Amigos do Fingidor

domingo, 30 de junho de 2024

quinta-feira, 27 de junho de 2024

A poesia é necessária?

 

Romance do Banho

Elson Farias

 

Era morena tostada,

forte, esbelta como um cão,

os cabelos eram claros

de saboroso castanho;

longas tiras escorriam

na costa vincada em curvas

– eram cobras encravadas

no dorso de uma raiz;

o calcanhar era firme,

seu andar arroliçado,

as ilhargas mal roçavam

nas pregas da saia fina.

 

                *

Fendeu-se o cerrado verde

de patativas e anus,

filhos de caba, sol quente,

ventos gerais, água e mel;

ela vinha – balde, cuia,

dentes expostos, carnudos

os lábios, flor de papoula

a cantar e a se despir.

 

                 *

Ela vinha, mas menino

balador de passarinhos,

não sabia descobri-la;

pressentia apenas vagos

sons das patas elegantes

dos poldros do meu instinto,

rachando cones de pedra

no meu raciocínio mole.

 

                  *

Ela esfalfou-se nas águas,

misturou-se com os peixes,

camarões a beliscaram,

escamas, pés, gumes virgens;

o relampejo das palmas

como línguas de uma faca;

a sombra escura no fundo,

as coxas alvas e turvas;

peixes, menina de banho,

anáguas brancas ao sol.


terça-feira, 25 de junho de 2024

A vovó é tua

 Pedro Lucas Lindoso

 

O meu pai e tios nasceram em Manicoré. No Rio Madeira. Mais precisamente no Seringal Vencedor, propriedade de meu avô Zacarias Lindoso e de seu irmão Carlos Lindoso.

Histórias contadas por tios e pelo meu pai têm sempre um toque de surrealismo fantástico. Ou então são mesmo engraçadas. Os Lindoso são conhecidos pelo bom humor. As vezes não tão “bom” assim. Alguns relatos podem ser cómicos. Outros, tragicômicos. Ou totalmente trágicos.

Tio Antônio descrevia com detalhes o banheiro do seringal. Detalhes inesquecíveis de quem odiava ser escalado para lavá-lo. Por obrigação ou por punição.

A “casinha” ficava do lado de fora da casa principal. Perto do rio, por razões sanitárias óbvias. Não havia vaso. Aliás, havia quatro. Não eram propriamente vasos. Uma bem bolada estrutura sanitária pensada e bem projetada por meu avô. Consistia numa bancada de madeira com quatro aberturas redondas destinadas a servir de vaso sanitário, conforme tamanho e idade do usuário. Como desconheciam as referências P,  M, G e GG, os curumins do seringal, responsáveis pela limpeza do local, classificaram os buracos como bundinha, bunda, bunda grande e bundão.

Como todo coronel de barranco, vovô Zacarias era tudo: patrão, conciliador, engenheiro e até médico. Como ele mesmo dizia, em terra de cego quem tem um olho é rei.

Dona Clotilde, moradora da localidade, chegou ofegante. Reclamava de dores abdominais e cólicas terríveis.

Assuntos relacionados à saúde da mulher normalmente eram da alçada da Vovó Zezé. Ou de dona Clarinha, parteira conhecidíssima no seringal e redondezas. Por sorte, ela visitava vovó quando dona Clotilde apareceu, amparada por seu neto Antero. Caboclo parrudo e diligente.

Considerando a idade avançada de Clotilde não seria gravidez. Coube ao vovô Zacarias diagnosticá-la. Ele não tinha dúvidas, mas houve por bem ouvir a vovó e dona Clarinha. Formada a “junta médica”, confirmou-se o diagnóstico do velho Zacarias. Dona Clotilde sofria de gases enclausurados ou “encausados” na linguagem do caboclo.

A prescrição dada, aliás bastante eficaz, como se comprovou, consistiu em bicarbonato de sódio, um poderoso chá de ervas feito pela vovó e massagens no abdômen, a cargo da dona Clarinha.

De repente, um estrondo. Valha-me Deus. Acode a Clotilde. Levada às pressas para a casinha e sentada no buraco GG. O de número quatro. O buraco para bundão. De repente outro estrondo. Seguido de uma reivindicação de meu tio Antônio:

– Quem vai lavar a casinha é o Antero. Afinal é neto dela. Nem moradores daqui eles são.

Vovô achou o pleito justo, justíssimo. Ao ouvir a sentença fatídica, Antero quis escapulir. Já ia pegando a canoa quando foi interceptado por titio e outros três.

– Pode voltar que a vovó é tua. Teleso é?

 

domingo, 23 de junho de 2024

Manaus, amor e memória DCLXXVI


O muro à esquerda é do Cemitério São José, onde hoje se localiza a sede do Rio Negro Clube, na avenida Epaminondas. 

 

quinta-feira, 20 de junho de 2024

A poesia é necessária?

 

Poema das tuas mãos

Violeta Branca (1915-2000)

 

 

As tuas mãos nervosas, quentes, largas,

harpejam nos meus sentidos

a música ideal da emoção.

 

Para os teus dedos criadores,

sou o piano mágico vibrando

ao influxo de tua ardente inquietação.

 

Tuas mãos frementes,

arrancam angústias sonorizadas

de meus nervos,

que se retesam como cordas harmoniosas.

 

Tuas mãos imperiosas,

tuas mãos rebeldes,

cantam silenciosas aleluias de gestos,

quando compõem poemas de volúpia,

gritos incontidos de alegria pagã,

correndo ligeiras,

leves,

torturantes,

no teclado branco de meu corpo...


terça-feira, 18 de junho de 2024

Antônio de Lisboa, Pádua e Borba

 Pedro Lucas Lindoso

 

Minha avó materna, Brigitta Daou, era nascida em Borba. Devota de Santo Antônio, como muitos de lá. Aprendi com ela que Antônio é doutor da Igreja e grande taumaturgo.

Antônio tinha o dom da ubiquidade. Dom divino de estar em dois lugares ao mesmo. Enquanto rezava uma missa em Pádua foi socorrer seu pai tirando-o da forca em Lisboa. O seu pai fora acusado injustamente de homicídio. No momento da execução, Santo Antônio aparece e demonstra a sua inocência.

Nascido em Lisboa foi batizado como Fernando. Ao entrar para o Clero tornou-se Antônio.

Vindo de Lisboa navegando pelo Mediterrâneo acabou naufragando já na costa da Itália. Salvou-se, pois tinha o dom de acalmar o mar.

O santo milagreiro faz achar bens perdidos e dá saúde aos doentes. Antônio quebra as correntes das prisões, dos vícios, das dívidas impagáveis e de relacionamentos abusivos.

Antônio uniu-se a Francisco de Assis e pregou por várias cidades da Itália setentrional. Principalmente em Pádua, como ficou conhecido.

Na cidade de Rimini protagonizou um dos mais belos feitos de sua biografia. Como não conseguia atenção para sua pregação, Santo Antônio, por inspiração divina, aproximou-se da foz do rio e começou a pregar aos peixes:

— Ó peixes, meus irmãos, vinde vós ouvir a palavra do Senhor, já que os infiéis fazem dela pouco caso!

E logo naquela hora se reuniram diante de Santo Antônio tantos peixes, grandes e pequenos, como nunca por ali fora visto tamanha quantidade. E todos eles punham a cabeça para fora d’água.

Na imagem de Santo Antônio em Borba projetada pelo meu amigo Marius Bell, o santo está rodeado de peixes. Marius me disse ter estudado e inspirou-se em sua biografia para compor a base do magnífico monumento.

A festa em Borba, em honra a Santo Antônio, é um exercício de fé católica e devoção carinhosa a esse santo tão querido e festejado pelo povo.

Antônio é de Lisboa. Por lá há uma grande festa no dia 13 de junho. É também de Pádua e de Borba. É sem dúvida o santo mais amado e reverenciado do Brasil. Salve Antônio de Lisboa, Pádua e Borba. E salve Santo Antônio do Brasil!

 

domingo, 16 de junho de 2024

quinta-feira, 13 de junho de 2024

A poesia é necessária?

 

Poesia: 1970

Paulo Leminski (1944-1989)

 


Tudo o que eu faço

alguém em mim que eu desprezo

sempre acha o máximo.

 

Mal rabisco,

não dá mais pra mudar nada.

Já é um clássico.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Confusão ou racismo

Pedro Lucas Lindoso

 

Há pessoas que são mestras em fazer confusão.  São pessoas confusas. Também conhecidas como lesas. Confundem alhos com bugalhos. Enquanto o alho é o bulbo de certa planta, muito usado e apreciado na gastronomia, o bugalho, também conhecido como noz-de-galha, é a protuberância que se forma em troncos de árvores comuns no continente europeu, como os carvalhos,

Nem eu sabia o que eram bugalhos. Fui pesquisar. Não posso deixar meus leitores confusos. Ainda bem que temos o professor Google. Sempre nos ajudando a esclarecer nossas dúvidas.

Pois bem, voltando ao assunto confusão. Essa história é antiga. O fato se deu nos anos sessenta do século passado. O ocorrido me foi relatado pelo meu dileto confrade Geraldo Xavier dos Anjos. Ex-presidente e membro dedicado do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e da Academia Amazonense de Letras.

Havia um desembargador que era negro. Raridade nos dias de hoje. Naquele tempo, mais ainda. Vamos evitar “dar nome aos bois”, como se diz popularmente. Determinada autoridade precisava entregar uma encomenda ao desembargador. Dirigiu-se à residência do magistrado com seu motorista. Ao chegar na casa do desembargador pediu ao leso do homem que entregasse o documento ao desembargador. O motorista avistou um senhor negro no jardim da casa e o chamou:

– Ô preto velho, vai chamar teu patrão. O desembargador aproximou-se do portão e disse calmamente.

– Bom dia, eu sou o desembargador. No que o confuso motorista replicou:

– Deixa de conversa, seu preto safado. Vai logo chamar o teu patrão. O desembargador, evitando criar confusão, treplicou:

– Estou dizendo ao senhor que eu sou mesmo o desembargador. Ainda sem acreditar, o motorista respondeu:

 – Espera ai um pouco que eu já volto, disse o impertinente motorista. O leso do chofer então retornou ao carro com a encomenda. O patrão, sem entender o que estava acontecendo, pergunta:

– Entregastes a encomenda? E o motorista abestado responde:

– Não senhor. Um preto que estava no jardim não quis chamar o doutor. E ainda por cima dizia que era o desembargador. No que o patrão, entre nervoso e atordoado, repreendeu-o:

– Meu Deus! O homem é mesmo o desembargador.  Vai lá, pede mil desculpas e entrega a encomenda. Tu acabaste de escapar de ser preso por desacato à autoridade. Seu estrupício. A confusão causada pelo motorista pode ser considerada como racismo estrutural. Está presente na própria estrutura social. Segundo essa concepção, o racismo não seria uma anormalidade ou “patologia”, mas o resultado do funcionamento “normal” da sociedade. Nos nossos dias seria crime de injúria racial e desacato. Provavelmente, o motorista seria preso mesmo. Por confusão, desacato ou por racismo.

 

domingo, 9 de junho de 2024

Manaus, amor e memória DCLXXIV

 

Ônibus-ícone do livro Estação Radiant, de Margarida Campos, um passeio pela Manaus dos anos 40-60, do século passado. À venda no site da Editora e outros sites especializados.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

A poesia necessária?

 

Literato cantabile

Torquato Neto (1944-1972)

 

agora não se fala mais

toda palavra guarda uma cilada

e qualquer gesto pode ser o fim

do seu início

agora não se fala nada

e tudo é transparente em cada forma

qualquer palavra é um gesto

e em minha orla

os pássaros de sempre cantam assim,

do precipício:

 

a guerra acabou

quem perdeu agradeça

a quem ganhou.

não se fala. não é permitido

mudar de ideia. é proibido.

não se permite nunca mais olhares

tensões de cismas crises e outros tempos

está vetado qualquer movimento

do corpo ou onde quer que alhures.

toda palavra envolve o precipício

e os literatos foram todos para o hospício

e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.

agora não se fala nada, sim. fim. a guerra

acabou

e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

 


terça-feira, 4 de junho de 2024

Em Portugal, fala-se português

 Pedro Lucas Lindoso


Nossa amiga Sonia Campos é emérita moradora de Copacabana. Vera e eu conhecemos Sonia em Brasília. Nascida em Copacabana, retornou para o Rio após se aposentar. E claro que Sonia conhece tia Idalina. Conhecida amazonense em autoexílio no Rio de Janeiro há décadas. São amigas. As duas estão passando uns dias em Portugal.  Recebo notícias de ambas pelo whatsapp. Que coisa fantástica esse aplicativo. Até bem pouco tempo gastava-se uma nota para se comunicar com a família em viagens pelo exterior. Os amigos só tinham notícias no retorno. Quando jovem, passei muitas férias no Rio de Janeiro. Lembro-me que titia convocava todo mundo para assistir sessões de “slides” no seu apartamento. Sempre que retornava de suas viagens.

Aquilo era um tédio. Ninguém ousava falar nada. “Olha eu às margens do Sena”. Dizia ela. Em Roma, na Fontana de Trevi. E sempre lembrava que tinha jogado moedas de cruzeiros na tal fonte dos desejos. E poupado suas liras. Imagina, antes do euro! E que ainda tinha francos. Que voltaria a Paris. E mostrava ainda os “slides” em Lisboa. Em frente à Torre de Belém e nos Jerônimos. Aquilo era interminável. E que Portugal valia a pena. Que se trocava dólares por escudos. E etc e tal. Os jovens de hoje não sabem o que são “slides”, nem francos ou escudos. Muito menos liras. Só o instrumento. Hoje, recebe-se fotos via whatsapp.  É mais divertido e menos monótono do que ver dezenas de “slides”.

Sonia e Idalina foram ao Algarve. Visitaram um parque onde havia oliveiras milenares. Tiraram foto de uma oliveira de aproximadamente 2850 anos. Pois é. Segundo um amigo historiador, já se comia jaraqui por aqui na Amazônia há 3 mil anos atrás. Mas acho que não tem uma sumaúma dessa idade.

Idalina admirou-se que, no Aeroporto de Lisboa, as malas são colocadas em “tapetes” e não em esteiras. As diferenças entre o Português do Brasil e de Portugal são tantas que ela resolveu pedir informações em Inglês. Levou uma bronca. Falamos o mesmo idioma, minha senhora. Ora, pois, pois. Fale o Português, “faz favoire”.

As tais oliveiras milenares foram certificadas por uma “equipa de investigadores” da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. As árvores medem 569 cm no perímetro médio ao nível do peito e 220 cm de altura. As árvores tem peito, em Portugal!

Sonia fez aniversário no dia 27 de maio. Foram comemorar num restaurante chamado D’Bacalhau. Sonia recebeu um diploma no qual o chef executivo do D’Bacalhau, Júlio Fernandes, atenta que Sônia comemorou seu aniversário por lá. Que a data se repita por muitos e longos anos. Foram os votos de toda a “equipa” do restaurante.

Tia Idalina já foi várias vezes a Portugal. Está cansada de saber que eles chamam suco de sumo. Como ela anda meio surda, não entendeu o garçom. E já foi pedindo “orange juice, please”. Titia não tem jeito. Alguém lembrou-lhe: “Já esqueceu a bronca no aeroporto? Aqui falamos português, minha senhora!”



domingo, 2 de junho de 2024