João Bosco Botelho
O marco
organizador da nova e fundamental etapa da Medicina na construção dos
procedimentos éticos atados à busca da materialidade da doença ocorreu na
escola de Cós, sob a liderança de Hipócrates. Apesar de saber-se, pelos
indicativos etimólogos e linguísticos, que das 72 obras contidas no “Corpo
Hipocrático”, conjunto de textos produzidos na ilha de Cós, somente 12 foram
reconhecidamente escritos por Hipócrates. Esse conjunto filosófico-médico
iniciou o processo da separação da Medicina-oficial das idéias e crenças
religiosas.
Nesse
contexto, num dos livros mais importantes, “Da Medicina Antiga”, escrito por
Políbio, genro de Hipócrates, está elaborada a teoria dos Quatro Humores, a
primeira estrutura laica edificada com o objetivo de explicar a saúde e as
doenças fora das idéias e crenças religiosas. O processo teórico explicita o
corpo humano constituído de quatro humores: sanguíneo, linfático, bilioso
amarelo e bilioso preto. A saúde seria consequente ao equilíbrio dos humores e
a doença apareceria após o desequilíbrio, isso é, a predominância de um sobre
os outros.
É importante
ressaltar que Políbio estratificou a teoria dos Quatro Humores atada à teoria
dos Quatro Elementos de Empédocles. Esse genial médico e filósofo
pré-socrático, tentando entender o mundo, fora das idéias e crenças religiosas,
explicou o mundo visível por meio da combinação de quatro elementos
fundamentais: água, terra, fogo e ar. Desse modo, para cada elemento de
Empédocles, existiria um humor.
Como
imediata resposta à genialidade de Políbio, duas transformações mudariam a
Medicina no Ocidente:
– As
terapêuticas ficaram mais livres da presença dos deuses e deusas curadoras e
firmaram propósito para retirar do corpo o excesso dos humores desequilibrados,
por meio das sangrias, suadouros, diarréias, vômitos e diurese.
– O primeiro
código de ética médica – juramento de Hipócrates – com admirável avanço,
indicou, simultaneamente, a necessidade de os bons resultados estarem unidos ao
respeito à dignidade do doente.
Por essa
razão, usando a linguagem do filósofo francês Gaston Bachelard, é possível
considerar esse acontecimento – a teoria dos Quatro Humores – como o primeiro
corte epistemológico da Medicina-oficial.
A historicidade
do Juramento de Hipócrates atada à teoria dos Quatro humores assinala pontos
marcantes: bons resultados, respeito à intimidade e autonomia do doente, competência,
sigilo e responsabilidade profissional.
Os quatro elementos
de Empédocles (água, terra, ar e fogo) e os Quatro Humores de Políbio (sangue,
fleuma, bílis preta e bílis amarela), da Escola de Cós, ambas do século 4 a.C.,
foram retomados por Galeno, um dos mais famosos médicos romanos, do século 1, para
edificar a teoria dos Temperamentos, inserindo componentes sociais nas doenças.
Assim, se
alguém estivesse com “um humor desequilibrado” e possuísse determinado
“temperamento dominante”, seria mais suscetível a certa doença. Hoje, parece tudo
sem sentido, mas é importante ressaltar que as teorias dos Quatro Humores e a
dos Quatro Temperamentos se situavam fora dos poderes divinos e continuaram
citadas até a primeira metade do século 19, quando o viajante alemão Von
Martius, esteve no Amazonas, em 1844, entendeu os índios: “de temperamentos
fleumáticos, com pouco sangue”, com o objetivo de explicar a equivocada leitura
do comportamento dos indígenas quando comparado ao dos europeus.