Amigos do Fingidor

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Samuel Benchimol e a paixão amazônica

Jorge Tufic



Honrado estou, nesses dias de julho de 2011, quando revisito Manaus, com a difícil mas também agradável tarefa que recebo de meu velho e nobre amigo João Renor Ferreira de Carvalho, de apresentar aos leitores este raro livro cujo título – O Samuel Benchimol que eu conheci – logo nos traz de volta a figura legendária do ilustre “homem apaixonado pelo mundo amazônico”, com quem tive o orgulho de conviver na qualidade de membro do Conselho Estadual de Cultura.

Sem dúvida, o autor desta coletânea (Documentário e Memória sobre o acervo de manuscritos da Capitania do Rio Negro, transferido de Portugal para a Universidade do Amazonas), sentira-se ainda mais inspirado com o fato nada comum de, ao obter o respeitoso acesso aos arquivos do grande amazonólogo Samuel Benchimol, deparar-se ali com todas as vinte e sete cartas que lhe foram enviadas e respondidas no período de 1978 a 1982, a partir de Manaus, Lisboa e Paris. Nada então, ou quase nada lhe impediria de realizar, com esse importante conjunto ativo e passivo de correspondências tão valiosas, a obra que certamente faltava em nossas estantes, nos levando, inclusive, a entender melhor o contexto sombrio de uma ditadura militar.

Comove-nos, e às vezes até nos angustia vivenciar a leitura dessas cartas, tanto as de Benchimol, quanto as de Renor, pois refletem elas, de maneira espontânea e coloquial, a realidade (e as hostilidades) que costumam rondar as iniciativas pioneiras em favor do resgate das fontes primárias de nossa história, ou seja, da verdadeira História do Amazonas, nos séculos XVII e XVIII.

Algumas digressões em torno do “gênero” podem ser necessárias. As epístolas, mensagens em forma de cartas, tornaram possível o Novo Testamento. É famosa, no Brasil, a correspondência de Guimarães Rosa com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1959-1967), sobre a qual depõe Francis Henrik Aubert: “Aqui flagramos, literalmente, os momentos dos diversos fazeres tradutórios, em um processo quase inédito de co-autoria” (João Guimarães Rosa, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, pag.9, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003). Dos séculos XIX ao XX, igualmente famosa é a correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, organizada, com introdução e notas, por Graça Aranha. Referindo-se a ela, escreve José Murilo de Carvalho: “Trata-se de conjunto numericamente modesto de 53 cartas  e um bilhete. Machado comparece com 31 cartas, Nabuco com 22. De imediato, chama a atenção do leitor a distribuição cronológica da correspondência. A primeira carta é de Nabuco, um rapazola de 15 anos, aluno do Colégio Pedro II, que escreveu em 1865, agradecendo elogios feitos por Machado, então com 25 anos, um poema patriótico sobre a rendição de Uruguaiana, que recitara em presença do imperador. Machado elogiara o aluno (talvez em parte por ser filho de quem era), e Nabuco lhe escreveu para agradecer” (Machado de Assis &  Joaquim Nabuco, correspondência, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003). Estas correspondências abordam assuntos gerais e específicos da época, oscilam nos tratamentos, ora de “meu caro”, ora de “meu querido”, à medida que aumentam;  pedem desculpas por alguma pressa em dar as respostas, avançando desse modo no âmbito da intimidade, enquanto se identifica nos laços afetivos a causa abraçada por ambos, aplaudem os sucessos.

Tal e qual se verifica entre Renor e Samuel, essa prática dos homens de ciências e letras tem sido benéfica ao país, e, particularmente, aos estados do norte, em razão do espaço geográfico que os separam dos grandes centros urbanos, detentores do poder econômico e político desde que o Brasil foi descoberto. Quanto ao veículo – mucanda, epístola etc. – se não é uma arte de linguagem, virtudes não lhe faltam para motivar poetas e romancistas que dele se utilizam para suas deambulações filosóficas, artifícios líricos, recados, informações. A epopéia lhe subjaz.

Atendo-me, pois, resumidamente, ao núcleo temático deste elenco de cartas e bilhetes, ora tidos como documentos, ou corpus, de tantas pequenas batalhas, a par de enormes cotas de sacrifícios, aos quais também se juntam o esforço e a colaboração do ilustre e saudoso professor Roberto Vieira, baliza-me este simples roteiro de pesquisa, data vênia dos mestres, manuscritores e alquímicos da palavra final:

(a) As cartas do professor Benchimol são documentos preciosos, porque absorvem as duras preocupações de um momento dramático na História de nosso País (1978/1982);

(b) As cartas do professor Renor são, também, documentos (fontes primárias) revelando um grandioso trabalho realizado nos Arquivos Históricos de Portugal, trazendo até nós a memória geossocial da Capitania Colonial de São José do Rio Negro;

c) As notas de rodapé constituem a memorabilia do não menos ilustre professor Renor, sobre as circunstâncias daqueles quatro anos em que esse hercúleo trabalho de resgate histórico e cultural fosse concluído. Agora, vejam: quantos anos antes que o próprio Governo Brasileiro, através do Ministério da Educação, recebesse de volta os códices de nossa própria certidão de nascimento?

Segundo Renor, gestou-se o projeto de levantamento da memória do Amazonas ao longo de interessante “bate-papo” com mestre Benchimol, quando lhe fora apresentado pelo historiador Mário Ypiranga Monteiro, em 1977. Já em 1978, a conversa passa para as letras de cada um, dando-se conta dos primeiros passos em direção da microfilmagem do arquivo Histórico Ultramarino. “Deste modo”- escreve Benchimol em 04/07/1978 – “um judeu brasileiro amazônida e um católico nordestino vão se aliar para produzir a nossa história e reaver os preciosos manuscritos de Lisboa. É um serviço que vamos prestar.”

Por sua vez, Renor vai liberando seus relatórios nas cartas de próprio punho, numeradas de 01 a 28, sem faltarem os demonstrativos de receita e despesa, custos em escudos, além de várias comunicações de remessas de livros raros adquiridos nas livrarias, deixando transparecer algumas surpresas e dificuldades a caminho do espólio. Nessa troca de luzes, mantém-se o bom humor, a autoconfiança e o lema da fraternidade, da generosidade e da lealdade, com que define o legítimo ideário humanista de seu indomável companheiro de luta.

Ao tratar deste assunto, não devemos esquecer a ectódica, ou o temor dos retardatários nesse tipo de salvamento nada mais encontrarem nas velhas caixas de madeira, senão traças ou uma outra escritura deixada pela corrosão devastadora. Comenta Augusto Meyer: “A verdade é que o leitor moderno, acostumado à facilidade das tiragens amiudadas, em plena era gráfica, nem de longe poderá imaginar a aventura da transmissão dos textos antigos, ou considerados clássicos, através dos séculos” (pag. 23, “Os pêssegos verdes”, ABL, 2002). E Antonio Tovar: “No deberá olvidar nunca el  filólogo que los fundamentos, y la vez las aspiraciones y los límites de su ciência los pusieran Zenodoto, Aristófanes de Bizâncio, Aristarco, Erastóstenes. Es possible que hoy manejemos, al cabo de veinte-tres siglos, um material de major precision, pero las bases son las mismas, los problemas e los temas que nos ocupan están iniciados desde entonces” (idem). Ainda hoje quer-se decifrar as palavras que Jesus escreveu na areia, enquanto o interrogavam sobre o destino da mulher adúltera; mas os juízes, ao se retirarem do recinto, já tinham como certo que eles próprios também seriam julgados. Não há traço nem risco de pena que não possa desdobrar-se numa longa odisséia.

Restituído ao seu lugar de origem, este resgate promovido por Renor e Benchimol é a sementeira da História, a matriz de nossa infância cósmica, os olhos do pajé que se transporta na fumaça do cachimbo, a letra da verdade histórica, o sonho do conquistador e a escravidão do conquistado. E este livro é um diálogo de sábios, cuja terceira margem se concretiza no empenho de trazer do exílio a História do Amazonas.