Zemaria Pinto
Marcela
Fosse eu um personagem
machadiano, diria que Marcela me amou por seis meses e alguns milhões de
cruzeiros. Não é apenas uma coincidência de nomes, é uma maldição. Cento e
oitenta e oito dias foi o tempo da ventura. O montante é uma abstração
monetária: o bastante para instalar apartamento confortável, com tudo do melhor
disponível à época. Marcela fazia de mim seu sultão, ela meu harém. Aos 19
anos, Marcela era múltipla e absolutamente talentosa em tudo o que fazia,
especialmente em se tratando de sexo. Aliás, tiremos o especialmente, que aqui
fica sem função. Resumindo Marcela: com ela eu fiz tudo o que imaginei fazer
com uma mulher – e mais alguma coisa que só ela poderia imaginar. Um final de
tarde, chegando sem avisar ao apartamento, nos altos de um velho sobrado do
centro histórico, vi de longe uma figura conhecida indo na mesma direção que
eu. Estanquei o passo. Vi que ele entrou onde eu temia que entrasse. Não podia
ter dúvidas. Sentei-me idiotamente no meio-fio, com a esperança de que a visita
fosse rápida e houvesse uma desculpa razoável depois. Perdi a noção do tempo.
Em meu estômago, a sensação de um soco atingindo fígado e baço, se é que tal
golpe é possível. No dia seguinte ela me procurou. Sem dizer uma palavra,
devolvi-lhe o soco: olho esquerdo roxo, nariz sangrando, escândalo, denúncia,
depoimento, abafa. Paguei mais dois meses de aluguel e risquei Marcela do
livro-caixa da minha vida. Contudo, ainda hoje, cinquenta e tantos anos passados,
desperto em meio à madrugada escutando sua gargalhada sarcástica. Maldita!