João Bosco Botelho
A humanidade, caminhando nos espaços sagrados, e profanos tem
procurado a natureza da consciência não mensurada, até o momento, imaginada.
No espaço sagrado, consagrando coisas e pessoas, a divindade
passou a ser a força motriz de todos os sentimentos. Em consequência, a vontade
divina tem sido a dominadora das emoções, restando à humanidade cumprir,
fielmente, o determinismo inexorável vindo do invisível, obedecendo às ordens
dos representantes na terra do poder transcendente e agradecer, com oferendas e
ritos de louvor, a vida vivida.
No espaço profano, buscando a ressonância das ideias na
realidade visível e mensurável, homens e mulheres iniciaram a busca para
conhecer o próprio corpo escondido atrás da pele e apreender porque chora, ri,
ama e odeia.
O esforço para desvendar a consciência tem se mostrado
doloroso porque o conjunto teórico está amparado no conflito de competência
entre os dois espaços para desfazer as dúvidas e seduzir pelo convencimento.
De um lado, no sagrado, a persuasão tem sido a sagração do
corpo e de coisas, transformando-as no centro, para facilitar a comunicação com
a divindade. Do outro, no profano, ligado no naturalmente observável e
mensurável, tentando legitimar o imaginado.
É história de longa duração!
Os registros em escrita cuneiforme apontam que o fígado era o
mais importante, o centro do corpo. É impossível saber a razão exata dessa
escolha e não outro órgão como o pulmão e o coração. É possível teorizar em
torno da preferência a partir da alta prevalência de doenças hepáticas e febres,
provocando icterícias mortais nos habitantes das margens alagadiças dos rios
Tigre e Eufrates. Sob esse pressuposto, se alguém pudesse interpretar as
variações na forma, na anatomia, do fígado, seria capaz de prever a saúde
futura e, por conseguinte, os malefícios e benefícios na vida social. Desse
nodo, a adivinhação por meio da hepatoscopia – a interpretação das formas do
fígado no carneiro –, para interpretar a vontade da divindade, era prática
corriqueira, ao menos entre os que podiam comprar o animal e pagar o adivinho.
O judaísmo, resistindo desde os primeiros tempos à tradição
politeísta, deslocou o centro do corpo para o coração, talvez motivado pelas
mudanças sentidas no ritmo cardíaco durante as emoções. No Antigo Testamento
(AT) existem citações metafóricas do coração como sede da vida física (Ge 18,
5; At 14, 17), da tristeza (Dt 15, 10), da alegria (Dt 28, 47) e do medo (Dt
20, 3).
Confrontando o monoteísmo judaico, os médicos gregos, na
Escola de Kós, no século 4 a.C., de modo genial, nos aforismos hipocráticos,
aproximaram a consciência do cérebro: “Algumas pessoas dizem que o coração é o
órgão com o qual pensamos e que ele sente dor e ansiedade. Porém não é bem
assim: os homens precisam saber que é do cérebro e somente do cérebro que se originam
os nossos prazeres, alegrias, risos e lágrimas. Por meio dele, fazemos quase
tudo: pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o belo do feio, o bem do mal, o
agradável do desagradável... O cérebro é o mensageiro da consciência... O
cérebro é o intérprete da consciência”.
O cristianismo conservou a interpretação do Antigo
Testamento: Deus comunicando-se com os homens por meio do coração (Mc 2, 6 8;
Lc 3, 15; 2Co 2, 4).
O islamismo manteve o coração, entretanto, e foi mais longe:
talvez sob influência grega, associou o coração como representante da intuição
(“al kashf”, revelação, ato de levantar o véu) e o ponto de identificação (wajd)
com o Ser (al wujud).
O maior desvendar profano do corpo chegou, nos séculos 16 e
17, com os estudos da anatomia e resgatou a maravilhosa percepção dos médicos
hipocráticos da Escola de Kós, recolocando a consciência no cérebro.
A suprema beleza da “Criação do Homem”, pintada por Michelangelo
(1475 1564), no teto da Capela Sistina – o homem recebendo de Deus a
inteligência, claramente o sistema nervoso central – é a sublime manifestação
na arte do deslocamento do coração, como o centro do corpo, para o cérebro,
aproximando os espaços sagrados e profanos.