Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de abril de 2024

A poesia é necessária?

 

Os doentes

Augusto dos Anjos (1884-1914)

 

I

 

Como uma cascavel que se enroscava,

A cidade dos lázaros dormia...

Somente, na metrópole vazia,

Minha cabeça autônoma pensava!

 

Mordia-me a obsessão má de que havia,

Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,

Um fígado doente que sangrava

E uma garganta de órfã que gemia!

 

Tentava compreender com as conceptivas

Funções do encéfalo as substâncias vivas

Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

 

E via em mim, coberto de desgraças,

O resultado de bilhões de raças

Que há muitos anos desapareceram!

 

II

 

Minha angústia feroz não tinha nome.

Ali, na urbe natal do Desconsolo,

Eu tinha de comer o último bolo

Que Deus fazia para a minha fome!

 

Convulso, o vento entoava um pseudo-salmo,

Contrastando, entretanto, com o ar convulso

A noite funcionava como um pulso

Fisiologicamente muito calmo.

 

Caíam sobre os meus centros nervosos,

Como os pingos ardentes de cem velas,

O uivo desenganado das cadelas

E o gemido dos homens bexigosos.

 

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!

Mas, em cima de um túmulo, um cachorro

Pedia para mim água e socorro

À comiseração dos transeuntes!

 

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro

Reboava. Além jazia aos pés da serra,

Criando as superstições de minha terra,

A queixada específica de um burro!

 

Gordo adubo da agreste urtiga brava,

Benigna água, magnânima e magnífica,

Em cuja álgida unção, branda e beatífica,

A Paraíba indígena se lava!

 

A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo

E a câmara odorífera dos sumos

Absorvem diariamente o ubérrimo húmus

Que Deus espalha à beira do teu tálamo!

 

Nos de teu curso desobstruídos trilhos,

Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,

O hidrogênio e o oxigênio que tu choras

Pelo falecimento dos teus filhos!

 

Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,

A incógnita psiquê das massas mortas

Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,

Na esteira igualitária do teu leito!

 

O vento continuava sem cansaço

E enchia com a fluidez do eólico hissope

Em seu fantasmagórico galope

A abundância geométrica do espaço.

 

Meu ser estacionava, olhando os campos

Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos

Reduziam os Céus sérios e rudos

A uma epiderme cheia de sarampos!

 

III

 

Dormia embaixo, com a promíscua véstia

No embotamento crasso dos sentidos,

A comunhão dos homens reunidos

Pela camaradagem da moléstia.

 

Feriam-me o nervo óptico e a retina

Aponevroses e tendões de Aquiles,

Restos repugnantíssimos de bílis,

Vômitos impregnados de ptialina.

 

Da degenerescência étnica do Ária

Se escapava, entre estrépitos e estouros,

Reboando pelos séculos vindouros,

O ruído de uma tosse hereditária.

 

Oh! Desespero das pessoas tísicas,

Adivinhando o frio que há nas lousas,

Maior felicidade é a destas cousas

Submetidas apenas às leis físicas!

 

Estas, por mais que os cardos grandes rocem

Seus corpos brutos, dores não recebem;

Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,

Estas não cospem sangue, estas não tossem!

 

Descender dos macacos catarríneos,

Cair doente e passar a vida inteira

Com a boca junto de uma escarradeira,

Pintando o chão de coágulos sanguíneos!

 

Sentir, adstritos ao quimiotropismo

Erótico, os micróbios assanhados

Passearem, como inúmeros soldados,

Nas cancerosidades do organismo!

 

Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita sangue pela boca!

 

Expulsar, aos bocados, a existência

Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro

O retrato da própria consciência!

 

Querer dizer a angústia de que é pábulo,

E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,

Cortando as raízes do último vocábulo!

 

Não haver terapêutica que arranque

Tanta opressão como se, com efeito,

Lhe houvessem sacudido sobre o peito

A máquina pneumática de Bianchi!

 

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba

A erguer, como um cronômetro gigante,

Marcando a transição emocionante

Do lar materno para a catacumba!

 

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,

Nos ardores danados da febre hética,

Consagrando vossa última fonética

A uma recitação de misereres.

 

Antes levardes ainda uma quimera

Para a garganta onívora das lajes

Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes

Contra a dissolução que vos espera!

 

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,

Consoante a minha concepção vesânica,

É a alfândega, onde toda a vida orgânica

Há de pagar um dia o último imposto!

 

IV

 

Começara a chover. Pelas algentes

Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,

Encharcava os buracos das feridas,

Alagava a medula dos Doentes!

 

Do fundo do meu trágico destino,

Onde a Resignação os braços cruza,

Saía, com o vexame de uma fusa,

A mágoa gaguejada de um cretino.

 

Aquele ruído obscuro de gagueira

Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,

Vinha da vibração bruta da corda

Mais recôndita da alma brasileira!

 

Aturdia-me a tétrica miragem

De que, naquele instante, no Amazonas,

Fedia, entregue a vísceras glutonas,

A carcaça esquecida de um selvagem.

 

A civilização entrou na taba

Em que ele estava. O gênio de Colombo

Manchou de opróbrios a alma do mazombo,

Cuspiu na cova do morubixaba!

 

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,

Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,

Esse achincalhamento do progresso

Que o anulava na crítica da História!

 

Como quem analisa um apostema,

De repente, acordando na desgraça,

Viu toda a podridão de sua raça...

    Na tumba de Iracema!...

 

Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,

Exercia sobre ele ação funesta

Desde o desbravamento da floresta

À ultrajante invenção do telefone.

 

E sentia-se pior que um vagabundo

Microcéfalo vil que a espécie encerra,

Desterrado na sua própria terra,

Diminuído na crônica do mundo!

 

A hereditariedade dessa pecha

Seguiria seus filhos. Dora em diante

Seu povo tombaria agonizante

Na luta da espingarda contra a flecha!

 

Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,

Uma desesperada ânsia improfícua

De estrangular aquela gente iníqua

Que progredia sobre os seus despojos!

 

Mas, diante a xantocróide raça loura,

Jazem, caladas, todas as inúbias,

E agora, sem difíceis nuanças dúbias,

Com uma clarividência aterradora,

 

Em vez da prisca tribo e indiana tropa

A gente deste século, espantada,

Vê somente a caveira abandonada

De uma raça esmagada pela Europa!

 

V

 

Era a hora em que arrastados pelos ventos,

Os fantasmas hamléticos dispersos

Atiram na consciência dos perversos

A sombra dos remorsos famulentos.

 

As mães sem coração rogavam pragas

Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,

Batia com o pentágono dos dedos

Sobre um fundo hipotético de chagas!

 

Diabólica dinâmica daninha

Oprimia meu cérebro indefeso

Com a força onerosíssima de um peso

Que eu não sabia mesmo de onde vinha.

 

Perfurava-me o peito a áspera pua

Do desânimo negro que me prostra,

E quase a todos os momentos mostra

Minha caveira aos bêbedos da rua.

 

Hereditariedades politípicas

Punham na minha boca putrescível

Interjeições de abracadabra horrível

E os verbos indignados das Filípicas.

 

Todos os vocativos dos blasfemos,

No horror daquela noite monstruosa,

Maldiziam, com voz estentorosa,

A peçonha inicial de onde nascemos.

 

Como que havia na ânsia de conforto

De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,

Uma necessidade de suicídio

E um desejo incoercível de ser morto!

 

Naquela angústia absurda e tragicômica

Eu chorava, rolando sobre o lixo,

Com a contorção neurótica de um bicho

Que ingeriu 30 gramas de nux-vomica.

 

E, como um homem doido que se enforca,

Tentava, na terráquea superfície,

Consubstanciar-me todo com a imundície,

Confundir-me com aquela coisa porca!

 

Vinha, às vezes, porém, o anelo instável

De, com o auxílio especial do osso masséter,

Mastigando homeomérias neutras de éter

Nutrir-me da matéria imponderável.

 

Anelava ficar um dia, em suma,

Menor que o anfióxus e inferior à tênia,

Reduzido à plastídula homogênea,

Sem diferenciação de espécie alguma.

 

Era (nem sei em síntese o que diga)

Um velhíssimo instinto atávico, era

A saudade inconsciente da monera

Que havia sido minha mãe antiga!

 

Com o horror tradicional da raiva corsa

Minha vontade era, perante a cova,

Arrancar do meu próprio corpo a prova

Da persistência trágica da força.

 

A pragmática má de humanos usos

Não compreende que a Morte que não dorme

É a absorção do movimento enorme

Na dispersão dos átomos difusos.

 

Não me incomoda esse último abandono.

Se a carne individual hoje apodrece,

Amanhã, como Cristo, reaparece

Na universalidade do carbono!

 

A vida vem do éter que se condensa,

Mas o que mais no Cosmos me entusiasma

É a esfera microscópica do plasma

Fazer a luz do cérebro que pensa.

 

Eu voltarei, cansado da árdua liça,

À substância inorgânica primeva,

De onde, por epigênese, veio Eva

E a stirpe radiolar chamada Actissa!

 

Quando eu for misturar-me com as violetas,

Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,

Reviverá, dando emoção à pedra,

Na acústica de todos os planetas!

 

(continua)