João Bosco Botelho
Alguns instrumentos cirúrgicos que foram utilizados pelos médicos gregos são semelhantes aos de hoje: as sondas, os bisturis, os trépanos, as pinças e os afastadores. A concepção teórica dos instrumentos é a mesma, mudaram os materiais.
As observações do corpo humano, desvendando e materializando o escondido atrás da pele, foram responsáveis por descrições minuciosas e maravilhosas da anatomia, como as feitas por Herófilo, contemporâneo de Hipócrates, que distinguiu o cérebro do cerebelo, identificou as membranas meninges e o líquido cérebro-raquidiano, as funções motoras e sensitivas dos nervos periféricos e o sistema linfático; todos seriam “redescobertos” nos séculos 17 e 18.
Mesmo com o grande avanço para entender a saúde e a doença como partes do conjunto do corpo, com textos claramente dirigidos para retirar dos deuses e deusas os destinos da saúde e da doença, não ocorreu ruptura violenta com as idéias e crenças religiosas que conviviam com as mentalidades da época. É possível que essa conciliação cautelosa de Hipócrates e de outros médicos da escola de Cós, reconhecendo a materialidade das doenças sem atacar o panteão taumaturgo tenha contribuído para que mantivesse o prestígio social e evitasse o mesmo destino de Sócrates.
Assim, foi mantido o templo dedicado a Asclépio, anexo à Escola de Medicina de Cós. Segundo a mitologia grega, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa Coronis. Apolo matou Coronis e entregou o filho aos cuidados do centauro Quíron, famoso médico, que instruiu Asclépio na arte de curar e na delicadeza dos movimentos das mãos do cirurgião. Finalmente, Asclépio consolidou-se nas mentalidades como o principal deus protetor da Medicina e dos médicos. Em sua homenagem foram construídos muitos templos. O mais famoso deles é o de Epidauro, na ilha de Cós, cuja reconstrução arqueológica mostrou salões, vestiários e alojamentos para médicos e doentes, salas de banho e teatro para a recreação.
É certo que a figura do médico, como especialista social, dependente das crenças e idéias religiosas tenha chegado aos gregos com poucas mudanças, oriundas de tempos muito anteriores. Quando a Escola de Cós já estava no seu apogeu e Hipócrates já era reconhecidamente uma autoridade como médico, havia harmoniosa convivência entre a nova Medicina, proposta por meio da teoria dos Quatro Humores e as práticas médico-míticas exercidas pelos sacerdotes-médicos dos templos de Asclépio. Como inequívoca comprovação desse fato, destacam-se as várias estelas de mármores e argila, encontradas no templo de Epidauro, com inscrições de agradecimento ao deus Asclépio pela cura obtida.
É pertinente, mais uma vez, assinalar que o conjunto teórico atribuído a Hipócrates e aos seus discípulos, mesmo obtendo importantes avanços em comparação às práticas médicas das cidades-reinos do Egito e da Mesopotâmia, não provocou explicitamente ruptura com as crenças e idéias religiosas do panteão grego. Essa situação de convivência harmônica entre médicos, que provocaram o início do processo para materializar a saúde e a doença, e os devotos de Asclépio, o principal deus voltado à proteção da Medicina, despertou interesse coletivo e recebeu críticas ácidas, como as atribuídas a Aristófanes, o irônico comediógrafo de Atenas, que encenava peças ridicularizando o médico-sacerdote de pouco escrúpulo.
A idéia cristalizada que perdura no pensamento ocidental de como o médico deve agir, falar, vestir e trabalhar, inclusive a relação da Medicina com as idéias e crenças religiosas, é também uma das consequências da assimilação, no Ocidente, do Tratado Ético hipocrático. Reforça este raciocínio o primeiro parágrafo de A Lei inserido no Tratado Ético: “A Medicina é de todas as profissões a mais nobre...“. Essa distinção da Medicina das outras profissões foi adotada por Galeno, no século II, em Roma, considerado o sucessor de Hipócrates, na sua afirmação: “Todo médico deverá ser filósofo”.
Os filósofos eram considerados como possuidores de saberes superiores em relação aos outros homens. Esse assunto é claramente expresso no “Fédon”, de Platão, quando trata do “Mito do Destino das Almas”, no diálogo entre Sócrates e Símias:
“E, entre estes, aqueles que pela filosofia se purificarem de modo suficiente sem os seus corpos, durante o resto do tempo, e a residir em lugares ainda mais belos que os demais”.
O juramento original contido no Tratado Ético de Hipócrates começa assim: “Eu juro por Apolo, médico, por Asclépio, por Hígia e Panacéia, por todos os deuses e todas as deusas...”, mantendo evidente relação com as idéias e crenças religiosas daquele tempo. Essa posição, de modo espetacular, atravessou os séculos e foi mantida, de diferentes formas, até hoje.
A análise do conteúdo ético do juramento de Hipócrates constitui claríssima conduta com o objetivo de evitar a prática médica prejudicial aos doentes, de certo modo semelhante ao código de Hammurabi, porém sem a agressividade punitiva babilônica.