Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O estranho caso da Vila da Barra – 14

Marco Adolfs


Resolvi continuar naquele botequim. Meu almoço foi um peixe grande e fresco que comprei de um índio que apareceu por lá. O dono do boteco se propôs a assá-lo e foi dele que me alimentei. Quando a noite finalmente caiu naquele lugarejo, vários homens começaram a aglomerar-se no interior do boteco. Todos bebiam muito e falavam alto. O assunto principal parecia ser a passagem, que se daria dentro de pouco tempo, do tal bumbá festeiro. Continuava eu naquela bebericagem e conversando com um e com outro quando de repente escutei ao longe o que parecia ser o som de um batuque de escravos. Todos os que estavam no interior do botequim acorreram à rua e perfilaram-se na expectativa de ver o cortejo do boi. Logo divisei, subindo a rua, uma pequena multidão carregando archotes que iluminavam suas faces de uma forma fantasmagórica. À medida que a cantoria e o batuque se aproximavam, pude perceber que os brincantes se organizavam em três filas. Compostas por negros ou cafuzos fantasiados com trajes tingidos em vermelho e azul. Liderando a fila do meio vinha um sujeito paramentado como se fosse um índio e que meus companheiros de bebida disseram representar o tuxaua. A seu lado vinha a figura de uma mulher, que nada mais era que um moleque vestido como índia. Não havia mulheres no cortejo. Esse molecote estava vestido com uma saia curta de tiras coloridas e também com cores alternadas em vermelho e azul. Sua dança era um saracotear de dois passos para a direita e dois passos para a esquerda. Na cabeça ele ostentava um enorme e ridículo penacho. Em dado momento, quando o cortejo se aproximou ainda mais do botequim, o grupo diminuiu as andanças e, do interior da fila do meio, saiu o que todos disseram ser o pajé. Este, assim que viu a plateia reunida, fez um sinal com o archote e apresentou o boi. Quer dizer: uma caveira de boi, com a extensão do corpo feito de um material flexível que servia como estrutura. Este arcabouço era envolvido por panos e saiotes laterais. Em seu interior havia um pequeno homem que arremetia em trotes e gingados vigorosos, imitando espalhafatosamente os movimentos de um boi. Enquanto esse boi gingava para a direita e para a esquerda, os homens entoavam uma canção que mais parecia um lamento. Tudo isso para delírio e deboche da plateia de bêbados do botequim. De repente, o pajé pareceu encenar um drama especial, cutucando o boi com uma espécie de espada. O boi, irritado, tentava arremeter contra os circunstantes e principalmente contra o moleque de saiote. Finalmente, de tanto cutucar o boi com aquela espada, este caiu ao chão, aparentemente morto. Todos pararam imediatamente a cantoria e os sons dos maracás. O pajé aproximou-se do boi para conferir sua provável morte. Quando levantou a espada deu a entender que este realmente estava morto. Nesse momento um dos homens do grupo começou a entoar uma melodia triste e chorosa. Mas, assim que ele terminou essa cantoria, uma arruaça de gritos e sacolejos de maracás irrompeu, partindo de todos os brincantes. Depois de um tempo envoltos nesse barulho infernal, alguns do grupo se deram as mãos e formaram uma corrente a dançar em passos cadenciados. Com movimentos para frente e para trás, em direção ao corpo do boi. Nas suas cantorias todos clamavam para uma lavadeira trazer-lhes um lenço para chorar. Quando cessou o lamento, o pajé retomou seus queixumes. Ficaram nisso um bom quarto de hora, até que todos começaram a despedir-se cantando que já era hora de levar o boi e enterrá-lo dignamente. O mais engraçado aconteceu quando, ao resolverem partir, o boi, como por encanto, levantou-se do chão e partiu também como se nada houvesse acontecido. Todos envolvidos pela mesma cantoria do início de quando se aproximavam.

Passaram-se então mais dois dias naquela cidade; na madrugada do terceiro dia fui obrigado a acordar bem cedo para partirmos em direção à ribeira das naus. Lourenço conseguira alugar uma grande barca e contratara quatro índios para irmos até o local onde um de seus serviçais dissera existir grande quantidade de seringas nativas. A saída do barco, no meio da madrugada, foi feita de forma a evitar “sermos vistos por alguns dos habitantes intrometidos e fofoqueiros da localidade”.


(Continua na próxima terça-feira)