Amigos do Fingidor

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

A casa do Poeta

Leyla Leong


Jardim Yolanda , rua B, Q 2, casa 2, bairro Parque Dez de Novembro, Manaus, Amazonas.

Num final de rua, próximo a uma curva, altos pés de bambu escondem a parede. Um portão de ferro vazado em pequenos quadrados interrompe o verde.

Entrando, à direita, o consultório da psicanalista Eugênia Turenko, mulher do poeta Anibal Beça. Entrei naquele consultório uma única vez. De cara senti a força da presença de Eugênia dominando o ambiente. “Uma rainha, pensei, em seu castelo”.

A meia-luz foi aos poucos revelando cores e objetos. Em determinado momento abaixei o olhar e me emocionei: Eugênia havia posto em destaque, em uma mesinha, caixinhas de cerâmica feitas por mim. “Foi o Nibito que me deu de presente”.

A casa se projeta para baixo, de forma que ao nível da rua ficava o consultório e um pequeno hall onde os pacientes esperavam para ser atendidos. A pedido de Eugênia preparei um pequeno canteiro feito com lírios da paz em vasos sobre pedras. Descendo, uma rampa leva a dois amplos espaços.

Num deles, grandes chaises-longues amarelas, uma mesa com tampo de vidro e cadeiras de ferro e vime. As paredes estão cobertas inteiramente por grandes telas, entre as quais a mais impressionante de todas, de Van Pereira, em tons dramáticos de amarelos e marrons.

Dali divisa-se a piscina onde o vento balança o trapézio usado para as sessões de hidroginástica de Eugênia. Um pátio de pedras leva ao jardim por onde ela guiava os amigos para exibir orquídeas, bromélias e árvores frutíferas.

Aos sábados pela manhã, quando a visitava, ela me levava para passear no jardim e me contava as novidades das plantas. Algumas haviam morrido, outras estavam floridas, outras precisavam de poda, outras estavam cheias de frutos... dizia, acelerando a cadeira de rodas com o Cedê ou a Filuca olhando tudo de dentro de uma cestinha.

Ao lado da primeira sala, o espaço prossegue em abertura até a sala de jantar, onde uma mesa se oferecia para até oito amigos sentarem. De uma das cabeceiras Eugênia me ensinou a fazer o autêntico strogonoff, com direito a degustação. Sobre aquela mesa comi carneiro, porco e até um arrozinho simples com cenoura que ela mandou fazer na hora, porque eu estava doente.

Os cachorrinhos ficavam ao lado da mesa, à espera dos pedacinhos de comida que ela lhes dava no seu próprio garfo. A primeira vez que vi aquilo me atrevi a fazer um comentário. Eugênia fingiu-se ofendida e me veio com esta: “se duvidar eles são mais sadios do que muita gente!”...

Encostada à parede, uma cristaleira exibe peças avulsas de louças e porcelanas trazidas da Croácia para o trópico úmido na bagagem da elegante e enigmática Dona Ana (mãe da Eugênia), lembrava a doce infância e os antigos tempos.

A sala dá para um pátio a céu aberto, revestido de tijolos aparentes intercalados de orquídeas, bromélias e hera. Ali se reuniam os amigos à espera do jantar e depois dele, esticando conversas. Esse pátio me lembra os réveillons do casal, para os quais tinha um convite “permanente”.

Vi chover, fazer sol e anoitecer naquele pátio. Num desses dias ela me convidou para escrevermos um livro juntas. “Uma história para crianças, propôs, inspirada em algumas lendas russas”.

Um corredor leva à parte íntima da casa, com escala no gabinete de Anibal, onde os livros tomam conta do espaço desordenadamente. Sentado diante do computador onde passava a maior parte do dia, não parecia difícil localizar qualquer obra à qual estivesse se referindo no momento. Era só dar um empurrãozinho na cadeira, fazer uma pequena torção e pronto, o livro estava na mão para mostrar a você.

Nas paredes, fotos, caricaturas e quadros faziam companhia ao poeta nas suas longas horas de criação. Não se tratava de quadros meramente decorativos nem havia propriamente uma programação visual. Era algo que transcendia a estética; puro sentimento, pois todos faziam referência a amigos, momentos, lugares próximos ao coração do poeta.

Naquele pequeno universo pleno de ideias, livros, frases, bilhetes, dicionários e papéis movia-se o grande corpo do poeta e a sua imaginação, a desaguar poemas, livros inteiros, estrofes, artigos, e-mails, telefonemas, músicas......

Certo dia, ali no escritório, Anibal me contou que a cantora que iria interpretar uma música sua no Fecani não tinha uma roupa apropriada para a ocasião. No dia seguinte apareci na casa dele levando o meu pretinho de grife para dar mais brilho à interpretação da moça. A menina fez bonito, a música foi vencedora e eu nunca mais vi o meu vestido.

No dia em que o Serafim o convidou para ser presidente do Conselho Municipal de Cultura ele me ligou, suponho que do seu escritório. Estava muito feliz, falou dos seus planos e me convidou para trabalhar com ele. Por algumas dessas “razões” políticas que ninguém entende, a minha nomeação nunca saiu, mas participei de todas as suas vitórias.

Perto dali, o dormitório do casal podia transformar-se em sala de visitas, dependendo da intimidade e do momento.

Quando a Eugênia fraturou algumas costelas, por exemplo, o quarto virou sala de muitas conversas. Deitados com ela na cama Cedê e Filuca ouviam tudo calados. Em uma das minhas visitas Eugênia abriu uma caixinha de onde tirou o seu colar de âmbar. “Veio da Rússia!”, comemorou. Pequenas coisas! Pequenas lembranças de dois grandes amigos.



terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Amar os livros


Pedro Lucas Lindoso


Há com certeza uma academia de letras em cada unidade da federação. Inclusive no Distrito Federal. No Rio de Janeiro, onde fica a sede da Academia Brasileira de Letras, existe ainda a Academia Fluminense e outra em Niterói. 

Além das prestigiadas academias estaduais, existem Brasil afora associações, grêmios e clubes literários. Alguns desses clubes e associações se autodenominam também de academias. Isso parece incomodar. Mormente alguns escritores que pertencem àquelas pioneiras e legítimas academias estaduais.

O Distrito Federal é uma unidade da federação onde não há municípios. Existem cidades satélites como a próspera Taguatinga. Alguns membros da Academia Brasiliense de Letras não viram com bons olhos a criação da Academia Taguatinguense de Letras. Eu penso que seria ótimo se cada município brasileiro tivesse, além da prefeitura, da Igreja e da Câmara Municipal, a sua Academia de Letras.

Outra polêmica grande é quem está qualificado para entrar nas academias. Moacyr Andrade foi um grande artista plástico e um festejado membro da Academia Amazonense. É certo que publicou livros. Mas sua grande contribuição para nossa cultura foi nas suas maravilhosas telas. Fernanda Montenegro, ícone da cultura nacional, foi eleita, merecidamente, para a Academia Brasileira de Letras. Escreveu um livro. Mas certamente será eternamente lembrada pelos seus filmes, novelas e peças de teatro.

Em Manaus temos vários clubes literários. Há intelectuais que acham que essas associações agasalham alguns sem a necessária qualificação para serem escritores. Nem todos os membros do Clube da Madrugada se destacaram como grandes escritores. Alguns, entretanto, se tornaram bastante conhecidos no Brasil e exterior.

Clubes e associações literárias sempre existiram. Jefferson Péres, em seu livro Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, nos fala do Clube da Madrugada. E lembra que existiu a República Livre do Pina, a Colmeia, que deu origem ao PTB, e muitas outras. Menciona ainda a Sociedade Castro Alves. Relata que no Grémio Álvares de Azevedo houve uma briga com dissidência. Alencar e Silva, José Cidade e Roberto Jansen saíram para fundar a Sociedade Amazonense de Estudos Literários – SAEL. Nenhuma dessas sobreviveu.

Pouco importa se são associações, grêmios, sociedades, clubes ou miniacademias, como os definiu Jefferson Péres. Para fazer parte, estude, frequente, participe, escreva e publique. O mais importante é amar os livros e a literatura.


domingo, 1 de dezembro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCIX

José Maciel, Moacir Andrade, L. Ruas e (na extrema direita) Elson Farias
ladeiam jovens componentes do Clube da Madrugada.