Amigos do Fingidor

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O aborto e o sagrado

João Bosco Botelho


            A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido”. O filósofo cristão Tertuliano (c. 160‑220) também adotou a mesma posição: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer”.  

             A partir do século IV, o aborto provocado passou a ser associado à idade fetal. Nesse sentido, São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes Doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, sustentou: “Os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a importância da separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a Lei não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.

            A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás (1225‑1274) sustentou que só o aborto do feto animado seria homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram, na Idade Média, no afrouxamento da proibição do aborto. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

             O retorno da Igreja, no século 20, ao rigor do cristianismo do Didaqué contra o aborto iniciou com o papa Pio XI, que acabou com a distinção entre o feto animado e não animado. No seu famoso discurso dirigido aos obstetras, em 1951, foi enfático: “Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente visando sua destruição”.

            O documento conciliar Gaudium et Sepes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado; e o aborto, como o infanticídio, são delitos abomináveis”.