Jorge Tufic
É a Cadeira que ocupo na Academia de Letras e Artes do Nordeste. Milton Dias é o meu patrono, sobre quem não disse ainda uma única palavra, apesar de tê-lo conhecido em Manaus, numa fase de minha vida de jornalista dedicado, inclusive, às crônicas semanais sobre qualquer assunto que viesse a calhar, principalmente sobre acontecimentos relativos à cultura; no caso, a visita desse ilustre escritor cearense à Capital do Amazonas, uma crônica de 15 de fevereiro de 1979, reproduzida a seguir.
Uma dupla visita incomum, a do Vice-Reitor da Universidade do Ceará e do cronista Milton Dias, ambos numa só pessoa, tomam de assalto a bela residência do nosso prezado Geraldo Manuel para esse encontro líquido de um sábado chuvoso por fora, mas cheio de humano aquecimento no diálogo que contara também com a presença do magister Sebastião Matos, que acompanha o escritor em suas andanças oficiais. Muitas risadas, então, de ânimo inquebrantável diante das garrafas que se esvaziavam, e dos copos que se rompiam, vez por outra, ao mais leve descuido entre o gesto e a palavra.
Milton Dias é autor de seis livros, já publicados, inclusive um romance que ainda não tenho, a maioria reunindo crônicas semanais de sua coluna no jornal ¨O Povo¨, em Fortaleza: “Sete-Estrelo”, “As Cunhãs”, “A Ilha do Homem Só”, “Entre a Boca da Noite e a Madrugada”, “Cartas sem resposta” e “Viagem no Arco-Íris”, este em parceria com o poeta Cláudio Martins. De prosa fluente, o ar atencioso de quem se reserva para sondar o ambiente com as antenas da prudência, o homem e a obra se completam. Não avançam mais do que os extremos concedidos pela intuição e pela modéstia. Ouvi-lo falar é ficar recordando sua ternura pelas aves, sua visão perlongada aos amenos de uma Fortaleza que se rende aos que sabem conquistá-la, como neste salmo louvante à sua terra natal: “Aquele que habita e ama esta cidade será seu filho fiel, nativo ou de adoção e terá o sol por prêmio e o verde mar por testemunha”.
Segundo Paulo Bonavides, a obra literária de Milton Dias sempre teve acolhida lisonjeira por parte da crítica do País. Do cronista disse Wilson Martins que “é um escritor de estilo próprio e agradável”, ao passo que Antonio Olinto ressalta nele “o toque de poesia e de humor de suas crônicas”. A saudosa Eneida vai mais longe e proclama: “Milton Dias é um dos melhores cronistas que possuímos!” De Portugal, chega-nos também o eco da crítica de Fernando Namora, que há algum tempo escrevera sobre “As Cunhãs”: “Um belo livro, pois, de verdadeiro escritor”.
O que se pode acrescentar a tudo isto, senão a qualidade humana e límpida do “causeur”, a experiência marcante do “glober-trotter”, ou as lições de literatura francesa que espontaneamente ele vai entremeando ao papo descomprometido com as horas? E assim foi ao vê-lo chegar: alto, lépido e ágil nas saudações e nos cumprimentos, a roupa clara e o boné cambado sobre os óculos a lhe protegerem as pupilas miúdas e circulantes. Quase nada se adivinhava acerca de sua existência recolhida aos estudos, de solteirão convicto e amante de todas as coisas que fazem os arredores, presumivelmente inalteráveis, daquele trecho antigo da rua Coronel Ferraz, onde ele mora parede com a sua mãezinha, e a uma janela da praça ilustrada por Estrigas e Nice, conforme se lê numa crônica memorável de “Viagem no Arco-Íris”.
Nessa crônica (“Tarde na minha praça”), reponta a quietude despojada das lutas inglórias: “Tão simples tudo. Um homem deitado tranquilamente, aproveita a sombra do caminhão, dorme debaixo, é talvez o ajudante que guarda o carro e aproveita a sua proteção, dorme numa atitude de sossego absoluto, tão sem problema, nesta hora em que banqueiros se preocupam com cifras e agiotas ambiciosos protestam letras e industriais discutem a produção das suas fábricas e autoridades se inquietam com o que lhes foi confiado para governar”. O sol, as ruas, os pássaros e as mulheres governam, por sua vez, os temas do cronista, enquanto recolhem as belezas da vida.
Nas páginas dedicadas ao pai, ele confirma seu amor pelas criaturas simples do chamado jour-le-jour, ao convívio do espetáculo diuturno, comum a todos em dados momentos de solidariedade humana. E os seres, aqui, parecem dar-se as mãos para uma ciranda atingida por uma claridade que jamais se define, nem como amanhecer, nem como anoitecer. Pois deve tratar-se de uma luz gerada pelos resíduos das noites e dos dias bem vividos – que a linguagem transforma e restitui como um bálsamo de afetos impossíveis.