Jorge Tufic
Neste livro, que considero um dos melhores da trajetória poética de Francisco Carvalho, hão-de encontrar seus leitores, nas duas vertentes que lhe nutrem a inspiração e o trabalho – quais sejam, o lirismo e a problemática do ser – pascalino ou litúrgico, como vivente de uma esfera sujeita à morte e à decomposição – aquela pausa maior em que nada pode ser resolvido senão através da poesia. É nessa fronteira, também, que o filósofo E. M. Cioran descarboniza o pessimismo de seu famoso breviário: “o universo não se discute, se exprime”.
A marca expressiva do Autor, festejada desde que se estreara nas “artes músicas”, continua, ao ver de alguns críticos, inalteradamente progressiva em cada uma de suas gloriosas etapas, não sendo estes Centauros urbanos uma exceção à regra: ele é uma prova a mais de sua força verbal e do poder que lhe anima para atingir o núcleo metafórico dos mais límpidos diamantes da escrita.
Ao prosseguir nas minhas anotações, tendo em vista escrever alguns parágrafos sobre o livro, detive-me um pouco numa resposta de Lêdo Ivo quando fora este solicitado a fazer uma seleção antológica de sua obra poética. Disparou, então, este mestre das nossas desilusões da literatura “que todos os poemas de sua autoria foram escritos simultaneamente”, e que ele não percebia neles “o emblema do passado ou o estigma do presente. Todos eram contemporâneos, habitavam o mesmo momento” (Vera Lúcia Oliveira, Revista da ABL, pág.201, ano 2002).
Assim tem sido e assim contemplo, a distância, a impregnante e sugestiva poesia de Francisco Carvalho, magnum opus que está a merecer uma edição especialmente cuidada por editores qualificados, reunindo sua obra completa, sem prejuízo de que o vate, ainda por longos anos, prossiga dividindo o seu tempo entre a burocracia da Universidade Federal do Ceará e a colheita umbrosa de Hafiz, ou das insônias de Van Gogh.
Mas qual o preceito, a diretriz do poeta?
Em nenhuma lógica se enquadra o poeta, em particular o poeta cujo original tenho aqui para honra da minha escrivaninha. Ele é ubíquo, introvertido, onilateral e onipresente; numa palavra, demiurgo. Nessas viagens, por acaso, ele vai ao encontro de Proust, Homero, Fernando Pessoa ou Rimbaud. Pode até ser barroco, no que tende a sentir, como no primeiro citado, as tenazes do “tempo perdido, a obsessão do tempo como evanescência, o apego inútil à sensualidade do instante, as horas que voam, o vanitas vanitatum, a vida sonhada mais que vivida, o ser e não ser entre dois agoras, entre há pouco e daqui a minutos”. (Augusto Meyer, Proust, Vida e Obra, Correio da manhã 19/11/96, Rio de Janeiro).
Tais sentimentos se fundem e se estilizam por uma representação mais forte do objeto invocado, ou pelas ambiguidades, traços estes comuns na poética de Francisco Carvalho. Há outros ângulos, porém, um denso textuário, riquíssimo e vasto, ao dispor dos leitores.
Deste modo, quem tenha observado o “movimento” ou os “movimentos” na poesia desse veterano, há-de notar que ele sabe, tanto quanto os mais atentos exegetas ou filólogos, que a persistência dos hábitos adquiridos em séculos de cultura estratifica os conteúdos da palavra. Quando ele diz, por exemplo, “formigas elétricas”, “papoulas de arame”, ou repete a preposição “sem” como se fora “cem”, numeral, dialetizando a ausência de algo com a possibilidade “real” do que pode ser visto e captado, isto revela, sobretudo, um domínio da experiência exaustiva sobre o léxico estático, de que se devem tomar por empréstimo um mínimo de peças para um máximo de jogo.
E, então, como se veste o poeta em sua nova performance?
Aqui são fios de lã, no recesso doméstico, em atrito com os “pneus no asfalto”. São galos “prenunciando genocídios”, onde as vidas íntimas se evaporam. É a noite “que chega dos pântanos/e solta sua matilha de dentes amolados”. São “torres que desabam”, “destroços do apocalipse”. “Uma aranha tece a teia/ nos galhos ressequidos/ de uma roseira morta”. Em “Reflexão Urbana”, “Homens e robôs manipulam algarismos/ e fórmulas matemáticas/ para um mundo devastado pela fome”.
Ao lado dessa temática atualíssima, contudo, ambientada agora nos centauros mecânicos, essas incríveis entidades alegóricas que se tomam de amor pelos oráculos da cibernética, não deixa o poeta de quedar-se, elegíaco, diante da bela da tarde, ou fechar-se na câmara do tempo circular, transmentalizando o inescrito de sua provisoriedade acadêmica, oposta ao sensu cosmicu. Mas, não será por isso, nem por aquilo que o Esteves vai ficar sozinho ou que as águas do Tejo se possam deslembrar de Camões ou das serestas coimbrãs. Convém frisar, ainda, que Francisco Carvalho não abre mão, neste livro, nem da metalinguagem nem do metapoema, tudo conforme as acepções conferidas a este verbete pelo mestre Batista de Lima, ao discorrer sobre a poesia de Mário Quintana, (Batista de Lima, Caderno Cultura, Diário do Nordeste, 23/02/03).
Concluindo: trata-se de um livro denso, com muitos poros semânticos a recenderem visões apavorantes, por um lado, como na “Ode ao Episódio”, e, por outro lado, a nos chamarem a atenção para o João Pimenta, carregador de anjos, entre tantos outros achados raríssimos do mesmo cotidiano, a exemplo das “formigas elétricas”, dos “caninos podres das espigas”, do balir da flauta...Valeu, Poeta!
Nota: as obras completas de Francisco Carvalho foram publicadas anos após esta resenha. E até hoje, graças a Deus, o poeta continua a produzir o melhor que pode, e sempre podendo mais.