Amigos do Fingidor

quarta-feira, 3 de abril de 2024

(Os doentes - continuação) 

VI

 

À álgida agulha, agora, alva, a saraiva

Caindo, análoga era... Um cão agora

Punha a atra língua hidrófoba de fora

Em contrações miológicas de raiva.

 

Mas, para além, entre oscilantes chamas,

Acordavam os bairros da luxúria...

As prostitutas, doentes de hematúria,

    Se extenuavam nas camas.

 

Uma, ignóbil, derreada de cansaço,

Quase que escangalhada pelo vício,

Cheirava com prazer no sacrifício

A lepra má que lhe roía o braço!

 

E ensanguentava os dedos da mão nívea

Com o sentimento gasto e a emoção pobre,

Nessa alegria bárbara que cobre

Os saracoteamentos da lascívia...

 

De certo, a perversão de que era presa

O sensorium daquela prostituta

Vinha da adaptação quase absoluta

À ambiência microbiana da baixeza!

 

Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,

Não tínheis ainda essa erupção cutânea,

Nem tínheis, vítima última da insânia,

Duas mamárias glândulas estéreis!

 

Ah! Certamente, não havia ainda

Rompido, com violência, no horizonte,

O sol malvado que secou a fonte

De vossa castidade agora finda!

 

Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,

Estendestes ao mundo, até que, à-toa,

Fostes vender a virginal coroa

Ao primeiro bandido do arrabalde.

 

E estais velha! – De vós o mundo é farto,

E hoje, que a sociedade vos enxota,

Somente as bruxas negras da derrota

Frequentam diariamente vosso quarto!

 

Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes

Longe da mancebia dos alcouces,

Nas quietudes nirvânicas mais doces,

O noivado que em vida não tivestes!

 

VII

 

Quase todos os lutos conjugados,

Como uma associação de monopólio,

Lançavam pinceladas pretas de óleo

Na arquitetura arcaica dos sobrados.

 

Dentro da noite funda um braço humano

Parecia cavar ao longe um poço

Para enterrar minha ilusão de moço,

Como a boca de um poço artesiano!

 

Atabalhoadamente pelos becos,

Eu pensava nas coisas que perecem,

Desde as musculaturas que apodrecem

À ruína vegetal dos lírios secos.

 

Cismava no propósito funéreo

Da mosca debochada que fareja

O defunto, no chão frio da igreja

E vai depois levá-lo ao cemitério!

 

E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,

Sentia, na craniana caixa tosca,

A racionalidade dessa mosca,

A consciência terrível desse inseto!

 

Regougando, porém, argots e aljâmias,

Como quem nada encontra que o perturbe,

A energúmena grei dos ébrios da urbe

Festejava seu sábado de infâmias.

 

A estática fatal das paixões cegas,

Rugindo fundamente nos neurônios,

Puxava aquele povo de demônios

Para a promiscuidade das adegas.

 

E a ébria turba que escaras sujas masca,

À falta idiossincrásica de escrúpulo,

Absorvia com gáudio absinto, lúpulo

E outras substâncias tóxicas da tasca.

 

O ar ambiente cheirava a ácido acético,

Mas, de repente, com o ar de quem empesta,

Apareceu, escorraçando a festa,

A mandíbula inchada de um morfético!

 

Saliências polimórficas vermelhas,

Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,

Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo

Tamanho aberratório das orelhas.

 

O fácies do morfético assombrava!

– Aquilo era uma negra eucaristia,

Onde minh’alma inteira surpreendia

A Humanidade que se lamentava!

 

Era todo o meu sonho, assim, inchado,

Já podre, que a morfeia miserável

Tornava às impressões táteis, palpável,

Como se fosse um corpo organizado!

 

VIII

 

Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,

E o cemitério, em que eu entrei adrede,

Dá-me a impressão de um boulevard que fede,

Pela degradação dos que o povoam.

 

Quanta gente, roubada à humana coorte,

Morre de fome, sobre a palha espessa,

Sem ter, como Ugolino, uma cabeça

Que possa mastigar na hora da morte;

 

E nua, após baixar ao caos budista,

Vem para aqui, nos braços de um canalha,

Porque o madapolão para a mortalha

Custa 1$200 ao lojista!

 

Que resta das cabeças que pensaram?!

E afundado nos sonhos mais nefastos,

Ao pegar num milhão de miolos gastos,

Todos os meus cabelos se arrepiaram.

 

Os evolucionismos benfeitores

Que por entre os cadáveres caminham,

Iguais a irmãs de caridade, vinham

Com a podridão dar de comer às flores!

 

Os defuntos então me ofereciam

Com as articulações das mãos inermes,

Num prato de hospital, cheio de vermes,

Todos os animais que apodreciam!

 

É possível que o estômago se afoite

(Muito embora contra isto a alma se irrite)

A cevar o antropófago apetite,

Comendo carne humana, à meia-noite!

 

Com uma ilimitadíssima tristeza,

Na impaciência do estômago vazio,

Eu devorava aquele bolo frio

Feito das podridões da Natureza!

 

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,

Vendo passar com as túnicas obscuras,

As escaveiradíssimas figuras

Das negras desonradas pelos brancos;

 

Pisando, como quem salta, entre fardos,

Nos corpos nus das moças hotentotes

Entregues, ao clarão de alguns archotes,

À sodomia indigna dos moscardos;

 

Eu maldizia o deus de mãos nefandas

Que, transgredindo a igualitária regra

Da Natureza, atira a raça negra

Ao contubérnio diário das quitandas!

 

Na evolução de minha dor grotesca,

Eu mendigava aos vermes insubmissos

Como indenização dos meus serviços,

O benefício de uma cova fresca.

 

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,

Como o íncola do polo ártico, às vezes,

Absorve, após a noite de seis meses,

Os raios caloríficos da aurora.

 

Nunca mais as goteiras cairiam

Como propositais setas malvadas,

No frio matador das madrugadas,

Por sobre o coração dos que sofriam!

 

Do meu cérebro à absconsa tábua rasa

Vinha a luz restituir o antigo crédito,

Proporcionando-me o prazer inédito,

De quem possui um sol dentro de casa.

 

Era a volúpia fúnebre que os ossos

Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,

À apreensão fisiológica do faro

O odor cadaveroso dos destroços!

 

IX

 

O inventário do que eu já tinha sido

Espantava. Restavam só de Augusto

A forma de um mamífero vetusto

E a cerebralidade de um vencido!

 

O gênio procriador da espécie eterna

Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,

Uma sobrevivência de Sidarta,

Dentro da filogênese moderna;

 

E arrancara milhares de existências

Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,

Ia arrastando agora a alma infecunda

Na mais triste de todas as falências.

 

Um céu calamitoso de vingança

Desagregava, déspota e sem normas,

O adesionismo biôntico das formas

Multiplicadas pela lei da herança!

 

A ruína vinha horrenda e deletéria

Do subsolo infeliz, vinha de dentro

Da matéria em fusão que ainda há no centro,

Para alcançar depois a periféria!

 

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!

Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos

Tinham aspectos de edifícios mortos,

Decompondo-se desde os alicerces!

 

A doença era geral, tudo a extenuar-se

Estava. O Espaço abstrato que não morre

Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,

Parecia também desagregar-se!

 

Os pródromos de um tétano medonho

Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,

Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,

O começo magnífico de um sonho!

 

Entre as formas decrépitas do povo,

Já batiam por cima dos estragos

A sensação e os movimentos vagos

Da célula inicial de um Cosmos novo!

 

O letargo larvário da cidade

Crescia. Igual a um parto, numa furna,

Vinha da original treva noturna,

O vagido de uma outra Humanidade!

 

E eu, com os pés atolados no Nirvana,

Acompanhava, com um prazer secreto,

A gestação daquele grande feto,

Que vinha substituir a Espécie Humana!