Pedro Lucas Lindoso
No meio de minhas correspondências,
entre faturas de cartão, contas de luz e telefones, havia um envelope. Daqueles
de borda verde e amarela, usados antigamente para cartas pessoais. Quando se
escreviam cartas pessoais. Envelopes de um tempo em que não havia computador,
nem internet, nem e-mails ou WhatsApp. Não tive dúvidas. Pelo cheiro do
envelope. Água de colônia 4711. Sim, tia Idalina perfuma suas cartas com essa
conhecida fragrância francesa. Abri o envelope com a alegria e curiosidade de
sempre. O que estaria a querida tia Idalina precisando daqui de Manaus? Abri o
envelope e a carta, escrita em papel pautado, bem fininho, quase translúcido,
vindo de um bloco com capa azul e a figura de um avião dos anos setenta. Tia
Idalina, amazonense, eterna moradora de Copacabana. Não vem mais a Manaus. Mas
morre de saudades. Tia Idalina é fiel cliente da VARIG e da TAP. Agora que há
voos regulares da TAP de Lisboa diretamente para Manaus, ela pensa em fazer
RIO-LISBOA-LISBOA-MANAUS-MANAUS-LISBOA-LISBOA-RIO. Um absurdo, mas só assim
viria a Manaus. Ou então pela VARIG, mas como não mais existe a VARIG, é
possível que venha mesmo de TAP, via Lisboa. Pois bem, na carta cheirosa de
colônia 4711, titia me pede, encarecidamente, que lhe mande dois quilos de pirarucu
seco e um litro de farinha do Uarini. Se possível, devo comprar na banca do Sr.
Zagaia, na feira da Japiinlândia. Sua comadre Mariette, que a visita sempre em
janeiro e julho, lhe confidenciou que seu filho é freguês da banca de peixe do
Zagaia. É confiável, lhe disse. Há muita gente vendendo jacaré como se fosse
pirarucu seco. Tia Idalina quase desmaia quando soube que poderia ser enganada.
Jamais comeria jacarés como se fosse pirarucu. Assim, me pedia que adquirisse o
produto diretamente com o Zagaia. Pediu-me ainda que comprasse um creme facial
a base de mulateiro. Era outra dica de Mariette, que estava com a pele ótima e
só usava o tal creme de mulateiro. Poderia adquiri-lo no Mercadão ou na feira
de domingo da Eduardo Ribeiro. Obedeci fielmente as instruções de tia Idalina.
Fiz um pacote com os produtos e dirigi-me ao Terminal de Cargas do Aeroporto
Eduardo Gomes para despachar tudo para o Rio de Janeiro. Questionado sobre o
que havia no pacote, fui sincero. Disse que se tratava de dois quilos de
pirarucu seco e farinha. Hoje tudo passa pelo raios-X e as multas são
exorbitantes. Não se brinca com a Receita Federal, IBAMA, ANVISA e similares. Disseram-me
que tinha que ter autorização do IBAMA para despachar o tal pirarucu. Liguei
para ela explicando-lhe a situação. Inconformada, ela me disse que precisava do
pirarucu com urgência. Iria preparar “Pirarucu do céu” para comemorar o aniversário
da sua amiga Mariette. Por sorte, consegui um portador amigo que viajava para o
Rio de Janeiro na madrugada seguinte. Perguntei-lhe se ela iria fazer pirarucu
de casaca. Ela me disse que não. Sua receita era de Pirarucu do céu. E não era a mesma coisa? Claro que não, me
disse. Vou lhe mandar minha receita. Tia Idalina é a última amazonense que
chama pirarucu de casaca de pirarucu do céu. O portador da
encomenda retornou com outra carta perfumada de colônia 4711, com
agradecimentos e a tal receita de “pirarucu
do céu: ”Assar o pirarucu. Após,
tirar as lascas. Fazer um bom refogado com cebola, cebolinha, cheiro-verde,
tomate e pimentão. Usar azeite. Usar farinha do Uarini molhada no leite de
castanha. Colocar na tigela uma camada de pirarucu, misturada com o refogado.
Em seguida uma camada de farinha molhada no leite de castanha. Outra camada de
pirarucu, em seguida outra de farinha. Enfeitar com ovo cozido, azeitonas e
tomate. Fritar banana comprida para acompanhar.” A receita de pirarucu do
céu da tia Idalina parece bem simples. O fato é: pode ser pirarucu do céu, de
casaca, esporte ou traje passeio. Sendo feito com farinha do Uarini e banana
pacovã fica sempre uma delícia.