Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Um bom Natal

Pedro Lucas Lindoso

 

Este Natal não caiu no domingo. Poderia ter caído. Parecia domingo. Cheiro de domingo. Gosto de domingo. Silêncio de domingo. “Ainda bem que não foi no domingo. Perderíamos o feriado”. Suspirou tia Marilda, cansada da repartição. Da solidão. De sua vida em segredos.

A noite foi boa. Não houve brigas. Não que não houvesse ressentimentos. Os rancores foram disfarçados. As angústias, sublimadas pelo vinho e pelas rabanadas. Mas havia saudades. Não só de outros natais. Saudades de pessoas. Saudades de um certo lugar que não mais existe. Saudades dos que se foram. Saudades de sabores. Saudades de receitas de doces que não foram herdadas por ninguém. Saudades de orações que ninguém tem mais autoridade de fazê-las.

Havia alegrias. Principalmente das crianças. Elas teimam em acreditar no Papai Noel. Isso é fantástico. Havia alegrias de jovens casais de namorados. Eles não acreditam mais em Papai Noel. Mas acreditam no amor eterno. Isso também é fantástico.

Havia comida. Muita comida. As comidas de sempre. O indefectível peru, tender, saladas gourmet, bacalhau. Sim. Os famosos bolinhos de bacalhau. Ah! Não esqueceram o queijo do reino. O famoso queijo bola. E os doces. Fios de ovos. Tortas deliciosas. Até ele! O panetone! E o pavê.  Sem a piada, por favor.

Havia árvore de Natal. Não colocaram algodão simulando neve. É cafona. Estamos no verão aqui. Havia outros enfeites. Havia música. Somente as americanas. Esqueceram a Simone.

Não houve choro. Mas alguns pareciam tristes. Muito riso. Isso também é fantástico. Houve amigo oculto. Nem todos gostaram do presente. Mas todos fingiram ter adorado as lembrancinhas. As crianças estavam felizes com os brinquedos.

No dia seguinte não era domingo. Mas Natal é feriado. Feriado mesmo. Graças a Deus. Não é tia Marilda?

Ninguém foi à Missa do Galo. Esqueceram mesmo foi da celebração da vinda de Deus entre nós. Jesus não é aniversariante. Mas Ele se faz Menino todo Natal. Louvado seja o Curumim Jesus. É Natal. Foi um bom Natal.


domingo, 29 de dezembro de 2024

Manaus, amor e memória DCCIII

 

Nos 70 anos do Clube da Madrugada, cinco de seus poetas,
da esquerda para a direita:
Guimarães de Paula, Antísthenes Pinto, Alencar e Silva, Jorge Tufic e Farias de Carvalho.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Prefácio (onde se fala de memórias e de afetos)

Zemaria Pinto


Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.

Nescio, sed fieri sentio et excrucior.

(Catulo)

 

Nas minhas memórias afetivas, o cofre dos meus afetos, o latim tem um lugar muito especial, acionado pela audição da língua falada ou cantada e pela visão da língua escrita. Certa vez, perguntei à minha mãe porque os padres falavam diferente, durante a liturgia. A resposta foi rápida e ríspida: é a língua sagrada. Em seguida, quase com carinho, como a se desculpar, ela disse-me que um dia eu iria falar aquela língua. Em segredo, os moleques zombavam do ritual sagrado, arremedando a fala dos oficiantes, com trocadilhos sórdidos: só de ouvir aquilo já me sentia em pecado. E, hoje eu sei, não sofria com isso: me sentia independente, dono do meu pequeno nariz. Peccata mundi. Vem daí a minha crônica ironia?

Anualmente, visitávamos o São João Batista, em 2 de novembro. Numa dessas visitas perguntei à mamãe o que era “Laborum meta”, a inscrição nos portões do cemitério. Do seu jeito peculiar, ela respondeu-me que era latim e a língua, associada à morte, passou a ter para mim um peso de maldição.    

Mamãe se foi, sessenta anos depois, sem esclarecer o que queria dizer com aquele vaticínio de que “um dia...”. Eu ainda menino, a missa passou a ser celebrada em vernáculo e o latim foi esquecido. Mas não por muito tempo.

O movimento “Tropicália” lançou, em 1968, um LP chamado “Panis et circencis”, com dois títulos em latim: “Miserere nobis” e a música que nomeava o disco. As letras eram cantadas em português. Mas a ousadia já não assustava: no ano anterior, Caetano Veloso, uma das cabeças do movimento, lançara um disco com uma letra toda cantada em latim: “Ave-Maria”.

É claro que a embalagem de respeito à tradição dos rapazes baianos e sua horda era pura caçoada, como diria minha avó. E a gente amava aquilo.

Mais tarde, quando eu já andava sozinho pelo Centro da cidade, deparei-me com a inscrição do Relógio Municipal: “Vulnerant omnes, ultima necat”. Anotei-a e levei para minha professora Joaquina, que não só explicou-me o que significava como ainda passou-me a tradução alexandrina de Bilac, que guardei como uma nova maldição. Determinista, explicou-me a doce Joaquina:

 

Todas ferem, passando: e a derradeira mata.

 

Com o mestre Osvaldo Coelho aprendi o significado de “Libertas quæ sera tamen”, extraído de um poema de Virgílio, e a importância da luta pela liberdade. Aprendi que era preciso escolher um lado. E desde então eu escolhi.

Anos mais tarde, já adulto, não tendo mais com o que me espantar, Caetano e Elza sacudiram-me do marasmo:

 

Flor do Lácio, sambódromo

Lusamérica, latim em pó

O que quer, o que pode essa língua?

 

Eu também gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões. Ainda que ela venha do galego, pois este não veio do latim? Se o galego é uma língua-filha, como diz o outro Caetano, o Galindo, o português é uma língua-neta, ora pois.

Se você me acompanhou até aqui, leitora/leitor, deve estar se perguntando: e O ensino de latim em diferentes abordagens teórico-práticas? Lembro uma lição que aprendi com Cícero à época em que dei aulas de Literatura Latina, há mais de 30 anos, e que cito de memória, em português: “domina o assunto e não te faltarão palavras.” Entendeu, leitora? Entendeu, leitor? (Emoji de piscadela).




É louvável que um grupo de jovens estudiosos se reúna para mostrar a quem interessar possa que o latim continua vivo, fazendo parte da vida cotidiana, conforme fartamente demonstrado ao longo do livro, cuja leitura me deu a ideia de falar das minhas memórias afetivas com a língua.

O livro aborda, com riqueza de detalhes, e sem perder de vista o contexto histórico, os métodos e materiais disponíveis para o estudo/ensino da língua, esclarecendo porque estudá-la/ensiná-la é necessário, bem como é fundamental associar o ensino da gramática à convivência com a literatura clássica – uma não existe sem a outra.

Da mesma forma, o ensino da língua portuguesa precisa do latim como fundamento. A querida Joaquina, que me ensinou a ler literatura, falava isso e me assustava. E essa assertiva não é válida apenas para o português, mas para o aprendizado de qualquer das línguas românicas.

O intertexto com a personagem Harry Potter é uma prova cabal de que o latim continua vivo e atuante. O jovem bruxo cativa leitores/espectadores ao redor do mundo com sua dupla vivência, onde o latim é uma metáfora da sabedoria ancestral, passada de geração a geração, através dos séculos.

Por fim, o levantamento de marcas e de produtos comerciais vistos em Manaus é mais uma evidência da sobrevida e uma alegoria da perenização da língua, se nos lembrarmos que o próprio Deus concedeu a Adão o poder de nomear a tudo quanto existe. O levantamento mostra que – se não Deus, que fala todas as línguas – Adão dominava o latim.

Lembro-me novamente de Cícero, ao citar Solão, em Da velhice: “Envelheço aprendendo muitas coisas todos os dias.” Simples, quase tolo. Um reflexo da vida banal. Pois quem não tem mais nada a aprender não tem mais o que viver. Eu aprendi muito com a leitura de O ensino de latim em diferentes abordagens teórico-práticas.

 

PS: a epígrafe de Catulo tem duas funções:

1 – é um exemplo do quanto o latim pode ser expressivo; e

2 – escrito há mais de dois mil anos, é um dos poemas mais belos de um dos maiores poetas de todos os tempos: volte e leia com atenção.   

 

 



Prefácio ao livro O ensino de latim em diferentes abordagens teórico-práticas, organizado pelos professores Soraya Paiva Chain e Adílio Junior de Souza.

Para obter o livro em PDF, gratuitamente, clique aqui.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

A poesia é necessária?

 

Poetas malditos

Maranhão Sobrinho (1879-1915)

 

Quando, pelo clamor dos meus pecados, tive

de, à Treva Inferior, descer, à voz do Eterno,

ralando-me do Mal no aspérrimo declive,

como um deus rebelado e tonto de falerno,

sobre os antros mais nus, como Alighieri, estive

suspenso, a contemplar o delírio eviterno

das pompas sensuais de Gomorra e Ninive,

situadas ao pé de Stromboli do Inferno...

 

Gritos e imprecações, que as chamas retalhavam,

como gládios de bronze, em bárbaras campanhas,

de entre as lavas de sangue e sulfo se elevavam,

enquanto, aos olhos meus, nos infernais retiros,

o fogo, devorando o ventre das montanhas,

dava uns tons de gangrena às asas dos vampiros...

 

Com as unhas lacerando a púrpura sangrenta,

que, dos ombros de auroque, em pregas, lhe caía

vi Nero, inda exibindo a mesma fronte odienta

que, no incêndio de Roma, às chamas exibia...

 

Raivava como um cão, mostrando a saburrenta

língua e, a espaços, também, às escancaras, ria

epiléptico, ao ver as almas em tormenta

atravessando o horror da satânica orgia

de fogo, no solar do Príncipe Demônio,

para, empós, como os cães corridos, lazarentos,

encolher-se, entrevendo o vulto de Petrônio,

que, arrepanhando a toga e erguendo a ebúrnea fronte,                                                       

ia e vinha, a cantar, nos antros pestilentos

do Inferno, uma canção de amor de Anacreonte...

 

Entre uma legião de cetros e tonsuras,

Voltaire, viu-me e sorriu, com um sorriso endiabrado

de caveira, a expelir das órbitas escuras

ironias, de um tom de bronze avermelhado...

 

Blasfemava, estalando as hirtas ossaturas

do esqueleto e mostrando o braço descarnado,

num gesto de rebelde às lívidas alturas

e a enterrar-se ainda mais no Inferno, brado a brado...

 

Erguia, empós, o olhar da treva aos coruchéus

e escarrava, dizendo, em nojo, que o fazia

no orgulho de Lusbel, sobre a fronte de Deus!

E, quando assim falavam os seus lábios, à míngua

de fé, de gota em gota, entre assombrado, eu via

como um visgo de fogo a escorrer-lhe da língua...

 

Também lá te encontrei, Tristan Corbière, nas grutas

do Demônio, cantando umas canções remotas

como o oceano, que morde as praias de ouro, enxutas,                    

no virente esplendor das vivas bergamotas...

 

Tremia-te entre as mãos, em púrpuras volutas

de sons, a harpa do Mal, fazendo, sob as cotas

dos hoplitas do Inferno, o amor ao sangue e às lutas

triunfar transluminoso, em túmidos Eurotas...

Os teus olhos cruéis, em damas de palhetas

de ouro jalde, varando as vastidões aflitas

silenciavam do fogo as púrpuras trombetas

de bronze, que, a planger, nas místicas oblatas

sangrentas do Demônio, em helicinas malditas,

acordavam do Inferno as furnas escarlatas...

 

Desbordes e Mallarmé oscularam-me a fronte

e passaram, por uma azul chama impelidos;

chamei-os e o rumor das lavas do Aqueronte

triste abafou-me a voz, cerceando-me os sentidos...

 

Quando acordei me vi perto da negra fonte,

entre um vivo clamor de pragas e gemidos,

diante do inquieto olhar de um cérbero bifronte

com os olhos como dois santelmos acendidos...

 

Vi, momento depois, em palidez exangue,

Rimbaud e Villiers de L'Isle Adam, chorando,

e o seu pranto infernal era de lodo e sangue...

 

E, quando recuei de agro pavor, Lilian

surgiu-me e, empós, se foi pelas trevas clamando:

Satã! Satã! Satã! Satã! Satã! Satã!



terça-feira, 24 de dezembro de 2024

José, o justo

Pedro Lucas Lindoso

 

Certo dia de domingo, um jovem adulto ouvia atentamente o Evangelho de Mateus, durante a missa. E, de pronto, recusou-se a aceitar as explicações advindas da homilia.

Tratava-se da bela passagem em que Maria, já prometida a José, aparece grávida. Num primeiro momento ele a repudiou em segredo. E evitou que fosse difamada. Um perfeito cavalheiro.

Depois, o anjo Gabriel aparece em sonho. Disse-lhe que não deveria temer. Maria estava grávida por obra do Espírito Santo. Então José a protegeu e a preservou até o nascimento de Jesus.

O jovem admirou-se da atitude de José. Para ele, cético e contestador como geralmente são os jovens, seria difícil se casar com uma jovem grávida, sabendo que o filho não era seu.

E, respeitosamente, resolveu questionar o sacerdote sobre a paternidade de Jesus.

O padre limitou-se a dizer que São José assumiu Jesus como filho. O anjo mandou que José lhe desse o nome de Jesus. Pela tradição judaica ao dar o nome ao filho o pai o reconhece como tal. E que o resto era mistério. E que os desígnios de Deus são insondáveis.

O jovem não se convenceu. Talvez porque não soubesse bem o que eram desígnios e tampouco insondáveis.

Apesar de tudo, o jovem continuou praticante na fé católica. Muito tempo depois, conversando com um senhorzinho já idoso sobre esse assunto, ouviu:

– Pois para mim a concepção de Jesus por Maria não é mistério nenhum. Eu tive um câncer. Fui levado a um hospital espírita. Uma senhora incorporada em um espírito de um médico, me curou. Meu oncologista ficou abismado.

Jesus mesmo transformou água em vinho, curou paralitico, ressuscitou mortos e acalmou o mar.  Não temos como duvidar do poder do Espírito Santo. São José foi mesmo um homem muito justo. Feliz Natal.


domingo, 22 de dezembro de 2024

Manaus, amor e memória DCCII

 

Mercado Adolpho Lisboa.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A poesia é necessária?

 

Presságio

Rojefferson Moraes

 


Passamos a vida toda construindo coisas

Para morrermos sozinhos dentro dos nossos castelos

Abandonados e fiéis ao nosso orgulho tolo

Firmes à melancolia profunda da nossa alma

Feito uma chaga incurável

Criamos nossos filhos como anjos

Na esperança de que não se tornarão monstros

Na esperança de que não cometerão atrocidades

Nem com os outros, nem com nós mesmos

 

Passamos a vida preocupados com os pilares do mundo

Enquanto nossos ossos enfraquecem

A tal ponto de ser impossível permanecermos de pé

Incapazes de prosseguir na caminhada

No compromisso com a causa, com as paixões e com o amor

Uma vida encoberta pela casca da força

Mas recheada de dor, incerteza e luto

 

Tantos projetos e planos para amanhecer um dia

Sozinho, no chão, aos prantos, fraco e sem fé

Tantos planos para ver desmoronar cada um deles

Uma vida inteira de tradição para findar jogado

Como uma folha descartada pela árvore

Tentando rir, tentando demonstrar força para manter o mínimo de dignidade

 

Passamos uma vida inteira limpando quintais

Para morrermos entre os capins e os escombros da velha casa onde ninguém mais quer morar.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Meus Natais em Macondo

Leyla Leong


Na época do Natal a igreja armava um grande presépio para festejar o nascimento do Niño Dios.

Era um presépio fantástico onde além das figuras tradicionais dos carneirinhos, Nossa Senhora e os Reis Magos havia onças, macacos, formigas, anacondas, borboletas, bares, seringueiros, caçadores, caminhões carregados de bananas em estradas poeirentas, camponeses, indígenas e uma infinidade de elementos da vida cotidiana daquele lugar perdido no mapa.

Era o Frei Barbicha, capuchinho espanhol, contextualizando o nascimento do Menino Jesus, para não deixar que os fiéis se bandeassem para as igrejas evangélicas que começavam a surgir nas florestas.  

Quando batia seis horas da tarde, pegava meu véu de filó para assistir à novena. 

Antes de voltar para casa parava diante daquele presépio enorme para cumprir a que viera: embaralhar as peças do presépio do Frei.

Punha os caminhões para trafegar nos lagos de espelho, as onças dentro dos bares, camponeses se beijando, o Menino Deus brincando com as serpentes.

Um dos espantos da minha infância, fora as histórias que o nosso cozinheiro Barba Azul contava e da asfixiante proximidade com a floresta, era a “Vaca Loca”, uma tradição dos pueblos colombianos representada no Natal, na praça em frete à igreja.

A “Vaca Loca” tinha olhos de fogo e corria atrás das crianças que choravam enquanto os adultos dançavam.

O medo também fazia parte dos Natais da minha infância.




domingo, 15 de dezembro de 2024

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Em ‘Folia no Seringal’, Zemaria Pinto expande narrativa sobre o Clube da Madrugada


O livro “Folia no Seringal: ensaios sobre a literatura do Amazonas – antes, durante e depois do Clube da Madrugada” (Valer), do escritor e crítico literário Zemaria Pinto, acrescenta dados à narrativa conhecida sobre o movimento que marcou a literatura.

A obra, que já está nas livrarias virtuais e também disponível a partir deste domingo, 8, na Valer Teatro, terá lançamento oficial em Manaus em breve.

Com o novo livro, Zemaria coloca o Clube da Madrugada, movimento literário amazonense de 1954, fora do discurso que o caracteriza como uma repercussão tardia da Semana de 1922.

Clique aqui para saber mais...



 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

A poesia é necessária?

 

A lucidez da pedra

Antísthenes Pinto (1929-2000)


A lucidez é a loucura plena

como a pedra é água desde o início.

O amor, essa coisa mítica e terrena

é o fruir da ave – um artifício.


A loucura há de me levar acima,

amplamente, além das convenções,

há de retornar também em implosões

de seres e paisagens, aquém da rima.


O retorno é sempre um passo à frente

porque indescobrível como a aurora.

E é por isso que, hirto ou indolente,

perscruto o universo a toda hora.



terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Cuidado com o Waze!

Pedro Lucas Lindoso 


Minha netinha Maria Helena é muito simpática e falante. E como toda criança inteligente e sapeca, diz cada uma!

No carro, a caminho da escola, ouviu do Waze: “Cuidado. Lombada adiante”.

– Pai, o que é lombada? pergunta Maria Helena. No que seu pai, que é brasiliense, respondeu:

– É quebra-molas! E Maria Helena, que já está aprendendo inglês, retrucou:

– Então lombada é quebra-molas em inglês, pai.

Todos riram da sagacidade de Maria Helena. Ora, se algo tem dois nomes é provável que o outro nome seja mesmo inglês.

Se vovó Vera estivesse no carro teria logo dito que quebra-molas em Inglês é “bump”. Aprendeu essa palavra quando era adolescente e morava em Wisconsin, nos Estados Unidos.

 Nem tudo que encontramos nas estradas, ruas e avenidas tem o mesmo nome Brasil afora.

Rotatória, aqui em Manaus, geralmente é chamada de bola.  E são grandes como a Bola da Suframa e a Bola do Coroado. Perto do Parque do Idoso há uma rotatória menor. Já ouvi chamarem de bolinha.

Em Brasília, cidade natal do pai de Maria Helena, rotatórias são chamadas de balão. Na vizinha Goiânia, há pequenos “balões” ou “bolinhas”, chamados de “queijinhos” pelos goianos.

Dependendo da cidade brasileira sinal de trânsito é semáforo ou farol. E meio-fio pode ser guia.

Maria Helena vai logo aprender que não é só o tal Waze que pode confundir as pessoas.

Com o pai brasiliense vai saber que bombom pode ser bala. Ou balinha. E bala de cupuaçu com chocolate em Brasília é bombom. Cruzeta é cabide por lá. E só quem usa farda é soldado. Aluno usa uniforme.

Como uma garota que viaja pelo Brasil e exterior, Maria Helena vai logo saber as diferenças entre inglês e português. Entre amazonês e os falares do nordeste e do sul. Claro que vai! E cuidado com o Waze! Ele pode confundir você. Inclusive em Inglês.


domingo, 8 de dezembro de 2024

Manaus, amor e memória DCC

Cemitério São José, nas proximidades, hoje, da Praça da Saudade.




 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Amazônia, o paraíso perdido do haicai?

Zemaria Pinto[*]


Talvez me precipite, mas me parece que existe uma tradição de cultivo do haicai entre nós; pelo menos, em Manaus. Quisera poder dizer na Amazônia, esse lugar mítico que esconde tantos mistérios. E a linguagem do mistério é a mesma da poesia. Mas, estaria sendo leviano, porque não conheço outros cultores fora da capital do Amazonas, além dos amigos poetas Eliakin Rufino e Isaac Melo – representando Roraima e Acre.

Essa tradição aproxima-se dos setenta anos – ou, dependendo do ponto de vista, dos cem anos. Mas, um retrospecto da prática do haicai não pode se restringir a um mero “ouvi dizer”. Eu mesmo já fui acusado de afirmar que “tudo começou com o livro Crisântemo de cem pétalas, de Luiz Bacellar e Roberto Evangelista, publicado em 1985”. Essa falácia está registrada em um livro festejado, que eu não cito em detalhes por delicadeza. Afinal, por que a guerra, que só beneficia a quem a provoca, se a paz é um bem para todos?

Mas, devo admitir que, assim como dezenas de meus pares, acreditei piamente, durante muito tempo, que o introdutor do haicai no Amazonas fora mesmo o amigo Luiz Bacellar, mas no livro Frauta de barro, de 1963, onde constam dez haicais, que passaram a doze na segunda edição. E Bacellar jamais negou isso. A partir da terceira edição, os haicais foram eliminados. Autocrítica?

 

O mar está bravo e bate

bate; e, levantando espuma

canta nos rochedos.

(p. 85)

 

Esse pecado coletivo se desfez com o tempo. O livro As horas lentas, de 1930 (2002, 2ª ed.), de Raimundo Monteiro, traz seis tercetos aos quais o autor chamou de “Utas” – uma forma chinesa, adotada no Japão como “waka”, que é simplesmente “poema”. O primeiro waka foi escrito pelo kami (deus) Susanoo, dedicado a sua noiva como presente de bodas. Raimundo Monteiro escrevia como um haijin, mas pensava como um romântico:

 

Morre, em surdina, a toada

De uma viola magoada...

– Penso na minha Amada.

(p. 58)

 

Em 1957, Benjamin Sanches, que se consagraria contista seis anos depois, publicava Argila, onde se destaca uma seção de três poemas, intitulada “Hai-kais”. Sanches bebe na fonte guilhermina:

 

Banhando-se nua,

No rio treme de frio,

A pálida lua.

(p. 125)

 

Volto no tempo, para desfazer mais uma falácia. Muita gente boa credita o ensaísta Samuel Benchimol, merecedor de toda a nossa consideração, como o introdutor do haicai no Amazonas. No livro Nova Terra da Promissão – A Amazônia de Samuel Benchimol (2010), o poeta, ficcionista e ensaísta Elson Farias afirma, com clareza:

 

[Samuel Benchimol] deixou uma coletânea de versos organizada em 1942 e intitulada Versos dos verdes anos, até hoje inédita. (p. 38)

 

Uma outra fonte, que defende ser esse o marco introdutório do haicai no Amazonas, informa que, em livro de 2001, Benchimol assinala que o subtítulo da obra (que seria futuramente citada por Farias) é “Poemas e haicais escritos no período de 1942-1945 (inédito)”. Desconsiderando-se as confusões com as datas, pergunta-se: se era inédito até 2001 – quiçá, 2010 –, quem leu antes, além de uns poucos ungidos por Benchimol? E leu um rascunho, talvez um manuscrito, não uma publicação.

Raimundo Monteiro ou Benjamin Sanches – isso ainda vai dar muita discussão, mas não temos pressa –, o que sabemos com certeza é que não foi o professor Benchimol nem tampouco o poeta Bacellar os introdutores do haicai no Amazonas.

Os quarenta anos seguintes a Argila foram pródigos no aparecimento de cultores do haicai, entre os quais, de memória, destaco Jorge Tufic, Anísio Mello, Ronaldo Bonfim, Anibal Beça, Simão Pessoa e até o locutor que vos fala, além dos já citados Bacellar e Evangelista. Na virada para o século 21 nasce o Grêmio Sumaúma, que tem vida efêmera: apenas um ano de atividade. Mas, revelou muitos autores, entre os quais, sempre correndo o risco de esquecer alguém, cito Rosa Clement, Dedé Rodrigues, Grace Cordeiro, Urdapilleta Sanches, Sergio Luiz Pereira e um pessoal que, quase 25 anos depois, ainda lavra a seara do haicai: o grupo intitulado CLAM – Clube Literário do Amazonas, sob a liderança de Nelson Castro. O grupo, aliás, lançou este ano o livro Kigo, com poemas de quatro de seus componentes, e já prepara uma nova coletânea.

Em paralelo, o trabalho realizado na UFAM, pelo professor Cacio José Ferreira e outros, nos faz acreditar que aquela tradição referida no início segue “de vento em popa”, para usar uma imagem bem nossa. Lembro Casulo de imagens: a poesia japonesa no Amazonas (2017), bela coleção de análises de autores e haicais, organizada pelos professores Cacio José e Rita Barbosa de Oliveira. Na orelha do livro, o professor Cacio reafirma a ideia de que a Amazônia é especial para a prática do haicai.

 

O leitor compreenderá que o haicai amazonense revela uma natureza peculiar, não deixando, porém, de portar a universalidade da poesia. Ao contrário, intensifica, diante das variadas imagens amazonenses, o desdobrável e tradicional gênero poético japonês.

 

Este livro que o leitor tem em mãos faz parte desse trabalho, trazendo à luz composições inéditas, onde encontramos nomes conhecidos, como dos professores Cacio e Guedelha, e uma maioria de, imagino eu, iniciantes que demonstram firmeza no uso da técnica e na execução da tarefa.

Para finalizar, permito-me comentar um pouco sobre a forma haicai. Existem muitas teorias para definir o que pode e o que não pode nas linhas e entrelinhas de um haicai. Mas o que vale para nós, pobres mortais, não vale para Paulo Leminski ou Millôr Fernandes, por exemplo. Feita essa constatação, pego a contramão:  quanto mais à vontade, mais Milorinski ou Leminslor, quanto mais libertário, mais você vai se aproximar da essência do haicai.

O rigor técnico vem com a elegância no domínio da linguagem. A técnica do “empilhamento de versos”, por exemplo, deve ser usada com cuidado, pois enrijece a composição. O poema deve fluir em uma frase ou duas. Veja este exemplo tirado de U. Sanches, no livro Poesia minimal (2013):

 

Tarde chuvosa

escondida nos bambus

a orquestra dos sapos

(p. 35)

 

Um pântano, a tarde chuvosa, eram as informações do haijin. Que sensações ele extrai de tão pouco? O primeiro verso exprime a melancolia do momento: uma tarde de chuva. Não está dito, mas infere-se, é fim de tarde e os primeiros sapos começam a cantoria. O poeta lírico certamente puxaria pela memória e faria uma relação daquele momento com algum sentimento recôndito. O haijin limita-se a registrar o momento, com os recursos que um fotógrafo ou mesmo um pintor não disporiam. Um cinegrafista, talvez. Mas não conseguiria, contudo, passar a mesma sensação que o poeta, porque ao leitor cabe compor a imagem e imaginar os sons que ela evoca, tornando-se cúmplice na criação. Esse leitor, se tiver alguma intimidade com a paisagem, despertará todos os sentidos: sentirá a chuva molhando sua pele; ouvirá o ruído da chuva e a música da saparia; perceberá o cheiro que emana daquele paul; sentirá na boca o gosto daquelas sensações todas; e sobretudo verá com todas as cores aquela paisagem cinza. Masum sexto sentido, que é um atributo do haijin: a percepção do que não é evidente, a intuição de que aquele momento único, que não irá se repetir jamais, é um poema, que ele, com seu poder de concisão, registra em nove palavras.

 Acrescente-se que o poema de Sanches foi construído em duas camadas: uma, refletindo a condição geral do poema, normalmente identificando com o kigo, isto é, o elemento do poema que define a estação na qual ele foi escrito; e outra refletindo o efêmero, o instante, a experiência jamais sentida. Flagrante de um momento único, o haicai é um poema tão concentrado, que, por muitas vezes, nem percebemos a poesia nele entranhada. Daí que o desapego às regras proporciona maior liberdade, resultando em maior concentração. O haicai é isso: uma explosão de sensações, porque, enquanto o lírico trabalha sentimentos, o haijin revela sensações.

Concluo, agora sim, conclamando a todos para fazer do haicai um instrumento a serviço da natureza, visando ensinar a paz e criar uma consciência de mudança comportamental e não negacionista nos jovens e, principalmente, nas crianças: o mundo está em perigo e a poesia pode ser usada para chamar a atenção disso. Vivemos no âmago da maior floresta tropical do planeta, o que nos lembra a enigmática e talvez profética sentença de Euclides da Cunha:

 

A Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis.[2]


***




 Apresentação do livro Vento na folha de bananeira, que você pode obter, em PDF, à sua direita.



[*] Zemaria Pinto é escritor, com 28 livros publicados em gêneros diversos, incluindo dois de haicais: Corpoenigma (1994) e Dabacuri (2004). Membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, é mestre em Estudos Literários, pela UFAM. Na década de 1990, foi professor, na UFAM, entre outras matérias, de Literatura Amazonense.

[2] CUNHA, Euclides da. Prefácio de Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Amazônia – Um paraíso perdido (seleção de textos amazônicos). Manaus: Valer, 2003, p. 354.