Jorge Tufic
Nada me comove tanto, quando posso imaginar que sou capaz de dizer alguma coisa sobre o povo árabe, de modo particularíssimo sobre a literatura libanesa, e de modo ainda mais honroso para mim sobre o grande filósofo Gibran Khalil Gibran (as iniciais kh são guturais, daí que esta é a grafia correta), com certeza o maior de todos os escritores desse país, em todos os tempos. Tenho-o sempre à cabeceira, e nunca me canso de reler passagens de O Profeta (I Nabi), que quando criança eu li, pela primeira vez, numa edição bilíngue, adquirida por meu tio José, em Paris. Ouvira dele, inclusive, que Gibran teria parentesco com Awayjen, família de minha mãe, motivo pelo qual ela deveria ser prima do ilustre sábio de Bsharré. A meu pai tal descoberta parecia um engano, visto que os Awayjen são de Batroun e os pais da Águia do Líbano são de Bsharré. Mediara a questiúncula o Miguel da Leyla, guarda-livros da firma Atala & Millet, em Sena Madureira, no estado do Acre: – Ora, Taufik, – tonitroou – os antepassados de Dona Faride eram pescadores, e o mar não tem fronteiras.
Conferi este episódio com meu irmão José, memorialista de nossa família, aduzindo-me ele o fato de que Assad (Feliz), nosso tio por parte de mãe, teria sido amigo pessoal de Gibran, em Nova Iorque, aonde fora se estabelecer, na década de 20, primeiro como armador e tempos depois como escafandrista. Todas as provas dessa história aparentemente absurda estivera fechada no baú de tia Lulu, que se casara, já idosa, com meu tio José. Cartas, fotografias, sobretudo correspondência com amigos que ficaram na Europa, de tudo o baú guardava, sem falar nos cupins devoradores, enfim saciados. Remexi nesse passado vencido pela tarefa de Hércules que me impôs o ensaísta, poeta e historiador Gaitano Antonaccio, enviando-me, para a respectiva leitura e prefácio, seu novo livro de pesquisa sob o título Gibran Kahlil Gibran, o Apóstolo Revolucionário.
Desloquei-me, nesse embalo, para o velho arquivo de que sempre disponho, reuni uma breve bibliografia de e sobre Gibran, mas precioso mesmo foi o depoimento de meu irmão Jarjura, apelido de família, tendo descido às lagrimas ao recordar uma de suas conversas com a nossa querida genitora, oportunidade em que surgiam as primeiras traduções d’O Profeta, em língua portuguesa. Lembrava-se ela, sim, desse livro, comentado por sua irmã Lulu, a única realmente alfabetizada das três irmãs. E Lulu afirmava, batendo no peito: – lá aine! Réda men dâmna! (– Luz de meus olhos! Este é do nosso sangue!) A Mansour Challita, quando esteve em Manaus, não hesitei em perguntar sobre estes possíveis vínculos familiares entre casas de Bsharré e casas de Batroun. A resposta do mestre, contudo, foi tão surpreendente quanto seria uma resposta favorável à hipótese de haver parentesco. Disse-me Challita que todos os libaneses são primos, em diversos graus de sangue, amizade ou negócios. Mandou, entretanto, à nossa doce Faride, as saudações da Montanha.
Levado, afinal, à casa de alguns parentes de Nami Jafet, pude então, agora em São Paulo, ficar mais próximo da verdade. O parentesco de minha mãe com Gibran não vinha do ramo Awayjen, mas sim do Hibrahim, como também se assinava e como vejo constar de sua certidão de nascimento. Fez-me ver ainda, um dos descendentes do notável industrial paulistano, que o pai de Gibran, pela sua instabilidade emocional, terá suprimido nomes da família, ao seu bel prazer.
Coube, portanto, a um quando nada pretenso consanguíneo de Gibran Khalil Gibran, a honra maior de assinar estas linhas sobre o competente ensaio de Gaitano Antonaccio, no qual ele celebra o magnífico Poeta do Nascente e do Poente através de um sem-número de facies que irão, decerto, ajudar os leitores a ver outros aspectos da obra desse filósofo, com ênfase das vertentes que alimentaram toda a sua admirável produção literária. Ressalta, ainda, o autor, neste livro exemplar, aspectos até hoje pouco estudados da vida e obra de Gibran, convindo assinalar a feição globalizante do ensaio, a linguagem utilizada, enfim, o método ou a metodologia (ou anti) capaz de torná-lo numa síntese cuidadosamente elaborada, de fazer inveja a qualquer mestrando de letras, indo, talvez, além, quem sabe à plenitude do doutorado. A inspiração poética de Gibran Kahlil Gibran, o Apóstolo Revolucionário, como não poderia deixar de ser, emana de fontes primárias que vêm desde as Mil e Uma Noites até onde começa o renascimento das letras árabes, mas cujas sutilezas de imaginação ampliam sobremodo o núcleo sêmico das palavras, tornam blocos verbais quase que ou totalmente restritos ao idioma em que foram concebidos. Ou seja, virtualmente intraduzíveis. Como neste fragmento sufi: Corro atrás dos sopros do zéfiro para me distrair. Mas meu coração só aspira ao rosto Daquele que deu seu perfume aos ventos. Deste centro iluminado terá saído o embrião do apóstolo Gibran Khalil Gibran, o motivo que sabe das esquivâncias com que tentara se proteger contra as loucuras do mundo. O místico, também, se deflagra a partir dessa concentração umbilical da língua materna, sempre embebida na paisagem e no amor, na fantasia e no mais sincero ímpeto do homem sangrado, ou sagrado, pelo seu próprio destino.
Ao ensaísta, aqui, a obra ou o apostolo de Gibran, são mais importantes do que a sua biografia. Isto é saber. E outra maneira de explicar essa postura eu não acho, senão que há, entre ambos, pontos bastante flexíveis de harmoniosa identidade. Faz-me lembrar uma pessoa do círculo extra-madrugadense que houve por bem escolher, para tema de uma crônica, nada mais nada menos do que a Fernando Pessoa. Em tempo, detalhe: tratava-se, no caso, de um autor sem assunto, ou simplesmente de um cronista sem a perspectiva do fotógrafo. Para não melindrá-lo eu lhe disse, então, que a escolha é livre; só que lhe restava ou caberia, simplesmente, acertar o nível de sua crônica no mínimo que fosse do outro, em matéria de poesia.
Muito ao contrário dos buscadores de assunto para escrever, em Gaitano Antonaccio os temas é que se encarregam de fluir, e fluem com generosidade. Uma vez mais este escritor amazonense nos causa surpresa com a magnitude de sua prosa, dando-nos o verdadeiro perfil de quem soube fazer de sua vida uma busca constante de resposta aos enigmas existenciais que o levaram a sentir-se, para onde quer que se virasse, apenas como um ser exilado.