João Bosco Botelho
E interessante o rumo europeu que tomou a qualificação dos
pajés na literatura especializada. Recentemente, foi introduzida a palavra xamã
como sinônimo de pajé. Na realidade, o termo xamã é derivado do francês,
“chamam”; do alemão, “schamane” e do russo, “saman”. Por outro lado, o
xamanismo é a religião de certos povos do norte da Ásia e são baseados na
primitiva crença de que os espíritos maus e bons podem ser dirigidos pelos
xamãs para promover a bondade ou a maldade.
Júlio César Melatti (“Índios no Brasil”, 5ª ed.), adotou a
religião asiática para diferenciar os pajés brasileiros: “Existe uma certa
categoria de médicos-feiticeiros que recebe o nome especial de xamãs. O que
caracteriza o xamã é poder fazer de um estado de êxtase, durante o qual sua
alma se retira para longe do corpo, percorrendo lugares distantes, ou durante o
qual nele se encarna um espírito estranho”.
A mesma compreensão é encontrada em Berta Ribeiro (“O Índio
na cultura brasileira”): “Na pajelança – fenômeno talvez concentrado na
Amazônia – é que se faz sentir com mais força a influência indígena. O pajé não
é apenas o benzedor. É mais que isso. Adivinha os pensamentos, os
acontecimentos, previne-os e os combate. Os processos de cura do pajé
aproximam-se do xamanismo tupi: a par da introdução da cachaça, registra-se o
uso do cigarro, do maracá, de rezas”.
Do mesmo modo, Viveiro de Castro (“Alguns aspectos do pensamento
Yawalapiti, Alto Xingu”): “Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação
especial com os apapalutapa: os xamãs e os feiticeiros. O espírito – qualquer
um – é por definição um xamã”.
É possível argumentar existir algum equívoco entre os
significantes simbólicos do pajé e do xamã, que pode ser consequência da
introdução por antropólogos e etnólogos europeus da palavra xamã nos seus
trabalhos sobre os índios das Américas. Contrariamente, os cronistas e
viajantes dos séculos 16 e 17 só utilizaram a palavra pajé.
Egon Schaden (“Las religiones indigenas de Amerca del Sur”)
também igualou o xamanismo à pajelança: “La literatura etonologica referente a
América del Sur designa frequentemente com el nombre de chamanismo el conjunto
de practicas y funciones inherentes a esta profesion. El chamam indio puede a
menudo ser tambien em hechicero, o ser considerado como tal, pero seria erronso
aplicarle esta denominacion de modo indiscriminado. El ejercicio de la medicina
figura casi siempre entre sus pincipales atribuciones, y este hecho se explica
por el origem sobrenatural de la mayoria de las enfermidades”.
Talvez o ponto comum entre os autores que identificaram
igualdades entre o pajé e o xamã tenha sido o etnólogo Herbert Baldus por meio
das publicações: “Ensaios de Etnologia Brasileira”, “O Xamanismo” e “Sugestões
para pesquisas etnográficas e a bibliografia crítica da etnologia brasileira”.
As descrições publicadas pelos cronistas dos atributos e das
funções dos pajés, nos séculos 16 e 17, são diferentes das dos xamãs. Os pajés
não eram só curadores que se “comunicavam com os espíritos”, eles iam muito
além: interferiam no conjunto social, previsão do tempo, processos migratórios
e melhor hora de plantar e colher, além de opinar sobre a guerra.
D´Abbeville foi preciso: “Poucos entre eles desconhecem a
maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos por seus nomes
próprios, inventados pelos seus antepassados... Temos entre nós a poussinière,
que muitos conhecem e que denominam seichu. Começa a ser vista, em seu
hemisfério, em meados de janeiro, e mal a enxergam afirmam que as chuvas vão
chegar, como chegam efetivamente pouco depois.”
É evidente que não se trata de adivinhação. Representava o
resultado do conhecimento historicamente acumulado do pajé, muito além da cura
de doenças. O mesmo pode ser suposto em relação à guerra.
Esse extraordinário conjunto de saberes sob a guarda do pajé
contribuiu não só para o imenso destaque tribal, mas, principalmente, pela
expressa determinação do elemento colonizador para destruí-lo moral e
fisicamente como condição para atenuar a resistência.
Sob esses argumentos é possível trazer à discussão o equívoco
de entender o xamã como sinônimo de pajé.