Zemaria Pinto*
No quarto quadro, sob uma chuva que “Encharcava os buracos das feridas / Alagava a medula dos doentes” (p. 239), o eu lírico comenta o destino dos indígenas do continente americano. A atualidade desses versos é um alívio a quem já deve estar saturado de ouvir falar em “descobrimento”:
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
(p. 240)
Falamos tanto em Cabral, enquanto Augusto dos Anjos põe o dedo na ferida: foi Colombo, herói do romântico Castro Alves, o primeiro a aportar nas terras do continente americano e a matar e a saquear e a humilhar. Os índios estão também doentes, porque não existem enquanto cidadãos. E Augusto dos Anjos escreveu isto há quase 100 anos!:
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!
(p. 240-241)
No quinto quadro, a angústia atinge um paroxismo tal que o eu lírico identifica-se com a podridão que o cerca e quer absorvê-la para, assim, tentar anulá-la, numa grotesca eucaristia:
Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
(p. 242)
Essa imagem, que serviria para reforçar as análises que viam em Augusto dos Anjos um caso patológico, e em sua poesia, manifestações blasfemas, apenas confirma o viés expressionista adotado, ainda que não com esse nome, pelo autor. Richard Sheppard, comentando a poesia de Gottfried Benn, Georg Heym, Jakob van Hoddis e Alfred Lichtenstein (os dois primeiros citados por Rosenfeld), afirma que
Eram poetas de tons e perspectivas diversas, mas unidos numa visão comum – uma visão essencialmente expressionista das forças demoníacas reprimidas que lutavam para irromper e destruir a superfície aparentemente ordenada da cidade industrial. Seus versos são apocalípticos, cheios de imagens de contrastes e conflitos.
(SHEPPARD, 1999, p. 313)
Paradoxalmente, entretanto, após o reencontro com “a saudade inconsciente da monera”³, que havia sido sua “mãe antiga”, ele recobra a calma, mas não o equilíbrio, ao concluir:
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
(p. 243)
No “Monólogo de uma Sombra”, esta já dissera que somente a Arte “abranda as rochas rígidas” (p. 199), por isso, em “Os doentes”, o eu lírico diz que, após sua morte, sua poesia “reviverá, dando emoção à pedra”, e será ouvida por todos. E ele acertou em cheio, tanto que estamos aqui, a dela nos ocupar. Quanto a ser maior que a Fedra,⁴a comparação não faz sentido, deixando a impressão de que ela entrou aí só para facilitar a rima com “pedra”. Agora, quanto à Bíblia, sem qualquer sectarismo de ordem religiosa, creditemos ao ambiente insano em que se encontrava o eu lírico. Não deixa de ser uma licença poética...
O sexto quadro mostra-nos os distantes “bairros da luxúria”, numa alusão à prostituição, explorada, àquela época, com a discrição possível, na periferia das cidades. A visão que se tem é cruel: mulheres doentes, física e moralmente, degradadas ao extremo. Mas elas são vítimas também, e isso não escapa à percepção do eu lírico:
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
(p. 244)
O tempo passa, mas os problemas sociais, as feridas sociais, para usarmos a linguagem do nosso autor, continuam as mesmas. Às prostitutas, numa postura moralista, muito comum ao tempo, ele só vê redenção na morte, aqui simbolizada pelos ciprestes:
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes!
(p. 244)
No sétimo quadro, o eu lírico vaga “atabalhoadamente pelos becos”, onde tudo lhe lembra morte, luto, ruína. Interrompe seus pensamentos o barulho produzido pelos bêbados da cidade, que, falando línguas estranhas, misturando gírias à língua enrolada dos bêbados, reúnem-se na “promiscuidade das adegas”:
E a ébria turba que escaras sujas masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.
(p. 245)
Contrastando com a falsa alegria produzida pelos bêbados, surge, no ambiente fechado da taberna, um leproso, um morfético, que a norma culta recomenda, hoje, denominar hanseniano. Naquele corpo deformado pela doença, o eu lírico vê o reflexo de toda a humanidade. A imagem, terrivelmente bela, tangencia a blasfêmia; entretanto, detenhamo-nos no adjetivo “negra”, qualificando a eucaristia; ele inverte, ou melhor, subverte o sentido original da palavra sagrada. É, na verdade, se pensarmos nesses termos, uma manifestação demoníaca, para sensibilizar “aquele povo de demônios”, os bêbados.
O fácies do morfético assombrava!
– Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava.
(p. 246)
O sonho do eu lírico personificava-se na figura daquele doente: um sonho “inchado, / já podre”, “palpável, / como se fosse um corpo organizado” (p. 246). Aquele doente, na sua notória deformação, é uma alegoria da própria poesia de Augusto dos Anjos: deformada, grotesca, expressionista, prenhe das lições de modernidade bebidas em Baudelaire:
Mas o conceito de modernidade de Baudelaire tem outro aspecto. É dissonante, faz do negativo, ao mesmo tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias estimulantes que querem ser apreendidas poeticamente. Contêm mistérios que guiam a novos caminhos. Baudelaire perscruta um mistério no lixo das metrópoles: sua lírica mostra-o como brilho fosforescente.
(FRIEDRICH, 1991, p. 43)
O cemitério descrito no oitavo quadro é um pesadelo de imagens bizarras, dignas de um contemporâneo filme B:
Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!
(p. 246-247)
Ao comparar o cemitério com um bulevar – “Dá-me a impressão de um boulevard que fede / pela degradação dos que o povoam” –, não podemos deixar de referir a ironia de que aquela novidade arquitetônica era o símbolo máximo da cidade moderna⁵.
No seu delírio, “afundado nos sonhos mais nefastos” (p. 246), o eu lírico não perde a consciência social, apontando a opressão à raça negra:
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!
(p. 247)
A referência comercial não é mais à escravidão, capítulo vergonhoso, já ultrapassado, mas sim à opressão sexual que as mulheres negras pobres sofrem. Duas quadras antes, ele escrevera:
E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;
Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
À sodomia indigna dos moscardos;
(p. 247)
Essa consciência social é pouco apontada em Augusto dos Anjos, reconhecidamente um conservador, do ponto de vista ideológico. Mas observe-se que, assim como em relação aos índios, o que poderia ser considerado um resquício romântico, também com relação às prostitutas e aos negros sua posição é muito clara. Infelizmente, e é preciso repetir isso diariamente, os versos de Augusto dos Anjos continuam cruelmente atuais, inclusive nas alusões à tuberculose e à hanseníase.
Ainda no oitavo quadro, dentro do cemitério, amanhece o dia, levando o eu lírico a “absorver a luz de fora” e a sentir o “prazer inédito / De quem possui um sol dentro de casa” (p. 248). Após explorar a cidade em ruínas, e conviver com as doenças – físicas e morais – mais terríveis, o desfecho não poderia ser outro senão, após o contato com a morte, receber a luz redentora do sol, ainda que sentindo “O odor cadaveroso dos destroços” (p. 248).
³ O Monismo formava, juntamente com o Positivismo, o Determinismo e o Evolucionismo, a base filosófica da Escola de Recife, que teve grande influência na poesia de Augusto dos Anjos.
⁴Tragédia do francês Racine, escrita no século XVII.
⁵ Comentando o poema em prosa “Os olhos dos pobres”, de Baudelaire – em que o poeta descreve uma cena em um café, “na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas já mostrando seus infinitos esplendores” – Marshall Berman afirma que o “novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional.” (BERMAN, 2007, p. 180)
(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.