Zemaria Pinto
d) Enredo
As informações fornecidas na sequência podem parecer redundantes e supérfluas para o leitor já familiarizado com a obra, mas a observação da narrativa por esse prisma é importante, sim, para compreendermos melhor a arte do ficcionista.
Mar morto é dividido em três partes: “Iemanjá, dona dos mares e dos saveiros”; “O paquete voador”; “Mar Morto”. As três juntas têm 25 capítulos e estes têm subdivisões que marcam bem a passagem do tempo. Observemos, como exemplo, o capítulo “Acalanto de Rosa Palmeirão”, inserido na primeira parte do romance.
De início, o narrador nos fala da personagem como de alguém muito distante, que um dia andara por aquele cais, mas agora é mera lembrança:
Por onde andaria Rosa Palmeirão? Nascera naquele cais, fora pelo mundo, que não gostava de estar num só lugar. Ninguém sabe por onde ela anda. Onde ela estiver tem barulho. Porque ela traz navalha na saia, punhal no peito e porque tem um corpo bem feito.
Na subdivisão seguinte (separada da primeira por uma estrela ou um outro sinal, dependendo da edição que o leitor tenha em mãos), o narrador nos conta o retorno de Rosa Palmeirão, o reencontro com os velhos amigos do cais e a aproximação amorosa a Guma. Finalmente, no terceiro fragmento do capítulo, nos é narrado um momento da intimidade do novo casal, depois de passados alguns dias do que se contou no segundo fragmento:
Ela ficou olhando as águas do rio. Quis sorrir, ficou encabulada:
– Te juro que queria muito ter um filho, um filhinho para eu tomar conta e criar ele... Não ria não...
E não teve vergonha das lágrimas que rolaram sobre o punhal do peito, a navalha da saia.
O leitor observou que houve uma passagem de tempo significativa entre o primeiro e o terceiro fragmentos. Entretanto, não se justificaria a abertura de novos títulos-capítulos, uma vez que o que dá unidade ao capítulo citado é a figura personalíssima de Rosa Palmeirão.
Feita essa observação de ordem meramente formal, válida para quase todos os capítulos, analisemos cada uma das partes de Mar morto.
“Iemanjá, dona dos mares e dos saveiros” – composta por doze capítulos, conta a vida de Gumercindo, o Guma, protagonista do romance, desde seu nascimento até o encontro e o casamento com Lívia. Aliás, até cinco meses após o casamento, que é quando se dão os acontecimentos narrados nos capítulos iniciais – “Tempestade” e “Cancioneiro do Cais”.
Esses capítulos de abertura colocam o leitor, de chofre, no centro dos acontecimentos: em uma noite de tempestade em que a jovem esposa Lívia aguarda a chegada de seu marido, o mestre de saveiro Guma, sabe-se da morte de mestre Raimundo e seu filho Jacques. Esses capítulos nos informam também, pontuados por uma explícita sensualidade, sobre o destino inexorável daqueles personagens: o mar, que é seu sustento, é também sua desgraça.
O mar é amigo, o mar é doce amigo para todos aqueles que vivem nele. E Lívia sente o gosto de mar da carne de Guma. O “Valente” balança como uma rede.
Uma voz, que não se sabia ao certo de onde vinha, cantava:
É doce morrer no mar...
Os capítulos seguintes são narrados de forma mais ou menos linear, no modo história-puxa-história, como se observou na análise do foco narrativo. “Terras do Sem Fim”, o terceiro capítulo, é um bom exemplo dessa forma de narrar. Comecemos por explicar o título. Em 1931, o escritor gaúcho Raul Bopp publicou um livro chamado Cobra Norato, um poema ambientado na Amazônia, usando elementos do fabulário local. Terras do Sem-fim, no poema de Bopp, designa um lugar paradisíaco, lendário:
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim
Em Mar morto essa concepção não difere. Observe o que diz o narrador no final do capítulo, ao falar do destino inevitável dos náufragos:
O velho Francisco, que já não viaja, que fica no cais esperando a morte calma, livre das tempestades, das traições das ondas, sabe também que eles morrerão sem temor. Mas ao contrário de Dona Dulce, o velho Francisco tem inveja deles. Pois, contam que a viagem que os náufragos fazem com Iemanjá, para as Terras do Sem Fim, por sob os mares, mais veloz que os mais velozes navios, vale bem essa vida porca que eles levam no cais.
Observe, portanto, que para justificar a luta diária contra a morte, cria-se um clima fantástico, como a compensá-la: a companhia de Iemanjá, a entidade que reina sob as águas do mar, redenção aos que por ela dão a vida em sacrifício. Em 1943, sete anos após a publicação de Mar morto, Jorge Amado dá ao público um romance intitulado Terras do Sem Fim. Mas esta é uma outra história.
Ilustrações: capa da edição portuguesa de 1971; capa da edição húngara de 1961.