Amigos do Fingidor

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Divina Comédia humana 6/6

A Rosa do Paraíso, por Doré,
Canto XXXI do Paraíso.
Zemaria Pinto

XI

A recepção à Comédia começa com Boccaccio e se estende pelos últimos sete séculos, encontrando, entre a crítica contemporânea, uma unanimidade que quase nega o axioma de Nelson Rodrigues, não fosse por Octavio Paz – para quem a leitura de Dante só é possível dentro da perspectiva histórica da época – e Harold Bloom – que, com sua mania clerical de cânones, elege Shakespeare como o centro do seu, relegando o florentino a um mero segundo lugar. Concorre para isso o fato de Dante haver “fundado” a língua italiana, a partir dos inúmeros dialetos que forjavam o que ele mesmo chamou, em bom latim, de “vulgari eloquentia”. Foi a partir de seu poema que a língua italiana se estabeleceu. Se a Comédia fosse escrita em latim, o que muitos por muito tempo lamentaram que não o fosse, não teria hoje a importância e o reconhecimento que tem, pelo fato de ser escrita em uma língua viva, que o fluente lê sem qualquer dificuldade.  

Em um ensaio de 1929, T. S. Eliot escreve que “o estilo de Dante tem uma lucidez peculiar – uma lucidez poética, diversa da lucidez intelectual. O pensamento pode ser obscuro, mas a palavra é lúcida, ou melhor, translúcida.” Mais adiante, ele arremata: “A experiência de um poema é, ao mesmo tempo, a de um momento e de uma vida inteira (...) Superamos e sobrevivemos à maior parte dos poemas, como superamos e sobrevivemos à maioria das paixões. Dante é um daqueles com os quais apenas esperamos crescer até o fim de nossa vida.” 

Para Ezra Pound, Dante é um inventor e um mestre. Pound entende que a maior qualidade da Comédia é sua “materialidade”, isto é, esqueça o leitor todo o aparato crítico – o contato físico com a obra é o bastante. Ele mesmo, Pound, em vez de tecer altas elucubrações em torna da obra, limitava-se a citá-la no original – era a melhor crítica que julgava poder fazer. 

Jorge Luis Borges é categórico: “a Divina Comédia foi o melhor livro que os homens escreveram”. Ou: “o conhecimento direto da Divina Comédia é a felicidade mais inesgotável que a literatura pode nos dar.” 

Para Philippe Sollers, a universalidade e a intemporalidade de Dante “presta-se a tudo o que se quiser: a universidade, o academicismo e o modernismo podem cada qual reivindicá-lo sem grandes riscos.” 

Com sua habitual e antidantesca tendência ao hermético, Haroldo de Campos escreve que o “olho de Dante é o de um artista óptico, cinético, apto a divisar a luz na luz, o íris no íris, o fogo no fulgor: espécies luminosas, ‘distinções em claridade’ (...) E o mistério, o enigma teológico, se resolve em epifania, faneroscopia, escrita paradisíaca: luz.” Entendeu?  

O compatrício Ítalo Calvino afirma que a “genialidade” de Dante consiste em “extrair da língua todas as suas possibilidades sonoras e emocionais, tudo o que ela pode evocar de sensações; em capturar no verso o mundo em toda a variedade de seus níveis, formas e atributos; em transmitir a ideia de um mundo organizado num sistema, numa ordem, numa hierarquia em que tudo encontra seu lugar (...) Dante empresta solidez corpórea até mesmo à mais abstrata especulação.”      

Comentando esses escritores-críticos, Leyla Perrone-Moisés diz que a Comédia “não é lida como um texto religioso, mas como um texto no sentido moderno da palavra, como um tecido verbal revelador de um formidável ‘ofício’ e dotado de uma capacidade infinita de produção de novos sentidos. A linguagem não é mais encarada como um meio, mas como um fim. Dante não é, para eles, um mestre de teologia e de moral, mas um mestre de linguagem, e é como tal que ele é fonte de prazer e de conhecimento permanentes.” 

XII


A ficção de Dante deve ser lida, meu caro jovem leitor – por um momento me esqueci de ti –, como um poema inigualável, com todas aquelas características de um grande poema: música intensa, imagens sedutoras e a harmonia das palavras – em sons e imagens – dançando enlouquecida em nossas mentes. Esquece a história, esquece a moral, esquece o caráter místico – e vive o poema. Voltemos àquele ponto, muitos parágrafos atrás, onde dizíamos que Dante faz a viagem do Homem em busca de si mesmo, de sua harmonia individual, tendo por fim a harmonia coletiva. Depois de viajarmos, um tanto apressados, pelos três reinos do além-Dante, podemos acrescentar que essa viagem é uma representação metafórica da elevação espiritual do ser humano. Esta, entretanto, só se realizará plenamente em uma estrutura social onde haja paz, justiça e fraternidade, trindade que Dante resume na palavra Amor, que move o sol e as outras estrelas. Daí se concluir – uma conclusão em tantas possíveis – que A Divina Comédia, muito além da poética elevação espiritual do homem, visa também incutir no indivíduo-leitor a consciência de uma prosaica necessidade de aperfeiçoamento das instituições políticas e sociais. Essa a grande realização de Dante: unir numa obra para sempre única todo o conhecimento e todo sonho e desejo possíveis e impossíveis.  

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Bibliografia


  1. ALIGHIERI, Dante. A Divina ComédiaInferno. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
  2. ________________. A Divina ComédiaParaíso. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
  3. ________________. A Divina ComédiaPurgatório. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
  4. ________________. A Divina Comédia. Trad. Hernani Donato. São Paulo: Abril, 1979.
  5. ________________. A Divina Comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005.
  6. ________________. Vida Nova. Trad. Paulo M. Oliveira e Blasio Demétrio. In Os Pensadores VIII. São Paulo: Abril, 1973.
  7. BERNARDINI, Aurora F. e outros. Dante Alighieri. São Paulo: EntreClássicos 1, Duetto, 2006.
  8. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
  9. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas – Vol III. São Paulo: Globo, 1999.
  10. D`ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental. São Paulo: Ática, 1990.
  11. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.