Amigos do Fingidor

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Almanaqve Neolatino

Jorge Tufic


Quando à frente da Diretoria de Assuntos Culturais da FCA, em Manaus, coube a mim saudar a “III Écloga”, de Virgilio, na tradução de um veterano professor do Colégio Estadual do Amazonas, Agenor Ferreira Lima. Numa boa hora como esta – dissera então – em que o Governo inglês cogita seriamente de restabelecer o latim no curso secundário, suprimindo-lhe as declinações e tendo por objetivo “despertar o interesse e a atenção dos estudantes através do estudo da semântica e da etimologia”, a AFL decide entregar ao público o resultado do estudo que fez sobre a III écloga de Públio Virgílio Marão (um desafio de cantadores há 2.000 anos passados).

Sabe-se hoje que a influência do latim não se consolida apenas nos idiomas que a receberam por via direta, devendo-se lembrar a conquista da Bretânia pelos romanos, que deixaram ali suas raízes e o empenho vitorioso na reintegração da Inglaterra no seu passado europeu e cristão, conforme esclarece Francisco Barbosa de Rezende. Ora, bem: se este curioso fenômeno acontecera, como ainda acontece, nos países de fala anglo-saxônica, como então se deverá estimar o valor do latim no contexto do português, do espanhol, do italiano e outras línguas essencialmente ramificadas?

Resposta ampla e concreta a essa pergunta nós vamos encontrar no “Almanaqve Neolatino”, do poeta Luciano Maia. “A inclusão de Luciano Maia num espaço que não é tradicionalmente o seu, não o afastou, felizmente, do processo criativo próprio do seu continente – que é a Poesia –, “adverte, numa das abas do volume, Napoleão Nunes Maia Filho. Isto é patente: tanto a linguagem quanto a escolha dos textos, com ênfase aos de conteúdo poético, fazem deste livro, a par das curiosidades ínsitas ao calendário que fixa e determina o enriquecimento e as transformações da História, um raro objeto de leitura obrigatória.

Divide-se ele em três partes, contendo, ao final, um apêndice onde foram transcritos textos de diversos autores neolatinos, dentre estes a clássica parábola do filho pródigo, Sancho I, Federico Garcia Lorca, Nicolás Guillén, Pablo Neruda, Arnaut Daniel e Salvador Espriu. Numa correspondência harmoniosa aos dados contidos nos capítulos medulares da obra, aqui o leitor pode familiarizar-se com o romeno, o italiano, o sardo, o judeu-espanhol, o crioulo de Macau, o galego-português, o catalão, o espanhol, o francês, o provençal antigo, o galego propriamente dito e o romanche. O “Almanaqve Neolatino” é de 1990. Com “As tetas da Loba”, de 1996, Luciano Maia conclui seu périplo em torno dessa temática estreitamente ligada aos constantes desafios do faber, e aos penosos trabalhos de Hércules.

Cinco anos após a edição do “Almanaqve”, já muito mais experimentado na arte de cultivar a beleza destes falares do Lácio, volta o poeta à matéria de sua paixão e nos explica, à guisa de prefácio ao “As Tetas da Loba”: “Admirador inconteste das Línguas românicas, em suas mais variadas feições, sou um entusiasta da latinidade também no âmbito da linguística: para mim, qualquer idioma ou dialeto neolatino é mais sonoro, mais harmonioso e poético que qualquer outra língua do mundo”. E mais adiante: “Delicioso é escutar, em romeno, a palavra bodega, com o mesmo significado que ela tem no interior do Nordeste do Brasil. Ou ouvir em idioma corso, num restaurante parisiense: “A mamma parla u corsu in casa lindu e puru” etc.

Do livro acima referido, para abonar o arraigado sentimento do autor pela histórica loba e seus filhotes, transcrevo a seguir as estrofes sob o título “Salve, Nicolás!”:

As tetas da Loba se africanizam
e hoje alimentam sopros pixinguinhas
e sopros anônimos e em Cuba
as tetas da loba amamentam Pablo Milanés
y Silvio Rodríguez y
um canto en un país libre
neolatino, mestizo, caribeño y hermoso.
E desde que José Martí adoçou os caules
cañaverales, Guillén entoa
su songoro-sosongo...

As línguas românicas que continuam hodiernamente o latim vulgar, segundo Luciano Maia, podem ser enumeradas da seguinte maneira: Francês (atestado desde o século IX); provençal (atestado desde o século X); italiano (atestado desde o século X); espanhol (atestado desde o século X); sardo (atestado desde o século XI); português (atestado desde o século XII); galego (atestado desde o século XII) reto-românico (atestado desde o século XII); catalão (atestado desde o século XII) romeno (atestado desde o século XVI); e o dalmático (atestado desde o século XIV).

Obediente à metodologia científica que preside à textura do assunto “almanaqve”, muito mais raro entre nós, o autor desta pesquisa oferece, em seguida às duas primeiras partes, rigorosamente didáticas, uma terceira parte movida ao sabor de curiosidades e pormenores (coloquialidades e duplo sentido entre os vários idiomas enfocados). E brotam as dicas, o bem humorado letreiro, o gesto que denuncia a presença de um pedestre “chifrudo”, a sonoridade e o significado das palavras, na Terra dos Dácios.

E o que mais dizer sobre o “Almanaqve Neolatino”, de Luciano Maia? Sim, que o v de “almanaqve” era u, nos tempos de Dona Briolanja...