João Bosco Botelho
Pecado e tabu
Existem outros significantes do pecado associado à doença. Um dos mais interessantes é o pecado mágico, não ético, a violação do tabu. Nesse caso, não é valorizado se o pecado ocorreu por omissão ou ação e não inclui, em si mesmo, a ruptura com a divindade ou qualquer tipo de arrependimento, portanto, diverso do das religiões milenaristas. De modo geral, o tabu previne contra algum de tipo de poder acumulado em pessoas, coisas e situações. Esse entendimento está claro na descrição do rito de cura relatado por Rasmussen, citado por Lévy-Bruhl, na aldeia dos esquimós Iglulik: “Nela participam, além de todos os habitantes da aldeia, o xamã, que desempenha o papel principal, e os espíritos familiares da doente. Perante as injunções do xamã, a doente enumera, uma após outra, todas as violações do tabu, leves ou graves... que cometeu... Quando tem a certeza de que nenhuma foi esquecida, a assistência retira-se, convencida de que a confissão das culpas e dos pecados quebrou a espinha da doença.” É importante entender que a confissão da doente esquimó não representa, sob nenhuma hipótese, o arrependimento; é, sim, a libertação que cura a doença, o mal.
Na mesma esteira, em outras culturas, como na citada por Taylor, nas cerimônias fúnebres, na Nova Zelândia, poderia ocorrer a transferência dos pecados da tribo para o morto.
Duas abordagens semelhantes podem ser identificadas, no medievo europeu cristianizado: por meio da Paixão, Cristo transfere para si os pecados dos homens, e o pecado contagiante, expresso na feiúra exteriorizada em algumas doenças, como a lepra e outras moléstias deformantes.
1. Pecado na antiguidade pré-grega
De modo geral, entre babilônios, budistas, celtas, chineses, egípcios, hebreus, hindus e japoneses, a libertação do pecado, da doença, da infelicidade, sempre se relaciona à confissão seguida pelas rezas e penitências. Dependendo da linguagem-cultura, o curador retira o mal, exorciza o pecado, dirige as aspersões e usa imagens e outros artefatos protetores.
Desse lá, permanece um ponto diferencial entre as três medicinas: só a medicina-oficial organizou estruturas teóricas para sustentar as práticas de curas, só registradas a partir das primeiras cidades, assim, de natureza muitíssimo mais recente do que as outras.
Do outro lado, também a partir dos primeiros registros escritos, os poderes organizadores dos núcleos urbanos mais antigos ampararam, ora para mais, ora para menos, as três medicinas, na mesma proporção em que tentavam resolver os conflitos sociais provocados pelo medo coletivo da dor e da morte prematuras das epidemias que poderiam enfraquecer a ordem social.
Desde os tempos ágrafos, a medicina-divina e a medicina-empírica evidenciam-se plenamente ancoradas nas práticas divinatórias e nos milagres e, menos, nos saberes empíricos historicamente acumulados. Por essas razões, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico trabalhados de maneira ametódica e casual, sem compromisso da compreensão das etiologias.
Por outro lado, a maior parte das experiências empíricas acumuladas permaneceu guardada pelos especialistas da coisa sagrada. Estes fatores representaram ásperos obstáculos para reproduzir os saberes fora dos restritos grupos dos representantes das divindades, enclaustrados nos silêncios que impedem as críticas e as respostas.
Essa evidência fica muito clara nas civilizações que se desenvolveram na Mesopotâmia e nas margens dos rios Indo e Nilo. Apesar do notável senso empírico, as práticas de cura permaneceram contidas nas amarras do sagrado, como assinala a tradição judaica em pelo menos três argumentos:
1. O incrível poder do curador divino sobre a vida e a morte de tudo e de todos.
Dt 32: 39 — E agora, vede bem: eu sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).
2. Os saberes empíricos como dádivas divinas.
Sb 17: 20 — Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, a alteração dos solstícios, as mudanças de estações, os ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as virtudes das raízes.
3. O médico como representante reconhecido e festejado da divindade.
Eclo 38: 1-2 — Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.