Zemaria Pinto
Francis
Leblon, inverno,
inferninho chique, trilha sonora: Grease.
Francis vestia um costume branco tirado de um filme noir. Morena, cabelos lisos derramando-se pelas costas e pernas
compridas que pareciam deixá-la mais alta do que realmente era. Já ia pelo
quarto uísque quando ela se aproximou e pediu um cigarro. Como não fumava, paguei-lhe
uma carteira e ofereci-lhe uma bebida, que ela de pronto aceitou. Acho que
Martini. Feitas as apresentações, fico sabendo que Francis era figurante de uma
grande rede de TV, produtora de novelas. Aquele lado da batalha era apenas um
complemento, enquanto não lhe chegava uma oportunidade de ser protagonista.
Estudava teatro e era boa aluna, pelo que pude testar, dos meus conhecimentos
sobre uns dois ou três gregos e o indefectível Shakespeare. E ela falou-me de
Brecht e Beckett e Dias Gomes e Zé Celso e Artaud e Antunes e Boal. Francis
tinha o olhar distante e às vezes parecia que não estava ali. Os dentes
impecavelmente brancos, entretanto, davam uma luz extraordinária a qualquer
esboço de sorriso. Dançamos e bebemos muito, antes de irmos para o meu hotel, a
duas quadras da boate. A última imagem que guardei de Francis: às 9 da manhã,
ela atravessando a rua, altiva e elegante, sob uma chuva fininha. Essa memória ficou-me
gravada em preto e branco.