Amigos do Fingidor

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

As doces lembranças

         Jorge Tufic


“Doces lembranças”, de Dona Chloé Loureiro, é um livro original sob vários aspectos: ele conta a história de sua vida, retrata uma época de ouro, ensina a viver e, ao mesmo tempo em que narra os eventos cívicos, religiosos ou domésticos, transcreve as receitas que fizeram o sabor e estreitaram a convivência entre parentes e amigos. Em pinceladas vigorosas, mostra-nos ainda o que foi a Sena Madureira da sua e da minha infância nas décadas de vinte e trinta, quando, sempre com a diferença de uma década, nossos pais tiveram que trocar o ambiente semibucólico daquele município acreano pela cidade de Manaus.

Se os tempos deterioram, se a qualidade de vida do brasileiro deprime-se com o progresso e a cosmopolitização, Dona Chloé não recorda e faz recordar apenas para viver, mas, sobretudo, para salvar. E aqui está um livro, essencialmente brasileiro e puro, que nos indica o caminho de volta ao sentimento caseiro do afeto, aos encontros na praça, ao valor da amizade, ao cultivo fraterno da boa vizinhança. A criatividade e os milagres da cozinha também contam na levança dos hábitos, no enfrentamento cotidiano das dificuldades. Por outro lado, os pais e os filhos são incapazes de ver e sentir como vê e sente a mãe compenetrada, que saiu da curiosidade e dos anseios da primeira e segunda infâncias, dedicadas aos longos preparativos da mulher e da esposa, para as tarefas do lar. E as “Doces Lembranças” de Dona Chloé estão repletas de acontecimentos afetivos, e até de sustos e sacrifícios que somente a ela, e a suas doces lembranças, devem pertencer.

Mas, leiam com atenção este livro. Leiam e anotem, que há nas suas entrelinhas muitas outras receitas, de amor e sabedoria, que bem podem conduzir à felicidade. O cenário de nossa infância comum, tão barulhento para mim quanto suave e romântico para Dona Chloé, nos devolve aos idos que o leve debuxo que ilustra seus capítulos vai, aos poucos, sugerindo: a chatinha que dobra uma curva de rio, a canoa com seu japá, o relojão de parede, o bondinho, o quiosque da praça e os retratos de família. É assim, exatamente, que ficam na memória as cenas e os objetos de nosso passado. Só as lembranças, com suas tintas e suas cores, têm o poder de acordá-la numa paciente e amorosa recomposição de gestos, pessoas, eventos, cronologia. E a seguir, o elenco de receitas que alegravam o paladar, e dariam, a cada gênero de goma, seu clima e sua festa.

Com franqueza, eu não esperava emocionar-me tanto com a leitura destas reminiscências, depois de ter lido as memórias de Pedro Nava. O fato, no entanto, é que a terra de minha infância tem mais a ver comigo do que a Belo Horizonte ou a Juiz de Fora daquele autor mineiro, cuja obra, na opinião de Francisco de Assis Barbosa, é uma lição de vida e uma lição de Brasil, como as “Doces Lembranças”, de Dona Chloé serão, para nós, uma lição de vida e a lição de um Brasil diferente e esquecido. Se alguém duvida, compare a vitalidade interior das casas mineiras de antanho, descritas pelo mestre de “Balão Cativo”, com as suas congêneres do Acre, onde a casa do Dr. Areal Souto destaca-se como exemplo e modelo.

Decorridos alguns anos dos últimos episódios que marcam, com chaves de ouro, as páginas finais desta autobiografia, nós fizemos, eu e meus pais, esse mesmo roteiro fluvial de Sena Madureira a Manaus, e adivinho a emoção daqueles que deixavam suas raízes pela vida da Capital. Como se sabe, as únicas, assim consideradas naquele tempo Capitais da Amazônia, eram Manaus e Belém. São dezenas de pessoas que estiveram, momentos apenas, diante dos nossos olhos. Personagens reais, ou imaginários, seu tempo, hoje, é de fábula. Como aquele misterioso Ramayana de Chevalier que Dona Chloé viu e “fotografou” nas suas diversas e espalhafatosas aparições durante a viagem. E a quem tivemos por amigo no apogeu e na derrocada, apenas física e breve, de sua bela e prodigiosa existência.

Finalizando esta modesta apresentação da escritora Chloé Loureiro, eu tenho a dizer, simplesmente, que os ossos de seu baú “reencarnam” neste livro, não por arte de um saudosismo estéril e vazio, mas porque também florescem na dimensão poética de um legado cultural que vence a morte.