Leyla Leong
Jardim Yolanda , rua B, Q 2, casa 2, bairro Parque Dez de Novembro, Manaus, Amazonas.
Num final de rua, próximo a uma curva, altos pés de bambu escondem a parede. Um portão de ferro vazado em pequenos quadrados interrompe o verde.
Entrando, à direita, o consultório da psicanalista Eugênia Turenko, mulher do poeta Anibal Beça. Entrei naquele consultório uma única vez. De cara senti a força da presença de Eugênia dominando o ambiente. “Uma rainha, pensei, em seu castelo”.
A meia-luz foi aos poucos revelando cores e objetos. Em determinado momento abaixei o olhar e me emocionei: Eugênia havia posto em destaque, em uma mesinha, caixinhas de cerâmica feitas por mim. “Foi o Nibito que me deu de presente”.
A casa se projeta para baixo, de forma que ao nível da rua ficava o consultório e um pequeno hall onde os pacientes esperavam para ser atendidos. A pedido de Eugênia preparei um pequeno canteiro feito com lírios da paz em vasos sobre pedras. Descendo, uma rampa leva a dois amplos espaços.
Num deles, grandes chaises-longues amarelas, uma mesa com tampo de vidro e cadeiras de ferro e vime. As paredes estão cobertas inteiramente por grandes telas, entre as quais a mais impressionante de todas, de Van Pereira, em tons dramáticos de amarelos e marrons.
Dali divisa-se a piscina onde o vento balança o trapézio usado para as sessões de hidroginástica de Eugênia. Um pátio de pedras leva ao jardim por onde ela guiava os amigos para exibir orquídeas, bromélias e árvores frutíferas.
Aos sábados pela manhã, quando a visitava, ela me levava para passear no jardim e me contava as novidades das plantas. Algumas haviam morrido, outras estavam floridas, outras precisavam de poda, outras estavam cheias de frutos... dizia, acelerando a cadeira de rodas com o Cedê ou a Filuca olhando tudo de dentro de uma cestinha.
Ao lado da primeira sala, o espaço prossegue em abertura até a sala de jantar, onde uma mesa se oferecia para até oito amigos sentarem. De uma das cabeceiras Eugênia me ensinou a fazer o autêntico “strogonoff”, com direito a degustação. Sobre aquela mesa comi carneiro, porco e até um arrozinho simples com cenoura que ela mandou fazer na hora, porque eu estava doente.
Os cachorrinhos ficavam ao lado da mesa, à espera dos pedacinhos de comida que ela lhes dava no seu próprio garfo. A primeira vez que vi aquilo me atrevi a fazer um comentário. Eugênia fingiu-se ofendida e me veio com esta: “se duvidar eles são mais sadios do que muita gente!”...
Encostada à parede, uma cristaleira exibe peças avulsas de louças e porcelanas trazidas da Croácia para o trópico úmido na bagagem da elegante e enigmática Dona Ana (mãe da Eugênia), lembrava a doce infância e os antigos tempos.
A sala dá para um pátio a céu aberto, revestido de tijolos aparentes intercalados de orquídeas, bromélias e hera. Ali se reuniam os amigos à espera do jantar e depois dele, esticando conversas. Esse pátio me lembra os réveillons do casal, para os quais tinha um convite “permanente”.
Vi chover, fazer sol e anoitecer naquele pátio. Num desses dias ela me convidou para escrevermos um livro juntas. “Uma história para crianças, propôs, inspirada em algumas lendas russas”.
Um corredor leva à parte íntima da casa, com escala no gabinete de Anibal, onde os livros tomam conta do espaço desordenadamente. Sentado diante do computador onde passava a maior parte do dia, não parecia difícil localizar qualquer obra à qual estivesse se referindo no momento. Era só dar um empurrãozinho na cadeira, fazer uma pequena torção e pronto, o livro estava na mão para mostrar a você.
Nas paredes, fotos, caricaturas e quadros faziam companhia ao poeta nas suas longas horas de criação. Não se tratava de quadros meramente decorativos nem havia propriamente uma programação visual. Era algo que transcendia a estética; puro sentimento, pois todos faziam referência a amigos, momentos, lugares próximos ao coração do poeta.
Naquele pequeno universo pleno de ideias, livros, frases, bilhetes, dicionários e papéis movia-se o grande corpo do poeta e a sua imaginação, a desaguar poemas, livros inteiros, estrofes, artigos, e-mails, telefonemas, músicas......
Certo dia, ali no escritório, Anibal me contou que a cantora que iria interpretar uma música sua no Fecani não tinha uma roupa apropriada para a ocasião. No dia seguinte apareci na casa dele levando o meu “pretinho” de grife para dar mais brilho à interpretação da moça. A menina fez bonito, a música foi vencedora e eu nunca mais vi o meu vestido.
No dia em que o Serafim o convidou para ser presidente do Conselho Municipal de Cultura ele me ligou, suponho que do seu escritório. Estava muito feliz, falou dos seus planos e me convidou para trabalhar com ele. Por algumas dessas “razões” políticas que ninguém entende, a minha nomeação nunca saiu, mas participei de todas as suas vitórias.
Perto dali, o dormitório do casal podia transformar-se em sala de visitas, dependendo da intimidade e do momento.
Quando a Eugênia fraturou algumas costelas, por exemplo, o quarto virou sala de muitas conversas. Deitados com ela na cama Cedê e Filuca ouviam tudo calados. Em uma das minhas visitas Eugênia abriu uma caixinha de onde tirou o seu colar de âmbar. “Veio da Rússia!”, comemorou. Pequenas coisas! Pequenas lembranças de dois grandes amigos.