Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A cidade expressionista de Augusto dos Anjos: uma leitura de “Os doentes” – 3/3

Zemaria Pinto*


O último quadro reafirma o que já fora dito, a respeito da arte, pela Sombra, no poema citado. Lembremo-nos que ela representa o desconhecido, o inexplicado. Pois bem, “Os doentes” começa com uma afirmação do eu lírico de que “tentava compreender... as substâncias vivas” (p. 236) que a ciência não compreendia. Depois daquela experiência alucinante, ele reconhece-se vencido:

                    O inventário do que eu já tinha sido
                    Espantava. Restavam só de Augusto
                    A forma de um mamífero vetusto
                    E a cerebralidade de um vencido.
                                                                (p. 248)

Observe-se o eu lírico nomear-se como o próprio poeta. Mas não nos enganemos: as experiências do poema foram “vividas” por um personagem, que, insistentemente, chamei de eu lírico, e não de Augusto dos Anjos. Esse “Augusto” é o nome da máscara lírica do poeta, encerrando uma ironia, pois o significado do nome não guarda nenhuma analogia com o personagem, um “vencido”.

Em seguida, ele afirma o entendimento de que tudo aquilo que fora vivido com tanta intensidade à noite, como um sonho macabro, à luz do dia apresenta-se, sem quaisquer subterfúgios fantásticos, como a desagregação da humanidade, do modo que ele a via, para o surgimento de uma outra, inteiramente renovada e sem vícios:

                    A ruína vinha horrenda e deletéria
                    Do subsolo infeliz, vinha de dentro
                    Da matéria em fusão que ainda há no centro,
                    Para alcançar depois a periféria!
                    (...)
                    A doença era geral, tudo a extenuar-se
                    Estava. O Espaço abstrato que não morre
                    Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
                    Parecia também desagregar-se!
                                                                   (p. 248-249)

“O gênio procriador da espécie eterna” falhara e falira. Mas o eu lírico, “uma sobrevivência de Sidarta”, o Buda, na “filogênese moderna”, isto é, na história da evolução das espécies, sente nascer-lhe n’alma, “o começo magnífico de um sonho”: uma “outra Humanidade”, composta pelos descendentes dos que não se deixam adoecer, dos que acreditam que “Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!” (p. 248-249):

                    Entre as formas decrépitas do povo,
                    Já batiam por cima dos estragos
                    A sensação e os movimentos vagos
                    Da célula inicial de um Cosmos novo!

                    O letargo larvário da cidade
                    Crescia. Igual a um parto, numa furna,
                    Vinha da original treva noturna,
                    O vagido de uma outra Humanidade!
                                                                   (p. 249)

O itinerário percorrido na cidade retoma a clássica descida aos infernos, recorrente na literatura ocidental, desde Homero. Augusto dos Anjos descreve a cidade em nove quadros, tantos são os círculos do inferno dantesco. Um dos pontos-chaves do Expressionismo prega o aparecimento de um novo homem, que irá formar uma nova humanidade. O inferno descrito é a representação da decadência humana – a destruição do apodrecido para propiciar o surgimento do novo: um novo homem, uma nova humanidade, uma nova era. Claudia Cavalcanti observa que “o ‘novo homem’ ansiado pelos jovens expressionistas seria o indivíduo cuja ação era caracterizada por um rigor ético e filosófico e cujo objetivo de vida deveria ser marcado por um humanismo indiferente a classes sociais” (CAVALCANTI, 1995, p.15). Os jovens alemães já começavam a absorver o pensamento de Nietzsche, morto em 1900, que fora influenciado por Schopenhauer, filósofo dileto de Augusto dos Anjos. Não cabe neste espaço estabelecer esses nexos, mas há algo de Zaratustra em nosso autor:

Eu vos proponho o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizestes para isso? (NIETZSCHE, 1991, P. 14)

A conclusão a se tirar deste magnífico poema beira a simplicidade: a evolução não tem limites e aplica-se a todos os campos da experiência humana, por isso os vencidos serão sempre substituídos, não exatamente pelos vencedores, mas pelos mais fortes. E essa força não é física: antes, é moral. São os que se deixam vencer pelos vícios e pelas próprias fraquezas, são os incapazes de lutar que fazem parte dessa humanidade doente. Mesmos os humilhados, os derrotados fisicamente (como os índios e os negros, na concepção de Augusto dos Anjos), podem redimir-se pela luta, mostrando que são, moralmente, eticamente, superiores aos seus algozes – estes, sim, doentes.

Entretanto, o “cientificismo” de Augusto dos Anjos, aqui representado pelo evolucionismo, é apenas uma leitura possível, mas óbvia e desgastada. Retomando a observação de Rosenfeld, constatamos que “Os doentes” se enquadra naquela tradição fundada por Baudelaire, que promove o intercâmbio entre as excludentes representações mentais de multitude e solitude (HYDE, 1999, p. 275-277, apud BENJAMIN, 1970). O poeta é um solitário na multidão. Mas Augusto dos Anjos vai além, desenvolvendo processos expressionistas, que ele certamente não conhecia, para criar “uma poesia moderna da vida urbana, da guerra, da política visionária e radical, retratando a cidade como um lugar de loucura e deserdamento, mas oferecendo a promessa de uma nova energia, antes reprimida, a crescer dentro de si” (SHEPPARD, 1999, p. 313). Esta afirmativa sobre o poeta alemão Georg Trakl – um dos autores citados por Rosenfeld como paradigmas de Augusto dos Anjos – se enquadra com perfeição na leitura de “Os doentes”.

O Expressionismo jamais se constituiu como uma escola ou um movimento organizado. Antes, é uma visão de mundo. Foi um título adotado, no princípio do século XX, inicialmente, por pintores, que não aceitavam mais as limitações do Impressionismo. Na literatura, o termo foi usado pela primeira vez em 1911, na Alemanha, onde, mesmo sem um programa e sem lideranças, registram-se três fases históricas distintas, cobrindo um período que vai até pouco depois da I Guerra, evoluindo, ou seria melhor dizer evolando-se, para o Dadaísmo e para o Surrealismo. Viktor Zmegac, comentando a poesia alemã da época, nos fala, indiretamente, de Augusto dos Anjos:

O entusiasmo patético dos expressionistas por tudo o que leve o carimbo do sofrimento humano não conhece limites e, no vocabulário, quaisquer elementos-tabu; tudo o que até então era considerado feio, nojento, proibido, alcança, no protesto da nova poesia, um sentido artístico, é parte do grito por “imediatismo”. (...) Na visão expressionista da vida, as cenas repugnantes da podridão, da violência e da morte são parte indissociável da realidade. Vivenciá-las significa, para os expressionistas, sair da indiferença socialmente regulamentada, significa vivenciar a realidade mais profunda e completamente. (CAVALCANTI, 2000, p. 26, apud ZMEGAC, 1993, p. 275)

Potencializar a realidade externa, transfigurando-a, deformando-a para muito além dos paradigmas naturalistas ou impressionistas, foi a forma de expressão encontrada por Augusto dos Anjos para construir um arcabouço poético que fosse muito além da mediocridade da vida cotidiana. Nem demente, nem neurótico ou satânico – nem sequer esquisito. O aristocrata rural falido, advogado fracassado e provinciano professor, moldou para si uma máscara, fundida na filosofia de Schopenhauer, na poesia de Baudelaire e, sobretudo, num espírito crítico aguçado, atento às transformações pelas quais passava o país, de um estágio secularmente rural para uma industrialização lenta, mas avassaladora. A poesia de Augusto dos Anjos, conscientemente, registra a entrada do Brasil nesse território nebuloso chamado modernidade.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do texto e notas: Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAVALCANTI, Claudia. A literatura expressionista alemã. São Paulo: Ática, 1995.

___________. Em busca do êxtase. In: Poesia expressionista alemã: uma antologia. Organização e tradução: Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução: Vera da Costa e Silva et al. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução: Marise M. Curioni. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.

HYDE, G. M. A poesia da cidade. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich. O prólogo de Zaratustra. In: HÉBER-SUFRIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Tradução: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SHEPPARD, Richard. O expressionismo alemão. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

___________. A poesia expressionista alemã. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.