Zemaria Pinto
Do mito cosmogônico passamos ao mito de origem, do herói-civilizador. Jurupari, a guerra dos sexos (SOUZA, 1997, p. 91-152), encenada pela primeira vez em 1979, é a versão Tariana do mito, em três atos. Para Camara Cascudo, Jurupari “é, geograficamente, o mito mais prestigioso, com vestígios vivos em quase todas as tribos” (CASCUDO, 1988, p. 420). A força do mito é a provável responsável pelo ardil missionário de classificá-lo como um demônio, na concepção cristã. Ironicamente, uma autoridade católica, D. Frederico Costa, em documento de 1909, defende o herói da desonra que seus pares tentaram lançar-lhe, enumerando os oito mandamentos de Jurupari e concluindo que tanta reserva moral não caberia num espírito maligno (CASCUDO, 1983, p.76-77, apud COSTA, 1909, p.52-54). Ainda para Câmara Cascudo, Jurupari “é o legislador divinizado, que se encontra como base em todas as religiões e mitos primitivos” (CASCUDO, 1988, p. 420).
A ação de Jurupari se passa num tempo mítico, anterior ao que possa ser admitido como História, mas sem que esta possa negá-lo de todo. Uma peste dizima os homens da tribo, deixando apenas alguns velhos, entre eles um pajé, que, para Naruna, a matriarca, era apenas “uma raiz, uma planta antiga”. Desoladas, as mulheres vão banhar-se no lago Muypá, que lhes era proibido, por ser o lago sagrado onde Ceucy, a estrela, banhava-se todos os dias, “lavando o suor de seus amantes”. Para surpresa das mulheres, o velho pajé lhes aparece no corpo de um jovem belo e forte, anunciando um castigo por haverem ignorado a interdição: “pelo crime cometido, a geração que nascerá amanhã excluirá a mulher para sempre de tudo o que for sério e grave”. Ele mergulha no lago e desaparece entre as mulheres. Depois de passadas dez luas, “todas as mulheres pariram ao mesmo tempo”. Naruna deu à luz uma menina, a quem chamou Ceucy da Terra.
Adolescente, Ceucy, ainda virgem, come uma fruta proibida e o sumo dessa fruta escorre-lhe pelo ventre, fecundando-a. Dez luas passadas, nasce Jurupari. O recém-nascido desaparece como por encanto e seu choro é ouvido próximo à árvore do fruto proibido. Ceucy deixa-se ficar junto à árvore e, durante algum tempo, sempre que adormece, sente o filho sugar-lhe o seio. Vinte anos decorrem até que ele reapareça para assumir o lugar que lhe fora reservado. Aos poucos, sua liderança vai sendo imposta aos homens, a quem fala sobre a música, a agricultura do milho, da mandioca e da banana, e sobre o novo tempo em que eles assumirão os destinos da tribo. Essas informações devem pertencer somente aos homens: são os segredos de Jurupari. Numa das reuniões proibidas às mulheres, Ceucy, que ouvia escondida, é descoberta e recebe o castigo de morte do próprio filho. Naruna foge com as outras mulheres para o “lago de águas verdes”, recebendo os homens uma vez por ano.
Mas Naruna não desiste de conhecer os segredos de Jurupari, que só os iniciados dominam. Este, por sua vez, aplaca a tensão dos homens prometendo que dentro em breve as mulheres voltarão. A jovem Diádue, a serviço de Naruna, consegue seduzir o maduro e experiente Uálri, que é condenado a morrer pela traição. O “segredo” revelado às mulheres é o conhecimento erótico de Uálri: “ele agiu com uma sabedoria nova e não resumiu o amor em poucos gestos”. As mulheres, então, retornam, deixando Naruna e algumas poucas que lhe permaneceram fiéis. Jurupari ensina aos homens acerca das flautas sagradas:
– Minhas flautas farão os desejos ondularem como ramagens saudando o tempo, na alta copa da mata, esvaindo todo o travo das frustrações na torrente distante espumando na descida. E os homens crescerão sem medo, como o trêmulo pássaro parado na margem antes do ocaso.
O terceiro ato começa mostrado um outro legado de Jurupari: os adornos. Os homens vão ao encontro anual com as últimas defensoras do matriarcado. Jurupari, pela primeira vez, vai junto. No encontro com Naruna dá-se o inevitável: ele a mata. Quando retornam, ainda sob os reflexos do incêndio que consome a maloca de Naruna, Jurupari e Diádue fazem amor, mas ele a adverte:
– Esta será a nossa primeira e última noite. Quando os séculos se consumarem eu voltarei a te encontrar e viveremos juntos. Eu mergulharei em ti e repousarei das minhas fadigas e sustos.
Pela manhã, Diádue transforma-se num lago. Antes, entretanto, Jurupari revelara-lhe um último segredo: o Trovão Avô do Mundo queria casar-se e incumbira-o de encontrar a mulher perfeita. Ele precisava continuar sua busca por uma mulher paciente, que soubesse guardar segredo e não fosse curiosa...
Sem um Luiz Lana por perto, Márcio Souza trabalhou à vontade as inúmeras variantes do mito de Jurupari e deu-lhe uma formatação literária condizente, amarrando-o com sua concepção anterior da criação do mundo e com outras histórias, como a das Amazonas, que seriam as guerreiras lideradas por Naruna. O mito de Jurupari é uma “história verdadeira” e explica a origem de vários costumes e práticas: a música, a agricultura, os adornos, o patriarcado. Mas sua fama de legislador deve-se aos mandamentos coligidos por D. Frederico Costa:
1º A mulher deverá conservar-se virgem até a puberdade;
2º Nunca deverá prostituir-se e há de ser sempre fiel ao seu marido;
3º Após o parto da mulher, deverá o marido abster-se de todo trabalho e de toda comida, pelo espaço de uma lua, a fim de que a força dessa lua passe para a criança;
4º O chefe fraco será substituído pelo mais valente da tribo;
5º O tuxaua poderá ter tantas mulheres quantas puder sustentar;
6º A mulher estéril do tuxaua será abandonada e desprezada;
7º O homem deverá sustentar-se com o trabalho de suas mãos;
8º Nunca a mulher poderá ver Jurupari a fim de castigá-la de algum dos três defeitos nela dominantes: incontinência, curiosidade e facilidade em revelar segredos.
(CASCUDO, 1983, p.76-77, apud COSTA, 1909, p.52-54)
Sobre o oitavo mandamento, que é também o epílogo da peça, Stradelli o apresenta como o desfecho da aventura humana de Jurupari, numa missão que lhe fora atribuída pelo Sol: o de procurar a mulher perfeita, que não tivesse nenhum daqueles defeitos (CASCUDO, 1967, p. 58, apud STRADELLI, 1890).
A despeito do título, que pode levar o leitor incauto a pensar na Lisístrata, de Aristófanes, Jurupari, a guerra dos sexos é um texto dramático, de alta densidade poética, perpassado de um erotismo sutil, que, quando necessário, se escancara, sem cair na vulgaridade. O sexo é mostrado como um índice de civilidade, muito além da mera função reprodutora. Jurupari, por outro lado, é uma personagem atormentada, desprovida de humanidade, centrada na sua missão, como um herói grego consciente de seu destino, previamente traçado pelos deuses.