Zemaria Pinto
O dramaturgo. A dramaturgia de Machado de Assis não
obteve a mesma aceitação
crítica que
os demais gêneros.
A comparação com os contemporâneos
Arthur Azevedo e José de Alencar joga
uma sombra sobre
o teatro de Machado,
feito, segundo
observação de seu
amigo Quintino Bocaiúva,
anotada por Mário de Alencar, para ser lido e não representado. A
avaliação que faço hoje
é que Machado
procurava se firmar como
autor, buscava furar
o bloqueio do público, e o teatro era uma maneira rápida
de chegar ao grande
público. Nem
todas as peças a ele
atribuídas, cerca de 15, segundo alguns autores, nos
chegaram. Estão acessíveis apenas:
. Desencantos (1861)
. O caminho da porta (1862)
. O protocolo (1862)
. Quase ministro (1862)
. Os deuses de casaca (1865)
. Tu só, tu,
puro amor... (1880)
. Não consultes médico (1896)
. Lição de botânica (1906)
Se dermos o desconto de que
Tu só, tu, puro amor... foi escrita
de encomenda, observamos que a maior parte da produção dramática de Machado
de Assis coincide com a fase
romântica de sua ficção.
Trata-se, entretanto, de um romantismo amargo, crítico,
em que
o romântico quase sempre
perde para o realista – ou melhor,
para o racional.
E, pelo menos
nas três primeiras peças,
é uma mulher que
mantém a racionalidade. O teatro de Machado
é uma transição, uma ponte, entre o romantismo e o realismo,
mas, a bem da
verdade, o lampejo
do grande criador
passa ao largo
das peças, de temas
simplórios e personagens
mal desenvolvidos.
São peças
ligeiras – quase sempre
comédias, de um
ato, apenas
–, o que era
muito comum
à época. E não
se espante com a profusão de viúvas: já se disse que
a Guerra do Paraguai foi a principal fornecedora de viúvas que
aparecem assiduamente na obra de Machado. Podemos falar também das condições
insalubres, as quais
os homens se expunham mais. Mas há um outro aspecto, mais sutil: as viúvas são mulheres que já passaram do estágio
da ingenuidade, são vividas, liberais, donas
de seu próprio
nariz. Isto
é, são independentes
e já não
carregam o peso do pecado
original... O autor
sente-se mais à vontade
com elas,
podendo moldá-las de acordo com a necessidade
dramática, sem
levantar dúvidas
mais azedas quanto
à honestidade e à moral
das personagens.
Desencantos.
Luís de Melo, jovem sonhador,
e Pedro Alves, ambos ricos e sem o que fazer na vida, disputam Clara,
viúva, rica
e... Esta opta pelo segundo;
os dois se casam e Melo vai para
o Oriente. Passados
cinco anos,
o casal vive o inferno
cotidiano a dois. Alves tornara-se deputado e Clara,
que se acostumara à independência
de viúva rica,
parece um modelo
primitivo de feminista,
mas, para manter as aparências,
os dois fazem um
pacto de convivência.
Melo volta ao Rio
de Janeiro e começa
a frequentar a casa. Já não há mais resquício
da antiga paixão.
Melo e Alves, que antes
viviam trocando farpas, tornam-se amigos. Melo apaixona-se pela
filha de Clara,
que tem o mesmo
nome. O novo romance influencia na reconciliação do casal. Uma fala
de Alves refere-se ao agonizante Romantismo,
representado por Melo:
– Acabou o reinado das baladas e da pasmaceira,
para dar lugar ao império
dos homens de juízo
e dos espíritos sólidos.
O caminho da porta. Valentim
e Inocêncio, dois românticos incorrigíveis,
disputam a viúva Carlota. Os nomes dos homens
refletem suas personalidades:
Valentim sonha com
os heróis antigos,
que salvavam mocinhas, enquanto Inocêncio é um
nefelibata. Fazendo às vezes de “consciência”
de ambos, o Dr. Cornélio, que já fora pretendente de Carlota, é o espírito
racional da trama.
Carlota manipula os dois pretendentes,
divertindo-se com eles.
Ao final, Cornélio consegue afastar a ambos os pretendentes, deixando a fútil
Carlota sozinha, recebendo com isso um “castigo” pelo seu “mau comportamento”.
Uma fala do desiludido Valentim a
Carlota resume bem o tom
amargo da peça:
– Ignora que o amor é uma invenção
humana! Os homens,
que inventaram tanta
coisa, inventaram também
esse sentimento.
Para dar justificação moral
à união dos sexos
inventou-se o amor, como
se inventou o casamento para
dar-lhe justificação legal. Eis o que é o amor!
O protocolo. O casal
Elisa e Pinheiro vive os primeiros cansaços
do casamento. Venâncio Alves, um
galanteador, de palavra
fácil e rebuscada,
não perde oportunidade
de atrapalhar ainda
mais o relacionamento do casal. Lulu, prima
de Elisa, mocinha romântica, percebe o objetivo de Venâncio e trama,
racionalmente, para
que o casal
se reconcilie e o estranho desapareça de
suas vidas.
A ameaça de adultério
– um horror
para a época – é
dissipada graças a uma intervenção que
não assegura, entretanto,
que o casal
vá continuar se entendendo. Racional,
sim, mas
sem perder a aura de sonhadora, Lulu seria o protótipo
de Machado para
a mulher dos tempos
que se anunciavam?
Quase ministro. É a peça
mais atual
de Machado, não
pela forma, ou por qualquer invenção,
mas pelo tema: conta a história do deputado
Luciano Martins, cotadíssimo para assumir
um ministério
pela manhã,
tornado ex-quase-ministro pela tarde. Desfia-se
um autêntico
cordão de puxa-sacos:
um jornalista,
um poeta, um inventor, um empresário
de teatro lírico
e até um bajulador profissional,
que só
tem compadres ministros
ou ex-ministros.
Os deuses de casaca. Do ponto de vista literário, é a mais
rica das peças
de Machado de Assis. Escrita em alexandrinos, a peça
faz descer ao Rio de Janeiro um concílio de deuses
olímpicos, buscando adaptar-se à nova realidade da vida urbana, já que o monte Olimpo
perdera o prestígio de outrora. Inspirados por
Cupido, o Amor,
o primeiro a tornar-se mortal,
eles vão,
aos poucos, aceitando a nova condição.
Apolo, o protetor da poesia,
depois de perder
Pégaso para um
grupo de poetas
enlouquecidos, torna-se crítico literário. Marte, o deus da guerra,
funda um
jornal, tendo Mercúrio,
o mensageiro, como
colaborador “na intriga e no recado”. Vulcano, o forjador,
fará, para o melhor
desempenho deles, “penas
de aço”. Proteu, pela
facilidade que
tem de tomar diferentes
formas, torna-se político.
– Vou ter segura
a vida e o futuro.
O talento
Está em não
mostrar a mesma
cara ao vento.
Vermelho de manhã,
sou de tarde amarelo.
Se convier sou bigorna, e se não, sou martelo.
Júpiter, por
fim, vira...
banqueiro. O curioso
é que não
há personagens femininos,
pois todas as deusas já
optaram por se tornarem humanas,
acompanhando os desígnios do Amor. Machado fala pela boca de Apolo: a amada
deste, Juno, mudara de nome para Corina, nome pelo qual Machado identificava uma de suas
musas, que
merecera, em Crisálidas, um longo poema, onde pela primeira vez ele usou o metro alexandrino.
Tu só, tu, puro amor... Classificada
como comédia,
mas com
um desfecho
nada cômico,
foi escrita especialmente
para celebrar os 300 anos de morte de Camões. A peça conta a história de amor
entre o poeta
e a jovem Catarina de Ataíde, negada em casamento a Camões, tido
como vagabundo
e arruaceiro. Eles,
entretanto, continuam a se encontrar, clandestinamente. Mas,
como em
sociedade tudo
se sabe, o pai de Catarina trama junto a El-rei
para que
Camões seja desterrado para a África, ficando
Catarina livre para
casar-se segundo a vontade
paterna.
Não consultes médico. Apesar
do enredo tolo
e inverossímil, esta comédia, escrita na maturidade,
é muito divertida, especialmente
por seus
diálogos de corte
preciso. D. Leocádia é uma simpática viúva
que se acredita uma espécie pré-freudiana,
sempre pronta
a receitar remédios
certeiros para
tristezas crônicas.
O casal Adelaide, sobrinha
de D. Leocádia, e Magalhães, diplomata de carreira,
por exemplo,
foi unido graças às artes
terapêuticas de D. Leocádia. Carlota, filha de D. Leocádia e prima
de Adelaide, sofreu um revés
de amor por
um tal
Rodrigues, “capitão de engenharia, que
casou com uma viúva
espanhola”. Como o casal
Adelaide-Magalhães está de mudança para a Grécia, D. Leocádia achou o remédio
para a filha:
Carlota vai morar com
eles no distante
e mítico país. O casal,
que via
naquela temporada grega
uma segunda lua-de-mel,
conforma-se com a situação,
mas aí
entra em cena
um inacreditável
Cavalcante, amigo de Magalhães, um espírito absurdamente romântico, como
nem o mais
radical dos tardios
autores daquela escola
seria capaz de imaginar.
Mas é exatamente
esse absurdo
que é engraçado. D. Leocádia receita-lhe, para curar a tristeza
que se confunde com
parvoíce (ou vice-versa), passar 10 anos na China, pregando aos infiéis, uma vez que Cavalcante
pretendia entrar para um convento. Entretanto, o contato
entre Carlota e Cavalcante provoca uma revolução na tristeza de ambos; eles se
apaixonam e todos ficam felizes.
Lição de botânica. O
barão Sigismundo de Kernoberg, botânico, tenta
dissuadir D. Leonor a não
permitir o namoro entre Henrique, sobrinho
do barão, e Cecília, sobrinha de D. Leonor. Acontece que
o barão tem reservado
para o rapaz
a glória das ciências,
para a qual o
celibato seria indispensável.
Helena, jovem
viúva, irmã de Cecília, faz-se de
interessada em botânica
e o barão aceita-a como
discípula. O barão
apaixona-se por Helena
e termina por concordar
com o romance
entre Henrique e Cecília.
Concluindo. Este é Machado de
Assis na sua face
menos divulgada, mas necessária à sua consolidação como escritor profissional:
dramaturgo de poucos recursos; cronista impetuoso, porém preso ao cotidiano não
literário; tradutor ousado; crítico exigente e destemido; ensaísta original e,
por vezes, surpreendente. Não fosse o
bom poeta e o contista e romancista sem par, o seu lado avesso – este outro lado, que buscamos
mostrar – não seria suficiente
para tê-lo como
um nome de ponta da literatura
de língua portuguesa. Divago. A parte
não existe sem o todo; o todo não existe sem a parte. E Machado de Assis, ao
longo de 50 anos de aprendizagem e experimento, constrói uma obra essencialmente
humana – que cresce e amadurece sem arroubos de gênio, mas com a perenidade do
bronze.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. São
Paulo: Globo, 1997.
. Balas de estalo & crítica
. Crisálidas, Falenas
& Americanas
. Crítica &
Variedades
. O Almada & Outros poemas
. Páginas Recolhidas
. Teatro
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
BOSI, Alfredo et alii. Machado
de Assis. São Paulo: Ática,
1982.
ECLESIASTES. In: Bíblia Sagrada. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1996. p.
785-798.
POE, Edgar Allan. “O Corvo” e suas traduções. Org. Ivo Barroso. Rio
de Janeiro: Lacerda, 1998.
TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1988.