Pedro Lucas Lindoso
Da
minha infância, além das pessoas e lugares, guardo recordações de objetos. Tais
como o ferro a carvão e o fogareiro. Também a carvão. Mas antes é preciso falar
do carvoeiro. Havia o cascalheiro que tocava triangulo, o verdureiro, o
peixeiro e claro, o carvoeiro. E antes que me pedissem ia logo buscar o
dinheiro para o carvão. Atendia aquele senhor com prazer. Levava-o até a lavanderia
e lhe oferecia um copo d’água, sempre aceito e agradecido.
O
interesse em atender o carvoeiro, além de remeter às deliciosas sardinhas
fritas no fogareiro, o carvão também tinha outra serventia. Para as meninas,
fazer o desenho para pular “macaca”. Que em Brasília é “amarelinha”. Já eu
usava o carvão para fazer um triângulo, círculo ou meia lua no chão de cimento
queimado de cor verde, onde ficava a lavanderia. Era para as inesquecíveis
competições de bolinha de gude.
Antigamente,
o carvão não era apenas combustível; era quase um personagem invisível que
tocava a vida em cada canto da casa. O ferro a carvão, o fogareiro a carvão,
sim, eram as imagens que pulavam na memória do menino ora cronista. Mas havia
outras utilidades que pareciam surgir de um mesmo carvão, como se ele tivesse
várias vidas guardadas dentro de si, prontas para serem reveladas a quem
soubesse olhar com paciência.
Na
nossa rua, o carvão tinha cheiro de fósforo e de lar. Ele acendia não só
fogareiros. Mas conversas e transmissão
de saberes. Aprendia-se a abanar o fogo do fogareiro. Darinha contava histórias
ao redor da brasa que dançava sob o prato de ferro. O carvão era o acorde
invisível que sustentava o dia. O fogo alimentava a simplicidade da sardinha
frita, previamente ticada por ela.
Quem
diria que aquele mesmo carvão, acumulado em sacos de estopa, poderia limpar
mais do que a louça? Em cada casa, havia um filtro de água com carvão ativado.
Não era glamour: era eficiência prática. A água, antes turva, clareava aos
olhos, como se o carvão guardasse dentro de si uma promessa de pureza.
Entretanto,
o carvão não se limitava à função doméstica. No quintal, sob a luz do fim de
tarde, havia o solo. O carvão picado, moído, espalhado pela terra, servia de
adubo para plantas e ervas medicinais.
E o
carvão também era objeto de nossas brincadeiras. Meus inesquecíveis campeonatos
de bolinha de gude seriam impossíveis se não tivesse o carvão para marcar o
chão onde ocorriam os tecos das bolinhas de gude. Havia, ainda, uma função
discreta, quase clínica em sua simplicidade: o carvão como purificador de
odores. Especialmente quando a cozinha recebia pratos pesados e cheiros fortes,
o carvão ativado ajudava a manter o ambiente mais leve,
Se a
gente fechar os olhos, ainda pode ouvir o estalo do carvão no fogareiro e no
ferro de passar roupa. Pode sentir o peso do ferro a carvão, a consistência do
fogareiro ainda quente ao anoitecer. E, no silêncio que se segue, pode-se
perceber que o carvão, aquele objeto aparentemente simples foi, por muitas
gerações, o artífice de muitas coisas invisíveis: memórias do lar da nossa
infância, da paciência de nossas antigas cozinheiras e passadeiras. Aquele fogo
e o seu calor misturado com o mormaço. E elas sempre com uma especial paciência
conosco, a meninada que estava sempre ao redor. Delas e de seus cuidados.
O
carvão, em qualquer variação de uso que tenha surgido, nos lembra quando a
memória precisa de um traço, para jogar bola de gude, ele está ali, pronto para
servir, em qualquer função que o tempo ainda tenha a oferecer.