João
Bosco Botelho
O
século 17, também conhecido como o século da razão, trouxe o encontro entre as
liberdades pessoais e políticas com a ética médica. Esse complexo conjunto
sociopolítico aderiu às ideias de Newton, Descartes, Locke, Spinoza, Leibniz,
Corneille, Racine, La Rochefoucauld e Molière.
Como
nunca no passado, as práticas médicas aumentaram o valor da materialização da
doença, olvidando a dependência das ideias e crenças religiosas. Como
consequência, centenas de estruturas anatômicas, que receberam os nomes dos
respectivos autores, foram acrescentadas aos saberes.
Sob o
impacto dessas profundas mudanças estruturais a ética médica foi retomada por
Spinoza, em 1661, nos seus geniais livros “A ética” e o “Tratado da reforma do
entendimento”, ambos também valorizando a vida e rejeitando valores negativos
da compreensão dos conflitos sociais. Nesse contexto, a Medicina e o médico
receberam o reconhecimento compondo partes importantes da construção do belo,
do feliz, da vida, iniciando as concepções do “direito natural”.
O século
18 reconhecido como o século das luzes brilhou sob o esplendor das construções
teóricas de Locke, Leibniz e Condillac. Essa característica, foi retomada por
Kant ao reconhecer a supremacia da razão como instrumento para superar a
ignorância. É possível também entender semelhança com as ideias sobre a
natureza dos homens como semente da compreensão da generosidade explícita, isto
é, manifestação da virtude, que os médicos deveriam adotar no trato com os
doentes. Nesse contexto, Diderot acorda ao caráter protetor na natureza e
Rousseau defende a natureza como “delicada amiga do homem” como princípio da
verdade e da virtude. Desse modo, o século 18 também refunda a generosidade
virtuosa, rapidamente aderida à Medicina. Também é interessante assinalar que a
construção do progresso, central no século das luzes, não se desprendeu dessa
generosidade, como está claro na Declaração dos Direitos do Homem.
Esse
ideário de generosidade, direito e ética se transformou em mensagens de
liberdades e acendeu os pavios das revoluções que forçariam, outra vez, a
abordagem da ética, sob a ótica do genial Kant. Esse filósofo extraordinário,
sem nunca sair de Königsberg, na antiga Prússia oriental, sua cidade natal,
publicou dois livros que mudariam as abordagens da ética e da moral: em 1788,
“Crítica da razão prática” e, em 1790, “Crítica da faculdade de julgar”.
Por
outro lado, com a forte presença do pensamento micrológico, inaugurado por
Marcelo Malpighi, a ética médica renascentista também foi tocada pelas mudanças
nos saberes da fisiologia: a anatomia já não bastava à liberdade, as academias
e sociedades médicas promoviam debates sobre o funcionamento dos órgãos. As
incontáveis funções corpóreas foram monitoradas nos laboratórios de pesquisa e
melhor compreendidas nos animais de experimentação, principalmente o cachorro e
o gato domésticos. Por outro lado, os estudos de Virchow e o uso dos
microscópios consolidaram a histologia, parte da Medicina que até os dias
atuais é utilizada como instrumento para desvendar as estruturas invisíveis aos
olhos. Com a associação entre anatomia-fisiologia-micrologia-histopatologia
nasceria a anatomia patológica, as necropsias, explicando os mecanismos da
morte causada pelas doenças.
Com a
liberdade nunca antes desfrutada, cirurgiões descrevem técnicas cirúrgicas com
o objetivo de diminuir as complicações e mortalidades per e pós-operatórias.