Jorge Tufic
Há cinquenta anos, precisamente, do primeiro risco a lápis diante da casa de Dona Cachica aos motivos lendários da paisagem fluvial (agora aplicando, em suas telas, a magia de cores e visgos da própria região amazônica), que Moacir Andrade faz de sua arte admirável uma ponte que liga a taba de Ajuricaba ao resto do planeta.
Ainda recentemente, numa espécie de coroamento glorioso desta sua trajetória pelo mundo das artes plásticas, ele regressa da Europa trazendo consigo pouco menos de meia tonelada de honrarias na forma comum de troféus e medalhas valiosas, e na forma incomum, singular até, de pratos e brindes trabalhados a ouro, exclusivamente para serem ofertados ao ilustre representante do Amazonas junto às embaixadas e casas de cultura de Portugal.
Entretanto, além de pintor, escultor e desenhista, Moacir Andrade é, também, escritor, estudioso do folclore, poeta bissexto e antropólogo. Álbuns de memórias são outras de suas ocupações favoritas no resgate de sua Manaus antiga, uma espécie de fidelidade ao pitoresco como fonte de inspiração lírica do eu-poético, relacionado com a totalidade do ambiente amazônico (homens, animais e plantas; a natureza, enfim).
Na rolagem dos signos que marcaram nosso tempo de juventude, incontáveis audácias do artista poderiam ser recordadas. Uma delas, contudo, marcou-nos para o resto da vida: ambos, um dia, pilotando uma canoa, resolvemos desembarcar na superfície de uma bóia da companhia das docas, no meião do Rio Negro; e ali, enfrentando o perigo das ondas, Moacir instalou seu cavalete para colher a cidade da barra sob um ângulo ainda hoje impossível.
Concluída, então, a proeza, e já novamente a postos nos bancos da montaria, restava-nos agora comemorar, aos risos e gargalhadas, o que, de imediato, só se podia atribuir à visão de um boto que de repente parasse de sua caminhada para olhar a cidade de Manaus. Nunca mais tornei a ver esse quadro. Mas ele, para mim, se desdobra e fascina como lembrança do arrojo sem nome, quando todo perigo desaparece tomado pela coragem de surpreender o novo, onde quer que ele esteja.
Ensinou-me, também, a oportunidade deste lance, a descobrir melhor em sua arte regionalista, a linguagem do expressionismo que muitas vezes torna menos cansativa a temática dos rios e matas, ficando mais próxima do imaginário popular. Essa fase de sua pintura estabiliza, por assim dizer, a inquietação do artista no ponto exato em que se faz necessária a identificação da paisagem, seu conteúdo mítico e sua força cósmica.
À exemplo da Canoa Transformadora, do Arco-Íris e da Boiúna, vai, deste modo, o pintor e o antropólogo em viagem pelo universo aquático da infância em busca de terra mais favorável para o encontro do sonho que se fez Amazônia, e a plena consciência artística e ecológica dos seres que ainda mereçam habitá-la.
Após tantos estragos, afinal, somente a arte de alguém como esse Mestre do Bairro de Aparecida, em Manaus, poderá despertar interesse para a visualização de um trágico impasse no qual a natureza deixa de motivar, apenas, a cobiça internacional pelo que guarda (ou guardava) de precioso para o homem. Esta, para mim, deve ter sido a missão de quem atinge, agora, meio século de profunda e meditada dedicação aos múltiplos assuntos de um fenômeno geográfico que, depois de levantar-se em forma de Cordilheira, dera nascimento ao continente brasílico, sendo, portanto, o primeiro e último estalo do período terciário da Terra.
Nem precisa repetir que se trata, aqui, da inventada Amazônia, por cujos meandros, festejos e desdobramentos naturais, a paleta mágica de Moacir Andrade sente-se gotejada pelas estrelas daquela noite, já distante, em que os pajés puderam encontrar a única explicação para sua origem cosmogônica. Traços marcantes de seu pincel podem estar inclusive, na história das nações que habitavam o Alto Rio Negro, ao tempo do guerreiro Buopé. Ou seja, na presença de um luzeiro celeste cuja finalidade é zelar pela terra, protegendo-a dos maus, sobretudo pelo exemplo de que tudo, nela, é prodígio e beleza.
A crônica acima, inédita, é de 22 de setembro de 1991. Mas o “Traço e o Verso”, livro de nossa autoria editado pela SEMEC, em 1985, traz poemetos de nossa autoria como “ilustrações” dos primeiros desenhos de Moacir Andrade, entre os anos de 1936 e 1941, a exemplo dos abaixo transcritos:
A mangueira de dona Cachica
madruga de frutos caídos no chão.
A cerca é de palitinhos de fósforo,
o teto da casa é de palha
e a nuvem que vem de oeste
assume um cavalo de chuva
trazendo São Jorge
numa rosa de fogo.
Outro:
Paredes de estuque
telhas de cavaco,
esta casa lembra um ninho
desconfiado de ser pássaro.