Amigos do Fingidor

quinta-feira, 8 de março de 2018

Miséria social e caridade 2/2



João Bosco Botelho


Nenhuma doença poderia simbolizar melhor a atenção que Jesus dedicou aos doentes quanto a lepra. Os leprosos foram escolhidos no Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob o pontificado de Alexandre III (1159 -1181), para receberem tratamento especial dos cristãos ao mesmo tempo, foi reprovado o isolamento a que eles estavam submetidos pela sociedade. A Ordem de São Lázaro, criada para dar cumprimento às ordens conciliares, tinha o grão-mestre leproso.
Não se deve estranhar que o pano de fundo das corporações-confrarias-irmandades tenha sido também a obtenção de vantagens pessoais, financeiras e políticas para os envolvidos. Essa afirmação ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao seu irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino, cujas reservas foram gastas nas guerras e o pouco arrecadado era consumido pelos fidalgos.
Sob esse enfoque, é fácil compreender o interesse por essas instituições, claramente demonstrado tanto pelos religiosos quanto pelos laicos. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis para dirigir o produto monetário da caridade aos cofres eclesiásticos, a ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação do reino. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte e publicada nas Ordenações Alfonsinas, de 1446, foi decretada a interdição real nas albergarias, determinando que todos os legados que fossem doados às irmandades deveriam passar pelas cortes civis e não mais pelos tribunais religiosos. Essa providência interrompeu, em Portugal, um aspecto rendoso da caridade cristã, porque proporcionava o recebimento de vultosas quantias em doações e heranças dos ricos súditos bem-intencionados, deveriam ser utilizados na atenção aos leprosos, mas a maior parte do dinheiro engordava a riqueza de clérigos e fidalgos.
A dissolução compulsória das albergarias-hospitais do reino foi seguida de medidas tomadas por D. João II, para viabilizar o hospital único sob o controle da administração real. Essa mudança só seria reconhecida, em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484), autorizando o rei tomar essa providência nas principais cidades.
Nesse conjunto muito complexo de fricções sócio-políticas, se destacou a obra de Guilherme de Ockham (Opus nanaginta dierum), de 1332, associando o Direito ao poder, em torno de duas realidades confluentes: a primeira, inteligível e inserida na realidade observável, sem natureza jurídica; a segunda, de natureza jurídica, atada ao poder. Essa importante construção teórica associando Direito e poder, serviria nos anos vindouros à retomada das ideias greco-romanas no Renascimento que se avizinhava.