Zemaria Pinto
2o
movimento – sob as trevas de setembro
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“exercício nº 2” – ouço ainda a voz troante de Eliot: “Abril é o mais cruel dos
meses...”.[1]
Pouco há que acrescentar aos poemas deste movimento. Há um setembro e uma
perda. Há um corte que sangra e novamente a solidão. Não mais a solidão
existencial, o estar-só no mundo. Antes, é um estar-sem: “ausência, perda,
solidão e nada”.
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“exercício nº 4” – aqui há uma calma dilacerada. O poeta está conformado, a dor
cruel é serena, sem as agudezas do desespero. Ele observa o mundo, e, tal como
no exercício anterior, o mundo é cinzento, sombrio, soturno. Mas a poesia não o
abandonou e ele ainda encontra humor para trocar intertextos com Manuel
Bandeira, no segundo quarteto:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos. (...)
O bicho, meu Deus, era um homem.[2]
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“exercício nº 8” – setembro ainda ressoa, mas o dia amanhece. O que resiste é a
ideia de inferno. Seja o de Rimbaud, seja o de Dante: “Nel mezzo del cammin de
nostra vita”.[3] Os
sons e os gestos que ficam para além da lembrança, além da razão.
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“exercício nº 16” – “Setembro não tem sentido” é o nome de um livro que não li,
de João Ubaldo Ribeiro. Mas o som se incrustou em mim de tal forma que o
repetia a cada novo setembro, sob a iminência de novas tempestades. Ao recortar
estas memórias, ele retornou, heptassilábico, quebrando a harmonia dos meus
decassílabos. Meu poema fraturado. Meu poema áspero, seco, duro. Minha oficina
irritada. Mas, tal como no 21, é fácil recompô-lo em quartetos e tercetos. Em
meio ao tempo mau, além do diálogo drummondiano – “Nunca me esquecerei desse
acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”[4] –, um relâmpago roseano,
resgatado da longínqua primeira leitura de Grande
Sertão: Veredas: nonadas.[5]
3o
movimento - os mitos reclusos
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“exercício nº 6” – Januário é mais que um mito, é um arquétipo: o amigo
perfeito, dedicado, disponível. Mas, náufrago da navetempo, Januário perdeu o
rumo, jogado entre as tralhas esquecidas. Januário, o que trouxe notícias do
mar e dos pélagos profundos. Januário, o sábio aventureiro. Januário, o
narrador de histórias infinitas. Ecos de Camões, leitura adulta, lembrando o
amigo de infância perdido para sempre: “Quando da etérea gávea um marinheiro, /
Pronto co’a vista: terra, terra, brada”.[6] Palimpsestos da memória.
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“exercício nº 10” – o Encantado representa a busca pela identidade geográfica,
sem perder de vista a tradição acumulada. A Náiade, guardiã dos rios, por
exemplo, é grega. Para nós, o que seria bem mais simples, é a Mãe d’Água. A
Ofélia, mergulhada em orquídeas, é shakespeariana. Mas o que se quer comemorar
é o casamento com a natureza: o leito e a cabeceira do último terceto são do
riocorrente do primeiro quarteto, rio negronegro, que em noites de lua parece
espelho espedaçado – o mito primordial do andrógino, masculino/feminino, a
totalização do ser, o rio Negro.
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“exercício nº 12” – neste poema entrelaçam-se vozes diversas para cantar a Vaca
– antagônica ao homem, o inimigo por excelência –, que morre aos milhões
diariamente, e que é sua principal fonte de alimentação. Desde o imenso e ainda
incompreendido Invenção de Orfeu, de
Jorge de Lima:
Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela
que do fundo do sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à noite à outra imagem daquela
que ama me amamentou e jaz no último pouso.[7]
Passando
por Ernesto Penafort: “o touro cinza traz sob o ocipício / estranha meia lua
eclipsada / no turvo olhar das vacas do Cambixe”.[8] Mas nenhuma vaca é mais impressionante,
antropomorfizada ou não, que a de Caetano Veloso, em uma canção esquecida nos
porões dos anos 70, cuja melodia perdeu-se da memória para sempre:
quando vejo você com seus olhos de vaca
com seus grandes olhos de vaca
com seus olhos de vaca triste
menina triste do meu amor (...)
sinto todo o terror do negror desses tempos[9]
A Vaca é
uma derrotada, talvez daí decorra sua tristeza perene. A minha Vaca é tão
triste quanto as dos modelos. Mas tem esperança e pensa poder voar.
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“exercício nº 14” – noite, bebida, inferninhos: luxúria. A vida noturna abriga
uma outra fauna, um outro modo de ser. A noite é num inferno dantesco, com seus
círculos vorazes, e no segundo círculo, aquele que sucede o círculo/circuito
dos bares, o poeta revê Francesca da Rimini, dançando um suave striptease. E como numa ilustração de
Doré, outros corpos flutuam, oferecidos, ao redor do poeta, que flutua,
embriagado, até cair, como o mantuano: “E caí, como um corpo morto cai”.[10] Dante cai aos pés de Virgílio, a
personificação da Poesia.
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“exercício nº 18” – a metáfora mais simples e perfeita para mostrar o
descaminho do homem sobre a terra é o labirinto. Vale também para a Poesia.
Aqui, o poeta vaga entre suas próprias sombras. As paredes do labirinto são
espelhos onde ele não vê refletir-se senão a si mesmo. Ou à sua poesia. A
referência é, natural e essencialmente, Borges – poesia e prosa.
. “exercício
nº 20” – o amizade de Januário, o êxtase da Náiade, a tristeza da Vaca, a noite
lasciva e a poesia perdida em seu labirinto sintetizam-se na mulher:
Zorobabélia, de pele negrazul e asas nos pés, relâmpago de músculos. O poema de
Zorobabélia não tem referências literárias, intertextos, metalinguagens, a não
ser por uma notícia a que poucos tiveram acesso: Eva nasceu na África.