Zemaria Pinto
Moronguetá, síntese de uma obra em afluência
A obra de Nunes Pereira
tem duas vertentes temáticas principais: a indígena, em primeiro plano, e a
negra. Nosso pequeno trabalho concentrou-se nessas vertentes, onde Moronguetá e A Casa das Minas despontam como desaguadouros dos demais
livros-rios, que afluem, sempre, para um ou para outro, caracterizando-se como
uma obra em constante movimento, sempre em evolução: uma obra em afluência.
Gestado em mais de 40
anos de viagens pela Amazônia, Moronguetá
– um Decameron indígena é o rio principal, o riomar, para onde afluem todos
os outros livros-rios, inclusive os de temática negra, todos tributários dele. Em
carta a Arthur Reis, em outubro de 1943, 24 anos antes do livro vir à luz,
Nunes informava ao amigo a respeito de uma viagem que fizera ao Alto Madeira. Esboçava-se
naquela viagem a ideia de Moronguetá,
embora o livro já estivesse sendo gestado há muito mais tempo.
Não tivesse escrito mais nada, este livro seria suficiente para marcar o nome de Nunes Pereira entre os mais importantes autores brasileiros do século XX. Publicado em dois volumes, com mais de 840 páginas, o livro divide-se em cinco partes, além de rico material iconográfico, cada uma delas referente a uma Área Cultural: Roraima; Vale do Rio Negro; Rio Solimões; Rio Madeira; e Rios Andirá e Maués. Em cada uma dessas partes, o autor analisa relevo, clima, flora, fauna, antecedentes históricos e situação atual dos indígenas, concluindo cada uma delas com uma antologia de mitos, lendas, estórias e tradições das etnias da área – o “Decameron indígena”, além de um glossário e notas. No final, dando um toque enciclopédico ao conjunto, há um índice de verbetes e um índice remissivo, sendo este classificado por assunto – fazendo de Moronguetá um completo banco de dados de referência antropológica.
Não tivesse escrito mais nada, este livro seria suficiente para marcar o nome de Nunes Pereira entre os mais importantes autores brasileiros do século XX. Publicado em dois volumes, com mais de 840 páginas, o livro divide-se em cinco partes, além de rico material iconográfico, cada uma delas referente a uma Área Cultural: Roraima; Vale do Rio Negro; Rio Solimões; Rio Madeira; e Rios Andirá e Maués. Em cada uma dessas partes, o autor analisa relevo, clima, flora, fauna, antecedentes históricos e situação atual dos indígenas, concluindo cada uma delas com uma antologia de mitos, lendas, estórias e tradições das etnias da área – o “Decameron indígena”, além de um glossário e notas. No final, dando um toque enciclopédico ao conjunto, há um índice de verbetes e um índice remissivo, sendo este classificado por assunto – fazendo de Moronguetá um completo banco de dados de referência antropológica.
Sobre o significado do
título, Nunes Pereira esclarece-o logo na introdução. Moronguetá tem o sentido
geral de “narrativa de fatos autênticos e imaginários”, podendo, em função do
contexto, significar mito, lenda, conto, estória etc. Quanto ao subtítulo, ele
“aproveitou” a ideia de seu colega alemão Leopold Frobenius, que em 1910 publicara
O Decameron Negro, relacionando
narrativas coligidas junto a povos africanos com o clássico renascentista Il Decameron, de Boccaccio. Nunes
Pereira, vendo no seu conjunto a mesma relação – o humor e o sexo como eixos
das narrativas, não titubeou: Um Decameron
Indígena. Não é demais lembrar a lição de Bergson: “não há comicidade fora
do que é propriamente humano.” O riso, como o sexo, é um índice de humanidade.
No capítulo “Situação
atual dos indígenas”, que se repete em cada uma das cinco partes em que se
divide o livro, o tom dominante é sombrio: Nunes Pereira tem consciência de que
o avanço da “sifilização” – como ele define com ironia o que nós representamos
para o índio, é o ocaso daquela cultura, daquela literatura, daqueles saberes
que têm a exata idade do tempo. Mais tarde, em entrevistas, já em idade
avançada, ele não se continha e dizia o que em Moronguetá está nas entrelinhas: “O drama do índio é irreversível.
O índio vai desaparecer.”
Um dos textos mais
contundentes dos modernos Estudos Literários, no Brasil, Uma poética do genocídio, do inesquecível Antônio Paulo Graça, faz
uma análise dos dez mais importantes romances que têm o índio como protagonista,
e conclui assim:
O
tema último do romance indianista é o genocídio, o extermínio total. (...) Todo
romance indianista é uma metáfora do genocídio.
Nunes Pereira, leitor
desses livros, e vivendo suas aventuras fora da ficção, tem a mesma percepção
crítica, com um tempero ainda mais amargo, porque protagonista da tragédia que
se encena no dia a dia.
Passados 50 anos desde
a primeira edição de Moronguetá, a
situação foi aplacada, muitos avanços foram conquistados, mas a ameaça do
desaparecimento continua real e concreta. Ficou o livro-riomar como testemunha
de um tempo e como um monumento esculpido em papel, tinta e pensamento –
fundamental, para a compreensão não só do índio, mas da multiplicidade que
consubstancia a nação brasileira.
![]() |
Livro de Zemaria Pinto, lançado no dia da posse. |
Manoel Nunes Pereira
não é apenas um simulacro de Baíra, o grande burlão. Falo no presente: ele é
sobretudo um homem de ciência, procurando compreender o problema do índio,
penetrando-lhe a mente, interrogando-lhe a alma. E por haver conseguido seu
intento contou estórias repletas de poesia, recolhidas em estado bruto na
natureza. As dezenas de livros, a participação ativa em congressos, as inúmeras
conferências, somadas ao respeito adquirido entre os maiores de seu tempo, não
deixam qualquer dúvida sobre sua importância como cientista. Enfim, a
diversidade de seu trabalho – como antropólogo, etnólogo, etnógrafo, ictiólogo,
economista e sociólogo – merece um aprofundamento para muito além destas parcas
palavras.
TAMBARAMÃ!