do alvorecer.

Vamos pedir ao Senhor da Terra que nos dê energia mais limpa e renovável. Para o bem do planeta e da humanidade.

 

domingo, 27 de agosto de 2023

Manaus, amor e memória DCXXXIII

 

Reclames na Revista Redempção (1925).

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 5/6

 Zemaria Pinto

  

2o movimento – sob as trevas de setembro

 

. “exercício nº 2” – ouço ainda a voz troante de Eliot: “Abril é o mais cruel dos meses...”.[1] Pouco há que acrescentar aos poemas deste movimento. Há um setembro e uma perda. Há um corte que sangra e novamente a solidão. Não mais a solidão existencial, o estar-só no mundo. Antes, é um estar-sem: “ausência, perda, solidão e nada”.

. “exercício nº 4” – aqui há uma calma dilacerada. O poeta está conformado, a dor cruel é serena, sem as agudezas do desespero. Ele observa o mundo, e, tal como no exercício anterior, o mundo é cinzento, sombrio, soturno. Mas a poesia não o abandonou e ele ainda encontra humor para trocar intertextos com Manuel Bandeira, no segundo quarteto:

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos. (...)

O bicho, meu Deus, era um homem.[2]

 

. “exercício nº 8” – setembro ainda ressoa, mas o dia amanhece. O que resiste é a ideia de inferno. Seja o de Rimbaud, seja o de Dante: “Nel mezzo del cammin de nostra vita”.[3] Os sons e os gestos que ficam para além da lembrança, além da razão.

. “exercício nº 16” – “Setembro não tem sentido” é o nome de um livro que não li, de João Ubaldo Ribeiro. Mas o som se incrustou em mim de tal forma que o repetia a cada novo setembro, sob a iminência de novas tempestades. Ao recortar estas memórias, ele retornou, heptassilábico, quebrando a harmonia dos meus decassílabos. Meu poema fraturado. Meu poema áspero, seco, duro. Minha oficina irritada. Mas, tal como no 21, é fácil recompô-lo em quartetos e tercetos. Em meio ao tempo mau, além do diálogo drummondiano – “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”[4] –, um relâmpago roseano, resgatado da longínqua primeira leitura de Grande Sertão: Veredas: nonadas.[5]

 

3o movimento - os mitos reclusos

 

. “exercício nº 6” – Januário é mais que um mito, é um arquétipo: o amigo perfeito, dedicado, disponível. Mas, náufrago da navetempo, Januário perdeu o rumo, jogado entre as tralhas esquecidas. Januário, o que trouxe notícias do mar e dos pélagos profundos. Januário, o sábio aventureiro. Januário, o narrador de histórias infinitas. Ecos de Camões, leitura adulta, lembrando o amigo de infância perdido para sempre: “Quando da etérea gávea um marinheiro, / Pronto co’a vista: terra, terra, brada”.[6] Palimpsestos da memória.

. “exercício nº 10” – o Encantado representa a busca pela identidade geográfica, sem perder de vista a tradição acumulada. A Náiade, guardiã dos rios, por exemplo, é grega. Para nós, o que seria bem mais simples, é a Mãe d’Água. A Ofélia, mergulhada em orquídeas, é shakespeariana. Mas o que se quer comemorar é o casamento com a natureza: o leito e a cabeceira do último terceto são do riocorrente do primeiro quarteto, rio negronegro, que em noites de lua parece espelho espedaçado – o mito primordial do andrógino, masculino/feminino, a totalização do ser, o rio Negro. 

. “exercício nº 12” – neste poema entrelaçam-se vozes diversas para cantar a Vaca – antagônica ao homem, o inimigo por excelência –, que morre aos milhões diariamente, e que é sua principal fonte de alimentação. Desde o imenso e ainda incompreendido Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima:

 

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela

que do fundo do sonho eu às vezes esposo

e confunde-se à noite à outra imagem daquela

que ama me amamentou e jaz no último pouso.[7]

 

Passando por Ernesto Penafort: “o touro cinza traz sob o ocipício / estranha meia lua eclipsada / no turvo olhar das vacas do Cambixe”.[8]  Mas nenhuma vaca é mais impressionante, antropomorfizada ou não, que a de Caetano Veloso, em uma canção esquecida nos porões dos anos 70, cuja melodia perdeu-se da memória para sempre:

 

quando vejo você com seus olhos de vaca

com seus grandes olhos de vaca

com seus olhos de vaca triste

menina triste do meu amor (...)

sinto todo o terror do negror desses tempos[9]

 

A Vaca é uma derrotada, talvez daí decorra sua tristeza perene. A minha Vaca é tão triste quanto as dos modelos. Mas tem esperança e pensa poder voar.

. “exercício nº 14” – noite, bebida, inferninhos: luxúria. A vida noturna abriga uma outra fauna, um outro modo de ser. A noite é num inferno dantesco, com seus círculos vorazes, e no segundo círculo, aquele que sucede o círculo/circuito dos bares, o poeta revê Francesca da Rimini, dançando um suave striptease. E como numa ilustração de Doré, outros corpos flutuam, oferecidos, ao redor do poeta, que flutua, embriagado, até cair, como o mantuano: “E caí, como um corpo morto cai”.[10]  Dante cai aos pés de Virgílio, a personificação da Poesia.  

. “exercício nº 18” – a metáfora mais simples e perfeita para mostrar o descaminho do homem sobre a terra é o labirinto. Vale também para a Poesia. Aqui, o poeta vaga entre suas próprias sombras. As paredes do labirinto são espelhos onde ele não vê refletir-se senão a si mesmo. Ou à sua poesia. A referência é, natural e essencialmente, Borges – poesia e prosa.

. “exercício nº 20” – o amizade de Januário, o êxtase da Náiade, a tristeza da Vaca, a noite lasciva e a poesia perdida em seu labirinto sintetizam-se na mulher: Zorobabélia, de pele negrazul e asas nos pés, relâmpago de músculos. O poema de Zorobabélia não tem referências literárias, intertextos, metalinguagens, a não ser por uma notícia a que poucos tiveram acesso: Eva nasceu na África.



[1] Eliot, “O enterro dos mortos”, obra citada: p. 89.

[2] BANDEIRA, Manuel. “O bicho”. In: Estrela da vida inteira. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 179

[3] Primeiro e conhecidíssimo verso de A Divina Comédia, não tem uma tradução adequada em português. Ao pé da letra – “No meio do caminho de nossa vida” –, perde-se a métrica.

[4] Drummond, “No meio do caminho”, obra citada: p. 12.

[5] “– Nonada.” Assim começa o épico de Guimarães Rosa.

[6] CAMÕES, Luís Vaz de. Canto V. In: Os Lusíadas. Lisboa: Verbo, 1972. p. 145.

[7] LIMA, Jorge de. Canto I – Fundação da Ilha. In: Invenção de Orfeu. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. p. 35.

[8] PENAFORT, Ernesto. “O touro”. In: Os limites do azul. Manaus: edição do autor, 1985. p. 66.

[9] “Negror dos tempos”, de Caetano Veloso. Gravada por Maria Bethânia, no LP Drama. Philips Records, 1972.

[10] “E caddi come corpo morto cade.” Último verso do Canto V, do Inferno.


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A poesia é necessária?

 

Coragem

Luciana Nobre

 

A vida te parece um grande fardo;

as horas, meses; medo já te invade;

na mente exausta, o nada; sem vontade

estás, e ao mundo inteiro lhe vê pardo...

 

Tu buscas e te foge a potestade,

e o amor já não mais passa de um brocardo...

Confesso: quando assim, por dentro, eu ardo

querendo me agarrar à outra metade:

 

a vida, o quanto pesa, fortalece!

o instante pode ser o derradeiro...

a mente é a oficina de onde o oleiro

modela e remodela a sua benesse...

 

Coragem não nos falte nunca, pois.

Nada obstante as dores que há mundo,

colore-te, ama agora, e não depois...

 

Acende em teu abismo, isso te infundo

a luz que todos têm... temos nós dois...

e vais resplandecer, verás, fecundo...

 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

A primeira e a última

 Pedro Lucas Lindoso

 

Na semana que passou, tivemos, mais uma vez, um apagão de energia. Enquanto se tomava o café da manhã de uma terça-feira considerada dia útil, de repente faltou energia. Nós, amazonenses, parece que ficamos meio sem-vergonha com isso. As quedas de energia são, de certa maneira, tão frequentes, que não nos espantamos mais.

As notícias vindas via internet, no celular, davam conta de que a cidade toda estava sem energia. E mais! O problema não se restringia somente a Manaus. O apagão atingia grande parte do território nacional. A origem era desconhecida e afetava todo o famoso linhão de Tucuruí, ao qual somos interligados.

Aliás, Manaus foi uma das últimas cidades a ser interligada. Boa Vista, que é ainda mais longe que Manaus, nada sofreu porque ainda não está no sistema.

Fui solicitado a ir a uma farmácia comprar fraldas e leite para minhas netinhas. Já era no meio da manhã e a falta de luz persistia. O trânsito na cidade estava relativamente calmo. Os sinais de trânsito ainda funcionavam misteriosamente. O comércio estava um tanto quanto vazio e me lembrei dos tempos de pandemia.

Entrei na farmácia e consegui comprar as fraldas. Não havia o tipo de leite que procurava. Uma outra farmácia estava com as portas fechadas. Na terceira, ainda no carro, fui abordado por uma vendedora que me informou estarem sem sistema em razão da falta de luz.

No caminho de volta para casa encontrei outra farmácia. Consegui encontrar o leite para as nenéns, graças a Deus.

Lembrei-me de um filme antigo chamado Where were you when the lights went out? (Onde você estava quando as luzes se apagaram?). O filme baseia-se no blecaute ocorrido em novembro de 1965, em  Nova York. A comédia, com Doris Day e Patrick O´Neal, fez muito sucesso. Patrick estava sendo entrevistado por uma jornalista muito bonita durante o blecaute. Já Robert Morse é um executivo que foge de sua empresa com dinheiro roubado e tem um problema com o seu carro. Acaba na casa de Margaret Zane, onde adormece placidamente

A imaginação de cronista fervilha em situação de apagão. Essas ocasiões podem ser cômicas ou extremamente dramáticas. Manaus foi a última cidade a ser interligada ao linhão. Tia Idalina, quando perguntada se é verdade que Manaus foi a primeira cidade a ter energia elétrica no Brasil, ela responde com paradoxal ironia:

– Foi a primeira e a última!

 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Literaencontro: escritoras do Amazonas no Casarão de Ideias


Nesta quinta-feira, 24 de agosto, a partir das 18h, acontecerá um grande encontro de escritoras amazonenses, no Casarão de Ideias. Além de lançarem suas obras, as autoras conversarão sobre o fazer literário contemporâneo no Amazonas. Entrada franca. 



domingo, 20 de agosto de 2023

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 4/6

Zemaria Pinto

    

Ecos da paixão. Chamar aos poemas de “exercícios” nasceu daquela interação com a memória juvenil. Eu já cometera alguns sonetos, mas um poeta pós-moderno, como eu me pretendia, tinha lá seus pudores. Ora, direis, fazer sonetos... Mas havia um, sem título – “Trago nas mãos a lâmina dos anos” –, dedicado ao amigo Alcides Werk, sonetista exímio, que poderia servir-me. Tratava-se de assunto relacionado à passagem do tempo, e fora escrito um ano antes, em ocasião muito sofrida da vida de Alcides. Foi o segundo poema incorporado ao grupo que viria a ser de 21.

A sequência em que os outros foram escritos perdeu-se nos vis desvios vãos da memória. O “exercício nº 5”, por exemplo, o mais anterior entre todos, ficou entre o 3 e o 9, porque era conveniente que ficasse. Mas o leitor vai observar que no primeiro e no quarto movimentos todos os exercícios são ímpares e no segundo e terceiro, pares. O simbolismo aí é primário: o ímpar é a solidão e o fazer poético é essencialmente solitário. Estes são os assuntos daqueles movimentos. O par, por outro lado, denota companhia, ou ausência de solidão, mesmo tendo a perda como consequência – assuntos desses movimentos. Além disso, o segundo movimento traz uma sequência que se expande em progressão geométrica, representando o amadurecimento e o distanciamento que a perda causaria na voz emissora do poema. Considerando um número ilimitado de poemas, o quinto soneto do segundo movimento, seria o de número 32, o sexto, o 64, o sétimo, o 128 etc., enquanto os outros continuariam na sequência ordinária, apenas alternando pares e ímpares. Os números, insisto, não têm nenhuma significação velada – sua importância é apenas estrutural.

Há um porquê também para as diferenças gráficas. No primeiro movimento, a articulação correta entre maiúsculas e minúsculas denota uma certa gravidade no tratamento do assunto. Os dois exercícios finais, entretanto, 17 e 19, repletos de autoironia, relaxam completamente, inclusive no que diz respeito à pontuação. No segundo movimento, a prevalência das minúsculas denota introspecção, talvez medo. Nos movimentos finais, observa-se um misto dessas situações. 

Para efeito, digamos assim, didático, chamemos a voz emissora de “o poeta”. Mantenha o leitor a certeza de que essa voz não é, necessariamente, a minha, lembrando sempre que o poeta é um fingidor. Dito isto, vamos a uma breve incursão pelo texto.

 

1º movimento – o eu e os outros

 

. “exercício nº 1” – as rimas intercaladas têm a intenção subsidiária de mostrar um certo anacronismo, em relação ao conjunto, todo em rimas brancas. É o poema do jovem estudante de poesia, solitário em seus múltiplos exercícios cotidianos.

. “exercício nº 3” – o jovem poeta vai à rua. É madrugada, embriaga-se. Sonha com uns versos perdidos de Eliot: “A pomba mergulhando rasga o espaço / Com flama de terror incandescente”.[1] O verso final ecoa a Clarice Lispector de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres: a pontuação como ideia de continuidade eterna dentro do humano finito. Um grito de pesadelo. Mudo.

. “exercício nº 5” – em oposição aos dois exercícios anteriores, em que se revelava a juventude, a preocupação do poeta agora é com o passar do tempo. O poeta aqui é um ser humano em decomposição, como uma árvore velha num pântano sombrio.

. “exercício nº 9” – escrito em hendecassílabos, este poema dá curso ao anterior, porém reflete também um certo desconforto do poeta diante da poesia, que o cerca como espectro de um mundo do qual ele se recusa a tomar parte. Observa-se nos primeiros versos do segundo quarteto referências a Rilke (“A Pantera”), Poe (“O Corvo”) e Luiz Bacellar: “memória e angústia fundem-se num branco / cavalo manco numa rua torta”.[2] O tempo aqui é um rio de Heráclito, ecoando um distante Vinicius de Moraes: “Meu tempo é quando”.[3]

. “exercício nº 11” – o poeta lacerado vaga por entre as luzes da cidade, catando sobras entre as ruínas. Em meio à selva tenebrosa da urbe, tendo perdido a “verdadeira estrada”, ele recorre a Dante Alighieri para melhor descrevê-la: “esta selva selvagem, dura e forte / que, de a lembrar, renova todo o medo”.[4] A solidão por companheira, o poeta atingiu o fundo do poço escuro de si mesmo.

. “exercício nº 13” – neste poema, o profeta fala pelo poeta. As palavras de Zaratustra ecoam para além de qualquer horizonte conhecido: a positividade de “hoje sou ontem e amanhã e sempre” se contrapõe à negatividade de “já não sou quem fui ou quem serei ou quando”, do “exercício nº 9” e ao errante caminhar do “exercício nº 11”. Há uma clara mudança de tom – aqui o alegro substitui o largo. Ouça-se, ainda ecoando Nietzsche, a voz de Eliot: “Nós somos os homens ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O elmo cheio de nada. Ai de nós!”.[5] A procura está no centro deste poema. Nem por isso o poeta/profeta deixa de anotar, no último terceto, a solidão dessa busca insana, que leva o artista a viver com mais intensidade, e, no mais das vezes, por isso mesmo, apagar-se mais rapidamente.

. “exercício nº 17” – reencontrada a poesia, o poeta busca melhor compreendê-la, contemplando os livros da estante perdida no tempo. As reverberações são diversas. No primeiro quarteto, Rimbaud: “Se bem me lembro, minha vida outrora era um festim – aberto a todos os corações, regado por todos os vinhos”.[6] No segundo quarteto, o mergulho é mais raso, ao citar o “poema de todas as ausências”, de Fragmentos de Silêncio: “na estante, entre miríades de sonhos e sons / marcianos loucos materializam / suas fantasias de luzes / fosforescentes”.[7] No terceiro quarteto, o poeta busca a quintessência do silêncio em Drummond: “Lutar com palavras / é a luta mais vã”.[8] A partir deste soneto – e a partir da definição de poesia nele contida – o poema muda de nome, passando a chamar-se, definitivamente, Música Para Surdos. Nada mais. 

. “exercício nº 19” –  único poema do conjunto escrito em versos alexandrinos, este é um exercício de autoironia e uma renovação paródica do “exercício nº 13”, enfatizando com graça o que aquele dissera com as palavras do profeta. Note-se a evolução do tom do poema, começando com uma linguagem empolada, evoluindo, no segundo quarteto, para uma anti-helênica beleza, e lembrando, no quarteto seguinte, um clown a ecoar, no dístico final, de maneira quase chula, o bom Rimbaud: “Um dia, sentei a Beleza no meu colo. E a achei amarga – e injuriei-a.”[9]



[1] ELIOT, T. S. “Little Gidding”. In: Poesia. 2. ed. Tradução: Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 233

[2] “Noturno do Bairro dos Tócos”. Bacellar, obra citada: p. 75.

[3] MORAES, Vinícius de. “Poética”. In: Antologia Poética. Organização: Vinícius de Moraes. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1974. p. 179.

[4] Perdi as referências desta tradução, mas se trata, claro, dos versos 5 e 6 do Canto I, do Inferno:

esta selva selvaggia e aspra e forte

che nel pensier rinova la paura!  

[5] Eliot, “Os homens ocos”, obra citada: p. 117.

[6] RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Tradução: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 43.

[7] PINTO, Zemaria. Fragmentos de Silêncio. Manaus: EDUA, 1995. p. 73-74.

[8] ANDRADE, Carlos Drummond de. “O lutador”. In: Reunião – 10 livros de poesia. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p. 67.

[9] Rimbaud, obra citada: p. 43.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A poesia é necessária?

 

Cicatriz

Tainá Vieira

 

Sonhei que a cicatriz do meu ventre se abria

e não havia criança

não tinha sangue

e nem doía

parecia

uma janela

pela qual se podia

ver o mundo

e vi um cenário oco

fosco.

Esse mundo está bem aqui, dentro de mim.    



terça-feira, 15 de agosto de 2023

Dia dos pais

Pedro Lucas Lindoso

 

Nesse dia dos pais estou me sentindo muito próximo de meus mortos. Meus pais, tios e avós que já estão no outro plano, mas por alguma razão sinto-os bem próximos. Nada mórbido ou triste. Uma saudade significativa, é verdade. Mas simplesmente saudade. No significado mais brasileiro que esta palavra tem. Uma conotação própria do Português. Saudade, simplesmente saudade. Repito.

O mês de agosto é carregado desse sentimento com relação ao meu pai. Não somente pelo dia dos pais, mas porque seu aniversário de nascimento é no dia 21 de agosto. Em muitos países o dia dos pais é comemorado em junho. Mas aqui esse mês é dos namorados. Sabemos que são datas incentivadas pelo comércio para consumir. Dar presentes. Mas, e daí? É sempre uma oportunidade de exercitar as tão necessárias demonstrações de afeto, de amor e consideração.

Com o passar dos anos vamos adquirindo coisas e conhecendo pessoas. Mas perdemos muitas. Nos são levadas pessoas que nos foram importantíssimas na juventude. Há uma fase da vida em que vamos adquirindo coisas e habilidades. Para depois perdê-las.

Observo minhas netinhas. As que são ainda bebezinhas estão adquirindo a habilidade de falar, de andar, de pedir e de contestar. Começam a expressar amor, ciúmes e desapontamentos. É um período de aquisições, de constante aprendizado. E haja responsabilidade para ensinar o certo, o adequado, o caminho mais seguro.

E aí vem a responsabilidade do pai. Nem todos têm ou tiveram o privilégio de ter tido pais presentes. A circunstâncias da vida e a história de cada um explica o porquê de crianças terem sido criadas sem a presença efetiva de seu genitor. Não nos cabe aqui analisar, censurar ou diagnosticar as causas desse problema. Vamos louvar os pais presentes. E também aqueles que a nossa memória afetiva e saudosa permite.

Muitas pessoas me dizem que meu pai foi uma pessoa importante. Eu concordo. Meu pai foi importante principalmente por ser meu pai, por ser esposo de minha mãe, um tio legal, um irmão bom, um filho dedicado e principalmente por ser amigo de seus amigos. E um grande amigo de seus filhos.

Como pai e avô esse é o meu conselho aos pais. Sejam amigos de seus filhos. Sem nunca perder a autoridade, porém. Seja sempre um pai presente e participativo. É preciso e necessário acompanhar o rendimento escolar de seus filhos e estar constantemente disponível para explicar, ensinar e orientar.

Um feliz dia dos pais!

 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

domingo, 13 de agosto de 2023

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 3/6


Zemaria Pinto

 

Pronto. Estava desenhado o meu poema. Faltava apenas escrevê-lo. Ou melhor, faltava escrever os 21 poemas que o comporiam, sempre lembrando o velho e querido Poe. Como disse anteriormente, durante o planejamento, que durou, entre concepção e amadurecimento, algo em torno de 6 a 8 semanas, um poema começou a tomar forma, o de número 21, aquele canto de amor que deveria encerrar o poema, sintetizando-o. E por que começar pelo fim? Recorro mais uma vez a Poe:

 

Só tendo o epílogo, constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de consequência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.[1]

 

Não tinha mais que os dois versos citados parágrafos atrás, mas sabia que o sujeito oculto neles era a própria poesia. Mas como abusaria à exaustão da forma soneto, resolvi trocar o todo pela parte, e referindo-me a Mário Faustino, que deu outra dignidade ao soneto no início dos anos 60, comecei assim o fim do meu poema:

 

soneto meu, faustino de armação

 

O verso seguinte refere-se às quebras promovidas ao longo do poema, que, todo em decassílabos, emprestam ao leitor uma outra possibilidade de leitura, fugindo ao metro convencional. Compare os três seguintes versos do primeiro quarteto:

 

tramado e arquitetado em vário pé

desarma-se em vis desvios vãos

limítrofes à tinta e ao papel

 

O leitor poderá, sem dificuldade, recompor em decassílabos o segundo quarteto, que finaliza recorrendo ao auxílio luxuoso de Caetano Veloso: “e no joelho uma criança sorridente, feia e morta / estende a mão / (...) / e nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”.[2] Este soneto, não esqueça o leitor, deveria sintetizar o que seria o movimento dos mitos pessoais, além de ter a responsabilidade de encerrar o poema. Daí a necessidade de fazê-lo fora do comum na forma, mas sem cair, em relação ao conteúdo, na armadilha da mera lembrança. “Tropicália” e Caetano fizeram parte da minha descoberta da poesia, ali pelos 11, 12 anos de idade. Ao mesmo tempo, o “crânio morto” refere-se diretamente ao Hamlet que vestia todas as minhas fantasias de loucura e suicídio: “síntese de nada ou cousa alguma”.

Este poema, o “exercício nº 21”, é tão autobiográfico na tentativa de reconstituição dos mitos pessoais, que talvez fique ininteligível para o leitor, sem que se faça um resumo histórico: Santarém, 1969. Temporada com a avó. AI-5 em vigor. As Forças Armadas promovem exercícios antiguerrilha em plena área urbana. Foi lá, no meio das salvas de festim, entre Caetano, Shakespeare e o fantasma aureolado do Che,[3] que eu senti queimar pela primeira vez a centelha da poesia. Foi lá que eu senti pela primeira vez a angústia de estar no mundo. A impotência de ser um objeto humano, meramente manipulável. Lia sob a luz de duas lamparinas a querosene. E o único contato com o mundo, além das buzinas dos navios em trânsito, era a BBC de Londres, transmitindo em português, no rádio a pilha do tio louco. O “exercício nº 21” é uma conversa íntima entre o poeta e sua poesia:

 

a ti revelo-te tua natureza

 

Mostro a mim mesmo, e a Ela, onde tudo começou.

 



[1] Poe, obra citada: p. 61.

[2] “Tropicália”, de Caetano Veloso. LP Caetano Veloso. Philips Records, 1968.

[3] Sem relação com o poema, mas muito viva na minha lembrança, a canção “Soy loco por ti, América”, de Gil e Capinam, que Caetano cantava no citado álbum de 1968: “El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe?” O que se cochichava pelas ruas de barro batido da cidadezinha era que “el hombre” não morrera – e era por isso que as forças estavam em movimento. Esperando-o, para matá-lo novamente, quantas vezes fosse preciso...