Zemaria Pinto*
Anatol Rosenfeld apontou, no ensaio A costela de prata de Augusto dos Anjos, de 1969, “coincidências notáveis” de processos expressionistas na poesia daquele autor, em relação a poetas alemães seus contemporâneos, ressalvando: “sem que se queira fazer de Augusto dos Anjos um expressionista (movimento do qual dificilmente pode ter tido notícia)” (ROSENFELD, 2006, p. 263-270). O poema “Os doentes” (ANJOS, 1994, p. 236-249) é, sem dúvida, um dos paradigmas expressionistas de Augusto dos Anjos. É nele que estão relacionados os “motivos” com os quais o poeta trabalha o tema predominante em sua obra, definido no poema de abertura do Eu, “Monólogo de uma Sombra” (ANJOS, 1994, p. 195-200): a degradação humana vista por uma estética da dor. Doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes – são recorrências que ilustram essa degradação física, metáfora para a degradação moral. O eu lírico descreve a paisagem noturna da “urbe natal do Desconsolo”¹ (p. 236), mas não de uma maneira objetiva, como seria esperado de um parnasiano; a cidade também não é um emaranhado de símbolos, como pensada por um simbolista. Augusto dos Anjos descreve a cidade deformando-a para além do visível: não com a razão naturalista, mas com uma dramaticidade fragmentada, desconexa e tangenciando o grotesco – características do Expressionismo, marca de boa parte dos poemas inseridos no Eu.
Observemos essas recorrências semeadas ao longo do livro: doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes. Para o leitor habitual de Augusto dos Anjos, nenhuma dessas palavras soa estranha; elas estão presentes a cada página do Eu. A sequência lógica que vai das doenças até os vermes é todo o processo de degradação física do ser humano. Ao homem são nenhuma daquelas palavras amedronta. Ao homem degradado, entretanto, elas são a metáfora do caminho percorrido, o caminho de um derrotado, de um vencido. Este é outro motivo assaz explorado por Augusto dos Anjos. É nas cidades, mais outro motivo, que esses vencidos se aglomeram, constituindo a grande massa da degradação humana. E observe-se ainda que, se uma situação leva à outra, podemos também vê-las aos pares: vencidos/cidades, doenças/morte, cadáveres/cemitérios, micróbios/vermes. Assim, o homem, vencido, um habitante das cidades decadentes, acometido de uma doença, sofre até a morte; o cadáver, naturalmente, será levado para o cemitério, onde será pasto para micróbios e vermes.
Dividido em nove quadros, “Os doentes” é o mais longo poema do único livro de Augusto dos Anjos, nos seus 438 versos. A estética da dor é potencializada ao máximo. O eu lírico passeia pela cidade, e o que ele vê? Doença. Doentes físicos e morais. Mas ele é um vencido, “coberto de desgraças”, que procura entender in loco o que nem seus mestres, “nem Spencer, nem Haeckel compreenderam”² :
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...
(p. 236)
Registre-se a plasticidade desses versos, que abrem o poema. A cidade (qualquer cidade) recebe dois atributos que determinam sua forma em nosso imaginário: cascavel e lázaros. O primeiro vocábulo é um símbolo de veneno, traição e morte. O segundo, na acepção primitiva, significa leprosos, mas aqui ele se reporta ao personagem bíblico, simbolizando doenças incuráveis. A cidade dos doentes terminais dormia, como uma serpente, preparada para instilar sua peçonha nos incautos, contaminando-os, tornando-os lázaros também.
No segundo quadro do poema, o eu lírico contempla a paisagem noturna da cidade condenada. A noite apresenta-se calma, ainda que o vento, fantasmagórico e convulso, pareça entoar um “pseudosalmo”, uma falsa oração. Entretanto, sobre os “centros nervosos” do eu lírico, caíam
Como os pingos ardentes de cem velas
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.
(p. 236-237)
E se em “As cismas do destino”, o luar era “da cor de um doente de icterícia” (p. 215), aqui o céu noturno é comparável “a uma epiderme cheia de sarampos!” (p. 237). Ambas as imagens nos fazem pensar em uma paisagem doentia, o que as relacionam diretamente com a ideia de que “o sujeito lírico vê diante de si um mundo inteiramente dilacerado” (CAVALCANTI, 1995, p. 39), resultante de uma poética que lança mão do caricatural, do grotesco e de um humor tão ácido, que nem chega a despertar a graça. Uma paisagem expressionista.
O terceiro quadro mostra o eu lírico entre tuberculosos, reunidos “pela camaradagem da moléstia”:
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
(p. 238-239)
Ao descrever o sofrimento físico daquele grupo, o eu lírico identifica-se com ele, refletindo que qualquer tentativa de expressão verbal é
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
(p. 239)
¹Todas as citações de Augusto dos Anjos têm uma mesma fonte, mencionada nas Referências. Deste ponto em diante, citarei apenas as páginas onde as mesmas se encontram.
²Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, antecipou Darwin na formulação da lei da evolução, estendendo-a a todos os campos da experiência humana. Ernest Haeckel (1834-1919), filósofo alemão, foi o principal divulgador do Monismo, doutrina que prega que o conjunto dos fatos, lógicos ou físicos, pode ser reduzido à unidade – a monera.
(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.