João Bosco Botelho
É
possível que as práticas de curas na Grécia homérica descritas nos livros
“Ilíada” e “Odisseia” representem os saberes historicamente acumulados em torno
das complexas ligações entre a medicina e as crenças e ideias religiosas, para
os tratamentos de feridas secundárias às guerras. Como nas culturas do Egito,
da Mesopotâmia e da Índia as doenças e a saúde eram desígnios dos deuses e
deusas. Em outras palavras, não existia processo teórico laico para explicar
saúde e a doença fora dos poderes divinos! É exatamente no magnífico, no
extraordinário “Ilíada”, com narrativa em forma de versos, durante
o nono ano da guerra de Tróia, que se tornou possível entender essas práticas médicas gregas.
Nas
construções do Direito, naquela época, com maior avanço em relação à Medicina,
a função do julgador esteve intimamente ligada à estrutura administrativa laica
reforçando de modo marcante, em relação às culturas anteriores, o sentimento
pessoal e coletivo na aplicação do justo, do belo, do harmônico, também
valorizando a vida e desprezando o vício. Nessa fase, os registros já
evidenciavam os elos entre o ser e a sociedade, sem ser possível entendê-los
dissociados (Homero, Ilíada, IX, 63).
Na mesma
época, diferente do Direito, apesar de existir agentes da Medicina gerida na
polis, com médicos amplamente reconhecidos socialmente, eram muito fortes as
relações das práticas médicas com deuses e deusas curadores ou provocadores de
doenças.
Não é demais
repetir que semelhante às culturas na Mesopotâmia, Índia e Egito, na Grécia
homérica também não havia um processo teórico para compreender a Medicina fora
das crenças e ideias religiosa: as doenças eram consideradas como mal, castigo
pelos pecados cometidos e causadas pela vontade dos deuses e deusas.
Entre as
culturas assírias e babilônica, em torno do século 18 a.C., o pecador era
entendido como alguém doente, privado da liberdade, débil, possesso dos demônios;
em alguns textos, a palavra doença também significava pecado!
Mesmo com
essa forte ligação que também chegou à Grécia homérica, os agentes da cura,
tanto os laicos quanto os sacerdotes, também pensaram e praticaram tratamentos
para curar as feridas da guerra de Tróia, com claros registros nos livros de
Homero, para controlar a dor e ampliar os limites da vida.
Esse genial escritor
e historiador grego, mesmo assinalando a forte presença dos deuses e deusas do
panteão grego amparando as práticas médicas, descreveu detalhes de condutas
cirúrgicas e curativas, indicadas nos ferimentos de guerra, como os bons
resultados dos médicos e exímios cirurgiões Macaon e Podalírio.
Os registros
de Homero que enalteceram os resultados dos tratamentos dos médicos e distinguiam
a perícia do cirurgião ao sarar a ferida aberta pela espada do inimigo, avizinhou
a prática médica grega dos séculos 7 a.C. a do século 4 a.C., quando ocorreria
o início do processo de conflito entre a Medicina e as crenças e ideias
religiosas, para explicar a saúde e a
doença fora das crenças e ideias religiosas, estabelecendo os alicerces da nova
e fundamental etapa da Medicina e do Direito na construção dos procedimentos
atados à busca da materialidade da doença e do delito.
Na Escola de
Hipócrates, essa nova construção está inserida no “Corpo Hipocrático”, conjunto
de textos produzidos na ilha de Cós. Esse conjunto filosófico-médico iniciou o
processo da separação da Medicina das ideias e crenças religiosas.