Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Uma tragédia anunciada

 Zemaria Pinto

 

Raul Pompeia (1863-1895) pontuou sua vida pelo distanciamento dos padrões. Um clichê bem ao gosto dos historiadores da literatura brasileira é que O Ateneu (1888) não se enquadra em escolas – não é realista, tampouco naturalista; seria impressionista? simbolista? talvez, quem sabe, expressionista? O que ninguém nega é que O Ateneu é um dos grandes romances em língua portuguesa do século XIX. Morto aos 32 anos (negando o padrão, suicidou-se), Pompeia deixou obra de pequeno volume, mas iniciada cedo: este Uma tragédia no Amazonas, publicado em 1880, teria sido escrito quando o autor contava apenas 15 anos. Registre-se que o livro, na sua primeira edição, traz como subtítulo “ensaio literário”, como se o jovem autor pedisse desculpas pela ousadia.

A recepção de Capistrano de Abreu, o mais importante crítico literário da época, foi um misto de cautela e generosidade, ao afirmar que Raul Pompeia, juntamente com Aluísio Azevedo, que recém publicara O mulato (1881), eram “os dois maiores romancistas da nova geração”. Mas o crítico não deixava de apontar falhas na obra – o desconhecimento “de visu” da geografia local e as “contaminações”, especialmente, do obidense Inglês de Sousa.[1] Para suprir esses defeitos, entretanto, sobrava e assombrava a imaginação do autor.   

A trama é simples: um casal – Eustáquio, pernambucano, subdelegado de polícia, e Branca, amazonense – vivendo em um sítio próximo à localidade de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Por cerca de dois anos eles são acompanhados, juntando-se à fabula outras personagens, como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de um filho do casal, ainda não batizado. Pela sua função policial, Eustáquio granjeia alguns inimigos, que, lentamente, preparam uma vingança contra ele – a tragédia anunciada no título. Anísio Jobim, tratando dos “descimentos”, no século XVIII,[2] refere-se a uma localidade chamada São João do Príncipe, às margens do rio Japurá, da qual não há vestígios atualizados. Mas por esse dado infere-se que o jovem Raul servia-se de mapas reais para estruturar seu enredo.  

Com um domínio narrativo que denota amadurecimento, fruto, certamente, de seu conhecimento não apenas da literatura ainda incipiente do Brasil, mas, sobretudo, dos franceses e portugueses, Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks, informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia” – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os encaixes das minúcias. Nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Narrando em terceira pessoa e eventualmente “conversando” com o leitor – característica do “narrador onisciente intruso”, um expediente que viria a ser consagrado por Machado de Assis –, o narrador, usando as técnicas legitimadas pelo folhetim, mantém a tensão narrativa, de modo a prender o interesse e a atenção do leitor.

A violência que permeia Uma tragédia no Amazonas é por vezes atenuada com a poesia vívida das descrições da natureza, imaginada pelo autor: “poesia selvática”, para usar uma expressão do próprio. Há uma conexão muito forte com Canções sem metro (1900), publicado postumamente, poesia em prosa de clara extração simbolista, fortemente influenciada por Baudelaire. Observe-se este pequeno trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”:

 

A manhã estava triste. O sol empanado subia do nascente, clareando a paisagem com uns raios tímidos atirados de vez em quando por entre as nuvens que voavam, ora rasgadas em estreitas fitas, ora distendidas em amplos lençóis. Por sobre os píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio.

 

Assim como aconteceria com O Ateneu, é difícil vincular Uma tragédia no Amazonas a uma escola literária. Romântico na forma – com seus diálogos por vezes artificiais e um excesso de adjetivos –, o conteúdo se distancia, procurando uma expressão até então desconhecida: era o Realismo que aflorava; e mais que isso, o Naturalismo, com suas teses que podem parecer racistas para o leitor contemporâneo, especialmente a crença de que o comportamento humano é uma herança genética, racial. Raul Pompeia ainda trazia em si a carga de mais de 300 anos de escravidão, promovida por uma elite branca e católica e ainda com laivos europeus – o que explica a posição desfavorável aos espanhóis na narrativa, posto que estes mantiveram por séculos desavenças sobre fronteiras com França e Portugal, países da simpatia do autor. Em síntese: os negros, escravos fugidos, agiam por instinto; os espanhóis, bandidos de ofício, por mera ambição. Aliás, o citado O mulato, publicado um ano depois, é considerado o marco inicial do Naturalismo no Brasil. Não seria leviano afirmar que o jovem Raul Pompeia, anos antes, encontra o seu zeitgeist, o espírito do seu tempo, “inventando”, no Brasil, o mesmo que os jovens europeus descobriam por lá.

A favor de Pompeia, é preciso dizer que a literatura não caminha de mãos dadas com a teoria literária; antes, esta é que corre atrás para explicar aquela. Porque é fato que os grandes autores estão sempre à frente de seu tempo – e das teorias que os explicam. Em boa hora, Uma tragédia no Amazonas, enriquecido pelas ilustrações de Hadna Abreu, é tirado do limbo das obras esquecidas para ganhar a atenção de uma nova geração de leitores.

 

Prefácio a Uma tragédia no Amazonas, de Raul Pompeia –

Manaus: Reggo, 2020.

O livro pode ser adquirido na Amazon ou na Umlivro (clique no link).





[1] Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979.

[2] JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

A poesia é necessária?

         Do poeta e seus elementos

Ernesto Penafort (1936-1992)

 

o poeta é um território

em permanente degredo.

o poeta, por incrível,

sente frio e sente medo.

o poeta é um promontório,

além da mão como um dedo.

(sendo a mão somente a palma

o dedo é um prolongamento

como é do corpo sua alma).

o poeta é um território

limitado por si mesmo.

se às vezes, por ilusório,

parece que anda a esmo,

é exatamente ao inverso:

o poeta é um promontório

procurando mais um verso

para urdir o seu poema,

(que absurda tessitura!)

instaurando no universo

a nação que anda à procura.

 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Crônicas da Pandemia - novo livro de Pedro Lucas Lindoso


O livro é uma coletânea de crônicas publicadas no Palavra do Fingidor.

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

As mulheres e a língua portuguesa

                                                                    Pedro Lucas Lindoso

 

Estava meio macambúzio. Na verdade bastante triste. Perdemos nosso presidente da Associação dos Escritores, o querido Ernani Garcia dos Santos. Economista e grande craque da Língua Portuguesa.

Explico à Tia Idalina que Ernani Garcia foi autor do festejado livro Português sem mistério. Idalina concorda que podemos desvendar os mistérios da língua e falar e escrever com clareza e competência. Só que para os homens é um pouco mais fácil.  Como assim? Perguntei.

Idalina lembrou-se de que quando menina, disse obrigado para sua professora. No que ela de pronto, ensinou-lhe:

– Meninas dizem obrigada, agradecida, grata.

 Idalina questionou-a de que ouvia a maioria dizer obrigado. Tanto os meninos quanto as meninas. A professora disse-lhe que muitas meninas ficam moças, velhas e morrem agradecendo de forma errada. Não seriam suas alunas. Foi então que Idalina escorregou novamente na concordância:

– Estou meia confusa. E a professora de imediato corrigiu. Meio confusa. Enquanto advérbio, a palavra meio é invariável: meio cansado; meio cansada; meio assustado; meio assustada. Enquanto numeral fracionário e adjetivo, a palavra meio aceita flexão em gênero e número: meio copo; meia garrafa; meio limão; meia manga.

Idalina disse jamais ter esquecido a lição. E continua:

– Outro dia, quando me sentia meio cansada e meio velha, Tina procurava uma meia velha para fazer de touca. Entendi logo que não estava à minha procura!

Titia concluiu muito cedo que a vida para os homens é bem mais fácil. Até mesmo a língua, normatizada por gramáticos homens, é machista. E continuou:

– Passou-se o governo inteiro de Dilma Roussef com o país dividido gramaticalmente entre concordar com o uso da palavra presidenta ou não.  O professor Pasquale Cipro Neto ensina que “a terminação ‘¬nte’, que vem do particípio presente latino, forma em português adjetivos e substantivos”. Ressalta que 99% desses termos não têm variação. “O que varia é o artigo ou outro determinante como o/a estudante, nosso/nossa comandante. Mas é claro que há exceções”, completou. Uma delas é justamente “presidenta”, registrada há mais de um século. Segundo o professor, na sua edição de 1913, o dicionário de Cândido de Figueiredo registra “presidenta”. A última edição de cada um dos nossos mais importantes dicionários e a do “Vocabulário Ortográfico” também registram. Como existem as duas formas trata-se de uma questão de escolha. A ministra Carmem Lúcia preferiu ser chamada de presidente do STF. Uma escolha pessoal.

Mas o Brasil patriarcal, conservador e machista não acatou o desejo da presidenta Dilma. O fato é que o Português é mais difícil e misterioso para as mulheres do que para os homens.

 

domingo, 25 de julho de 2021

Manaus, amor e memória DXXV


Colégio Estadual Pedro II, identificado apenas como Lyceu.

 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

VIDAS CUBANAS IMPORTAM!!!

 

Você pensa que já viu essa foto?
Engana-se.
Este é o flagrante do mentiroso e covarde Joe Biden estrangulando o povo cubano.
Você ouve o fatídico sussurro
“não consigo respirar...”?
VIDAS CUBANAS IMPORTAM!!!


Literatura da Gente: neste domingo, Bete Moraes



 

quinta-feira, 22 de julho de 2021

A poesia é necessária?

          Sou um mistério

Agostinho Neto (1922-1979)

 

 

Sou um mistério.

 

Vivo as mil mortes

que todos os dias

morro

fatalmente.

 

Por todo o mundo

o meu corpo retalhado

foi espalhado aos pedaços

em explosões de ódio

e ambição

e cobiça de glória.

 

Perto e longe

continuam massacrando-me a carne

sempre viva e crente

no raiar dum dia

que há séculos espero.

 

Um dia

que não seja angústia

nem morte

nem já esperança.

 

Dia

dum eu-realidade.

 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

terça-feira, 20 de julho de 2021

Mucura carioca

Pedro Lucas Lindoso

  

Tia Idalina, famosa amazonense moradora de Copacabana, preside uma Associação de Senhoras da Terceira Idade. A associação funciona no salão paroquial de uma igreja católica. Às sextas-feiras, as senhoras se reúnem para um estudo bíblico. A proposta é ecumênica e todas podem participar, independentemente de professar o catolicismo. Todas são bem-vindas. Algumas são evangélicas, outras católicas e há algumas que professam o kardecismo.

Eu acho isso fantástico. Tia Idalina me diz que nunca houve discussões dogmáticas. O grupo evita textos bíblicos polêmicos e o evento é sempre um sucesso. Há sempre um farto lanche no final. Infelizmente, foi tudo interrompido em razão da triste pandemia.

Tia Idalina tentou fazer as reuniões virtuais. Mas, infelizmente, não deu certo. Houve poucas adesões. Idalina acha que as companheiras são muito idosas, coitadas. A maioria, diferente dela, já passou dos oitenta.

Idalina insiste que só tem setenta anos. Mas uma pessoa que ouviu pela rádio BBC de Londres, a Coroação da Rainha Elizabeth II, não pode ter menos de oitenta anos. Ela me contou que lembra bem da transmissão. “Falhava um pouco, mas ouvimos tudo”, comentou saudosa. Isso tudo em 2 de junho de 1953, e titia ainda morava em Manaus.

Mas voltemos aos problemas da associação. Além da reunião bíblica das sextas, elas se reúnem para festas de aniversário, juninas, encontros de Natal e celebram as aniversariantes.

Considerando que todas estão vacinadas, Idalina achou que poderiam comemorar os 90 anos de dona Judith. Mas houve um problema. A associação tem 85 associadas. Todas frequentes. O salão tem capacidade para 100 pessoas. Com as regras sanitárias pela pandemia, só podem ser convidadas 50.

Tia Idalina estudou a lista várias vezes e burlou as regras. Convidou 70 associadas. Estavam na lista todas as que participam da reunião bíblica das sextas. Foi um dos critérios. Na lista das quinze excluídas estava dona Leopolda. Foi aí que ela errou. Ao saber-se excluída e que haviam setenta convidadas, Leopolda avisou ao padre. Para evitar problemas com a fiscalização, que tem vindo contar quantas pessoas assistem suas missas, o padre cancelou o evento.

Tia Idalina apelidou Leopolda de mucura. As cariocas quiseram saber o que era mucura. Idalina explicou:

– Em Manaus, a gente chama de mucura uma pessoa feia, desconfiada, falsa e invejosa.  A própria Leopolda. Uma mucura carioca.


domingo, 18 de julho de 2021

Manaus, amor e memória DXXIV


Panorâmica do tracejado do Distrito Industrial, com a
Bola da Suframa em destaque. Ao fundo, o bairro do Japiim.

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O mundo maravilhoso da não violência

                                  Dílson Lages Monteiro(*)

 

Analisando a literatura para a infância no século XIX, diz Teresa Colomer (2017: 143-144) que os contos populares sempre desfrutaram da preferência infantil, priorizando a fantasia e o prazer narrativo. Assim é que contos de feição popular e oral se deixaram absorver e permanecem até hoje como referência social, colocando o viés moralizante como natureza secundária, para favorecer a fabulação. Chapeuzinho Vermelho e inúmeras obras, por exemplo, permanecem perenes, mas a elas, em recontos ou na incorporação delas por outras narrativas, foram acrescidos diálogos com novas manifestações da linguagem: novos gêneros, novos valores, novas formas de narrar.

Em “A cidade perdida dos meninos-peixes”, embora a obra seja lida como novela, Zemaria Pinto evidencia as constatações de Colomer, ao ressignificar a tradição oral como ponto de partida para sua escritura, que carrega a marca da imaginação a partir do realismo mágico. Lendas do Norte brasileiro, tão conhecidas país afora, servem para a surpresa e para a fantasia de significados novos. Quem já não ouviu, entre nós, a lenda do Boto? Essa lenda e outros relatos, como a universal lenda de Atlântida, aludida, inclusive diretamente no texto, criam uma narrativa que concilia a aventura e o fantástico, para o maravilhoso sobrepor-se.

Assim é que os primeiros capítulos da obra, de fundo metalinguístico, são uma anunciação do lugar das histórias oriundas da oralidade e um convite (se não uma antecipação do núcleo dramático), para se descobrir o que torna o homem verdadeiramente humano (qual vida estaria conotativamente submersa?). Um convite para a valorização da própria tradição de contar, representada pela Mãe Velha, chefe de um conselho de seres sábios, como descobrirá o leitor, e especialmente, uma alegoria para o tempo, uma negação da morte, ainda que possa ser lida como a força viva da lembrança e da saudade.

“(...) Mãe velha tinha a cara do tempo (...) É verdade (...) Um dia (...) fora vista pela última vez a beira do rio de sua cidade (...) seguindo um bando de botos (...) exibia um sorriso de felicidade nos lábios” (PINTO: 2020, 10).

O próprio narrador é quem anuncia, no capítulo 2, que a matriz de sua história é a oralidade (“Vou contar a história...”), estabelecendo a transição entre a autoexplicação e a narrativa propriamente dita por uma espécie de saudação, ao mesmo tempo, a reverência ao valor sagrado de toda a sabedoria simbolizada na Mãe Velha. “A bênção, Mãe Velha” é não somente um aviso de que a história vai começar para valer, mas também, como concluirá o leitor, a anunciação de que há valores universais sagrados a permanecerem entre nós como condição para a convivência harmônica e feliz.

Ilustrações e capa de Leyla Leong.

Ao criar um mundo sobre-humano, mas não apartado do mundo real, o narrador vale-se da  narrativa de aventuras. Sílvia Adela Kohan (2013:28) lembra que, entre os aspectos composicionais de textos com essa configuração, encontram-se o interesse por viagens, a entrada em um mundo desconhecido, marcado pela ameaça de perigos inesperados. Exatamente o que se observa em “A cidade perdida dos meninos-peixes”: o aparecimento de um ser estranho vindo de outro mundo ameaçador e parcialmente desconhecido, como também misterioso, o novo mundo em que aparece o Menino-terra depois de afogar-se. Além disso, o perigo de um mundo violento externo à realidade do povo-água e a possibilidade concreta de um grupo de meninos desse mundo ter de enfrentar a violência assinalam claramente a presença da aventura.

O conflito entre o primitivo e o civilizado determina, com relevo, as escolhas temáticas. Na oposição entre o povo-água e o povo-terra, lê-se ironicamente, pela contradição dos valores do consumo, o retorno a um mundo natural. Nele, importa o essencial. Nele, importa, por exemplo, principalmente, a família, focalizada para a ativação de conhecimentos relacionados às relações humanas, com relevo ao lugar do afeto. Todo o texto é construído para se sentir saudades de casa. O próprio Menino-terra, que tem os valores transformados pela convivência com um mundo organizado para a fraternidade, reconhece, ao final da obra, a unidade familiar como o amparo, fonte da ternura e uma das motivações para o existir.

Lê-se de igual modo a forte presença da crítica social. A narrativa, centrada no súbito aparecimento de um Menino-terra na cidade submersa dos meninos-água, vai-se organizando, em geral de maneira indireta, sobretudo nos diálogos, para criticar as variadas formas de violência. Crítica vista, por exemplo, em diálogo entre o casal Ramai e Ieso, pais das crianças protagonistas Loma e Aman, em apologia ao vegetarianismo. Diz Ramai para Ieso:

“– Aos poucos, ele começa a se lembrar da sua vida na terra. Imagine que hoje, no almoço, ele reclamou da minha comida. Disse que estava fria e que não aguentava mais comer folhas e raízes...

– O organismo dele deve estar sentindo falta de carne. Você sabe que na terra eles criam os animais em casa, para depois matá-los e comê-los?... – São uns selvagens. E eu temo que ele fique assim também...” (PINTO: 2020, 23).

A crítica social enfatiza-se, sobremodo, na negação do sentido impresso nas diversas maneiras de brincar do Menino-terra.  A brincadeira significa para ele um modo de exercer liderança e de manipular. Um modo de corromper e de ameaçar. Um modo de legitimar poder, autoritarismo, injustiça e desigualdade. Diante disso, o povo-água reage com perplexidade, melancolia e espanto. Porém, com esperança na força transformadora da espiritualidade, que leva, mesmo o Menino-Terra, a compreender:

“(...) eu percebi que além de carinho e compreensão vocês têm uma outra coisa que eu não sei explicar... As pessoas se ajudam umas às outras... Elas não se atropelam, nem mesmo tentam ultrapassar quem está na frente... Sabe, Mãe Velha, logo que eu cheguei aqui, eu achava tudo muito lento, mas agora eu compreendi... O importante não é chegar na frente... O importante é chegar... Assim todos chegam...” (PINTO: 2020, 57).

O mundo-terra aparece representado com curiosidade em conquistas tecnológicas que conduzem o leitor a questionar o sentido delas para o bem-estar social. O sentido do automóvel ensejando a violência no trânsito:

“– Automóvel é uma caixa de aço, em cima de quatro rodas. Tem de vários tamanhos, e, conforme o tamanho, muda de nome: ônibus, caminhão, carreta... Mas na rua é uma beleza só! Tem de duas rodas, também, que é a motocicleta, e é mais radical ainda: o sujeito anda se equilibrando pra não cair, a 200 quilômetros por hora...

– Vamos brincar de rua da terra? Um dos meninos sugere e recebe imediato apoio do grupo. O Menino-terra, cujo nome verdadeiro ninguém nunca soube, pois desde o primeiro momento que o viram assim o chamaram, organiza a brincadeira:

– É assim, ó... Cada um de nós é um carro, ou uma motocicleta... A gente tá numa rua lá da terra, aí quem for mais forte vai em frente e vai derrubando os outros, entenderam? Isso é o trânsito numa cidade lá da terra...” (PINTO: 2020, 26-27).

“A cidade perdida dos meninos-peixes”, de Zemaria Pinto, é um convite à reação contra as imposições da sociedade de consumo sobre as crianças. Uma provocação que faz acreditar na importância de conceitos universais sagrados para a construção de um mundo melhor. Referenda-se, assim, um postulado valioso, capaz de resumir a função social da obra:

“Os valores da liberdade, tolerância ou defesa de uma vida individual prazerosa fazem com que a literatura infantil e juvenil se dirija a enfrentar qualquer forma de poder autoritário: a denunciar as formas de alienação e exploração da sociedade industrial moderna; a reivindicar tanto a vida rural quanto aquela própria de culturas não industriais, como a harmonia com a natureza, e a defender os setores socialmente débeis ou diferentes (pessoas imigrantes, exploradas ou de raças minoritárias (sic))” (COLOMER: 2017,203).

Conclui-se sobre “A cidade perdida dos meninos-peixes”, de Zemaria Pinto, que:

“As formas de vidas geradas pela sociedade são amplamente rechaçadas por causa dos problemas de agressão que terminam em uma tríplice direção: agressão a seus próprios cidadãos alienados, explorados ou oprimidos, à natureza arrasada e a outras raças ou a culturas aniquiladas” (idem, ibidem).

 

(*)Dílson Lages Monteiro é autor de diversas obras de ficção, entre as quais, O Pássaro Amarelo de Sol e o Agasalho do Vento (Nova Aliança, 2021).

 

Referências:

COLOMER, Teresa. Introdução à literatura infantil e juvenil atual (tradução Laura Sandroni). São Paulo: Global, 2017.

KOHAN, Sílvia Adela. Escrever para crianças. Tudo que é preciso saber para produzir textos de literatura infantil. Belo Horizonte: Editora Gutemberg, 2013.

PINTO, Zemaria. A cidade perdida dos meninos-peixes. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2020.

 


quinta-feira, 15 de julho de 2021

A poesia é necessária?

        A terra desolada

T. S. Eliot (1888-1965)

 

1.    O enterro dos mortos

 

Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aléias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.

 

Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

Frisch weht er Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?

“Um ano faz agora que os primeiros jacintos me deste;
Chamavam-me a menina dos jacintos.”
– Mas ao voltarmos, tarde, do Jardim dos Jacintos,
Teus braços cheios de jacintos e teus cabelos úmidos, não pude
Falar, e meus olhos se enevoaram, eu não sabia
Se vivo ou morto estava, e tudo ignorava
Perplexo ante o coração da luz, o silêncio.
Oed' und leer das Meer.

 

Madame Sosostris, célebre vidente,
Contraiu incurável resfriado; ainda assim,
É conhecida como a mulher mais sábia da Europa,
Com seu trêfego baralho. Esta aqui, disse ela,
É tua carta, a do Marinheiro Fenício Afogado.
(Estas são as pérolas que foram seus olhos. Olha!)
Eis aqui Beladona, a Madona dos Rochedos,
A Senhora das Situações.
Aqui está o homem dos três bastões, e aqui a Roda da Fortuna,
E aqui se vê o mercador zarolho, e esta carta,
Que em branco vês, é algo que ele às costas leva,
Mas que a mim proibiram-me de ver. Não acho
O Enforcado. Receia morte por água.
Vejo multidões que em círculos perambulam.
Obrigada. Se encontrares, querido, a Senhora Equitone,
Diz-lhe que eu mesma lhe entrego o horóscopo:
Todo o cuidado é pouco nestes dias.

 

Cidade irreal,
Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,
E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.
Galgava a colina e percorria a King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas
Com um dobre surdo ao fim da nona badalada.
Vi alguém que conhecia, e o fiz parar, aos gritos: “Stetson,
Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!
O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?
Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! - mon semblable -, mon frère!”

 

(Tradução: Ivan Junqueira)


quarta-feira, 14 de julho de 2021

terça-feira, 13 de julho de 2021

Meu celular, meu templo

                                                                                 Pedro Lucas Lindoso

 

A intimidade do lar. Esse conceito vai além de simplesmente a residência ou domicílio. É o lugar da convivência familiar. Deve ser protegido. Deve ser indevassável por pessoas indesejáveis.

Antes da era da informática, nos meus dias de menino, havia as visitas indesejáveis. O melhor exemplo que me vem na memória são os vendedores de livros e enciclopédias.

Um desses vendedores de enciclopédia adentrou-se em nosso apartamento quando meus pais estavam viajando. Estávamos sob a guarda de nossa avó materna. Pois bem, o vendedor entrou e começou a explicar as maravilhas da enciclopédia BARSA. Minha avó informou a ele que não compraria. Mesmo porque já havia uma em casa. Ademais, os donos da casa estavam viajando e ela não tinha como adquirir, mesmo se quisesse.

O rapaz não desistiu. O fato é que minha avó gostava de jogar paciência no baralho. O rapaz chegou em nossa casa por volta das 6 horas da tarde. Foi servido o jantar, ouviu-se o noticiário, a novela e nada do rapaz se retirar. Passava de meia-noite e o rapaz continuava tentando vender a enciclopédia para minha avó. E ela, inabalável, sentada à mesa, jogando paciência. De repente o rapaz adormeceu. Ela então levantou-se e pediu ajuda para pôr o rapaz para fora. Que fosse dormir em sua casa.

Hoje somos invadidos por spam.  Há algumas controvérsias sobre o significado. Há quem diga que é uma sigla para o termo Sending and Posting Advertisement in Mass. (Enviar e postar publicidade em massa).

Um amigo me disse que spam deriva de spiced ham (presunto apimentado). E agora? O fato é que se trata dessas mensagens eletrônicas não solicitadas, enviadas em massa. Nos visitam como nos visitavam os outrora vendedores de livros, enciclopédias e outros que tais.

São tão incômodos e inconvenientes como os vendedores de antigamente. Lotam os nossos aparelhos celulares de mensagens.

Quero minha privacidade de volta. Meu lar como meu celular deve ser sinônimo de intimidade, privacidade. Meu celular deve ser território onde se abrigam pessoas que eu considero. Contatos em consequência de laços naturais ou por afinidade. Pessoas as quais tenho em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica.

Quero meu celular como um objeto e um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar somente os meus amigos e familiares. É o templo sagrado. Há uma expressão em Inglês que diz “my home is my temple”. Quero o mesmo para o meu celular. Meu celular, meu templo.


domingo, 11 de julho de 2021

sábado, 10 de julho de 2021

quinta-feira, 8 de julho de 2021

A poesia é necessária?

                   Tecendo a manhã

João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

 

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

 

2

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Rua Grande em crônica, memória e canção

 


Temos, nós, muitas pátrias. Cada lugar em que habitamos nos deixa marcas imorredouras. Torna-nos pertencentes a um tempo, a uma paisagem, para o ser e o estar no mundo. Poucas pátrias são tão agradavelmente vitais quanto a da infância. O 18º Círculo Literário Virtual Entretextos, projeto de memória e de letramento literário do Portal Entretextos, é uma homenagem à cidade de Barras do Marataoã, no Piauí, por meio de sua rua mais famosa, a antiga rua Grande, um dia Getúlio Vargas, hoje Marechal Taumaturgo de Azevedo. Será um passeio por imagens para todas as eras. Será um momento especial: ouviremos sobre Taumaturgo no Amazonas e no Acre e escritores de diversas paisagens reescrevem, em crônicas, percepções espaço-temporais coletivas com canção de Francy Monte.

10.07, às 16h (BSB), pelo Zoom.


terça-feira, 6 de julho de 2021

O que é lábaro?

Pedro Lucas Lindoso

 

No dia quatro de julho os americanos comemoram sua independência. Fim de semana de feriadão e de festejos por lá. Fogos de artifícios, “pic-nics”, paradas e muita bandeira americana tremulando país afora.

Alguém já disse que o que é bom para os americanos é sempre bom para os brasileiros. Há controvérsias. O fato é que eles são, aparentemente, bem mais patriotas do que nós.

Quando jovem, fiz intercâmbio no Estado de Ohio, no Meio Oeste americano. Levei uma bandeira brasileira na mala. Ao mostrá-la, um jovem americano de pronto comentou:

– Que bandeira bonita! Mas logo, emendou: Mas a nossa é muito mais!

Na América, o patriotismo é incentivado em casa, na escola e na vida comunitária. No Brasil os homens esperam completar dezoito anos para se apresentar ao Exército e jurar à nossa bandeira. O Juramento à bandeira é compromisso feito pelos cidadãos homens após a dispensa do serviço militar. E as mulheres?

Os americanos fazem esse juramento desde a mais tenra idade. É o “pledge of allegiance”. Juramento este que expressa fidelidade à bandeira e à República dos Estados Unidos.

É recitado em todas as escolas americanas por alunos perfilados, com as mãos sobre o coração. Sempre na presença do diretor da escola e dos professores. Postam-se em fileiras ordenadas, em direção ao pavilhão americano. Cada aluno faz a saudação à bandeira, que, de tanto fazê-lo, todo cidadão americano sabe o “pledge of allegiance” de cor e salteado. E diz assim:

“Eu juro fidelidade à bandeira dos Estados Unidos da América e para a República que representa, uma nação, indivisível, com liberdade e justiça para todos. “

Certo dia, durante o intercâmbio, me perguntaram se tínhamos um juramento parecido no Brasil. Eu fiquei sem graça e recitei uma estrofe do nosso Hino Nacional. Como era em português, ninguém entendeu nada. Acharam um pouco grande

Quando se houve o hino “The star-spangled banner”, A bandeira estrelada, todos os americanos se colocam empunhando a mão direita sobre o lado esquerdo do peito. É a etiqueta, o protocolo ensinado nas escolas. Aqui uns fazem isso, outros ficam em sentido, outros não fazem nada.

Dona Honorina, minha professora de português do ginásio, costumava usar a letra de nosso Hino Nacional para análise sintática e morfológica. Mandou analisar: “Brasil, de amor eterno seja símbolo / o lábaro que ostentas estrelado”. Alguém perguntou:

– O que é lábaro, professora?

 


domingo, 4 de julho de 2021

Manaus, amor e memória DXXII


Palácio da Justiça, anos 1960.
Observem o asfalto pichado com propaganda política...

quinta-feira, 1 de julho de 2021

A poesia é necessária?

                   Sensual

Gilka Machado (1893-1980)

 

Quando, longe de ti, solitária, medito

neste afeto pagão que envergonhada oculto,

vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito

que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.

 

A febril confissão deste afeto infinito

há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto;

pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,

à minha castidade é como que um insulto.

 

Se acaso te achas longe, a colossal barreira

dos protestos que, outrora, eu fizera a mim mesma

de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.

 

Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,

e sinto da volúpia a ascosa e fria lesma

minha carne poluir com repugnante baba...