Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Medicina como Paideia II
João Bosco Botelho
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Empédocles de Agrigento, autor da Teoria dos Quatro Elementos.

A associação entre as idéias da Escola Médica de Cós, sob a liderança de Hipócrates, com a filosofia jônica, sem dúvida, possibilitou um avanço de dimensões gigantescas ­— a Medicina como Paideia — estabelecendo a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Desse modo, a Medicina como Paideia abriu o caminho para a dominação da medicina-oficial sobre a medicina-divina e a medicina-empírica. É possível que com esse objetivo central, os conceitos jônicos da natureza tornaram-se as principais medidas da medicina-oficial. As normas alcançaram os significantes das enfermidades entendendo-as como desvios da natureza e em maior amplitude, mudança na physis do homem.

É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis embutidos na Medicina como Paideia:
- Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: “...a physis comum de todas as coisas, da physis própria de cada coisa”;
- Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”).
- Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia;
- Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza;
- Como divindade: a physis é em si mesma divina.

É possível que esse caráter divino da physis estivesse transparecendo a necessidade de o senso comum manter a medicina-oficial ligada à medicina-divina e à medicina-empírica ou, sob outra perspectiva, não ser possível a completa separação entre as três medicinas.

Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4 a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, ao deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de autor desconhecido, escrito no século 4 (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050):

Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar, deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência especificada e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelas características de cada região. Deve ter presente também os efeitos dos diversos gêneros de Águas. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo saber, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação às várias correntes de ar, ao curso de sol (...) assim como anotar o que se refere às águas (...) e à qualidade do solo (...) Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, o nascimento e o ocaso dos astros, conhecerá antecipadamente a qualidade do ano. Pode ser que alguém considere isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a mudança do clima.


As doenças deixaram de ser compreendidas isoladas e passaram a compor parte da busca da etiologia. Esse é um dos pontos fundamentais da medicina-oficial grega, do século 4, marcando a união entre a filosofia jônica e os conceitos de saúde e de doença. Entre as muitas consequências é possível identificar:
- Cada doente ficou compreendido como um doente, diferente de todos os outros;
- Desaparecimento gradual da receita médica que valia para todos, como uma receita de bolo.

O centro de confluência dessa nova estrutura aproximou-se da teoria dos Quatro Elementos, do filósofo e médico Empédocles (495-435 a.C.). Segundo esse magistral filósofo de Agrigento, os corpos são formados por quatro elementos eternos que permanecem em constante movimento: fogo, terra, água e ar.

Estava em curso, pela primeira vez, uma proposta teórica para explicar a origem das doenças, divorciada dos deuses e deusas. Toda e qualquer enfermidade seria consequência do desequilíbrio entre um ou mais elementos.

Como toda mudança profunda nos saberes, a passagem da medicina-divina e da medicina-empírica, ambas ametódicas, mais ou menos mágicas, para a medicina-oficial metódica, unindo o diagnóstico, prognóstico e o tratamento valorizando a busca da etiologia, encontrou resistência em muitos setores da sociedade grega. Para contornar esses estorvos, os médicos expunham, como os sofistas, perante o público, os problemas determinados pelas doenças que poderiam causar a morte e a dor fora de controles.

Não é demais repetir que Platão, sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova postura do médico e do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes, deveriam sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras. O diálogo platônico estabelece alguns parâmetros da nova posição social do médico atuando como agente da Medicina como Paideia no magistral Político (296a-b-c) (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2.):

Estrangeiro: — É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão o que for necessário para promover melhoras na sociedade.

Sócrates, o Jovem: — Muito bem! Não estarão eles certos?

Estrangeiro: — Talvez. Em todo o caso, se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes.

Sócrates, o Jovem: — Que queres dizer?

Estrangeiro: — Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? Seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção, não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram?

Sócrates, o Jovem: — Dizes a pura verdade.

Estrangeiro: — Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?

A autoridade de Platão não foi suficiente para estancar as resistências dos curadores da medicina-divina e da medicina-empírica, que muito mais numerosos do que os médicos de Cós, promoveram manifestações públicas contra a nova força da Medicina como Paideia junto ao poder político.