Zemaria Pinto
Personagens
Didaticamente, costuma-se classificar as personagens em planas (quando não têm complexidade, apresentando uma só qualidade ou um só defeito) e esféricas ou evolutivas (quando têm profundidade, são dotadas de características que as fazem oscilar, muitas vezes, entre dois extremos – o Bem e o Mal, por exemplo). Nos autores do Romantismo, as personagens encontradas são, em sua grande maioria, planas, pois é característica romântica o maniqueísmo, que divide as personagens em heróis (o Bem) e vilões (o Mal).
Em Senhora, desfilam personagens ricamente elaboradas, que refletem a maturidade de seu autor, e que, não à toa, fazem desse romance, ao lado de Iracema, este num outro extremo, a obra-prima de Alencar.
Aurélia – É a personagem central do romance, a “senhora” do título. Recém saída da adolescência – legalmente, menor –, Aurélia apresenta-se emancipada, num tempo em que as mulheres sequer concebiam ter voz dentro da sociedade. Autoritária, mantém as rédeas de sua vida, morando em companhia de uma parenta distante e idosa, uma “mãe de aluguel”, e tendo como tutor o tio, controlado por interesse.
Aparentemente estereotipada, Aurélia possui a extrema beleza das heroínas de Alencar, ostentando, todavia, a densidade de uma personagem complexa, ao oscilar, durante o romance, entre o Bem e o Mal.
Numa visão linear do romance, Aurélia apresenta-se, no início, como uma virgem cândida, crente no amor eterno. Abnegada, ao ser abandonada por Seixas, não expressa raiva ou outro sentimento mesquinho, demonstra apenas resignação. Ao saber, entretanto, que fora trocada não só por outra moça, mas também, e principalmente, por um dote, Aurélia fica transtornada, considerando Seixas, assim, “indigno de seu amor”. Além da desilusão amorosa, Aurélia ainda perde a mãe, ficando completamente sozinha.
Por tudo isso, quem se torna uma rica herdeira já não é a moça simples e resignada, e sim uma mulher amadurecida pelo sofrimento, que nutre profundo desprezo pela sociedade que a maculou. Orgulhosa, Aurélia desfila sua fortuna e beleza pelos salões da sociedade, reconhecendo-se a rainha dos bailes. É por orgulho também que efetiva a “compra” de Seixas, embora o sentimento se transforme, posteriormente, nas palavras da própria personagem, em vingança.
Com o passar do tempo e ao reconhecer que, aos poucos, Seixas vai se “modelando”, transformando-se no ídolo que criara, Aurélia volta a ter fé em seu amado, achando-o digno de seu perdão e amor.
Alencar utiliza-se de uma bela imagem, ao comparar Aurélia ao lendário Pigmaleão, que molda uma estátua e se apaixona por ela, sendo atendido por Afrodite, a deusa grega do amor, que dá vida à amada. Aqui a história se repete: Aurélia imagina uma criatura perfeita, pela qual se apaixona, e, através do amor, consegue recuperar a dignidade do amado, dando-lhe vida, finalmente.
Dentro da galeria de personagens femininas e urbanas de Alencar, Aurélia é, sem dúvida, seu tipo mais completo, seu perfil mais verdadeiro. Aurélia é amadurecida pelo sofrimento, como a Lúcia, de Lucíola; é autoritária e voluntariosa, como a Emília, de Diva.
Se Emília “criara o ideal da Vênus moderna, a diva dos salões...”, Aurélia é a rainha, a deusa dos bailes; se “Lucíola é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos” (na explicação do título, pelo próprio autor), Aurélia é a estrela, é “raio de sol no prisma do diamante”.
Seixas – Protagonista, é o marido “comprado” por Aurélia. Como autêntico produto social, Seixas tem seu caráter moldado por falsos valores, desculpando seu espírito perdulário na tentativa de melhorar de vida. Tudo o que ganha gasta consigo, deixando a mãe e as duas irmãs vivendo miseravelmente. Tem vida dupla, apresentando-se à sociedade como um jovem rico.
Pode ser classificado como um personagem esférico, pois sua personalidade transforma-se no decorrer da história. Se, no início da trama, apresenta-se como um leviano, que não hesita em abandonar a noiva por uma outra com um dote, aos poucos, a partir da noite de núpcias, vai tendo seu caráter transformado: deixa de ser perdulário e fútil; passa a dar importância ao seu trabalho, sendo diligente e assíduo; volta-se para a natureza, admirando-a... enfim, reeduca seu caráter, resgatando a dignidade perdida.
Seixas era honesto, mas também flexível, nas palavras do próprio narrador. Falta-lhe a firmeza, o radicalismo exagerado do herói romântico, no qual se transfigura, afinal, ao término do romance. São essas mudanças, o “desmascaramento” de sua personalidade verdadeira, que fazem de Seixas uma personagem complexa.
No conjunto de personagens criados por Alencar, Seixas guarda semelhanças com a heroína Lúcia, de Lucíola. Como esta, vende seu corpo, vítima da sociedade que se impõe. Se Lúcia é obrigada a prostituir-se para atender às necessidades da família, também Seixas, em determinado momento, acha-se na obrigação de ajudar a família, e restituir o que dela tirou.
Se Lúcia, através de sua independência financeira, liberta-se da prostituição, é através do dinheiro que Seixas resgata sua liberdade. Se Lúcia, redimida pelo amor, ao morrer, liberta sua alma do corpo maculado, e recobra sua dignidade, também Seixas, ao recuperar sua liberdade, compra de volta sua dignidade, entregando-se ao “santo amor conjugal”.
Antes de comentarmos os personagens planos, leitor, façamos um resumo do conflito de personalidades entre Aurélia e Seixas. Do ponto de vista econômico, Aurélia é a senhora dominadora, mas é dominada sentimentalmente. Isto é, externamente ela é forte; internamente, fraca. Seixas, por sua vez, é o dominado pelo poder econômico de Aurélia, mas domina-a, desde o início, no plano sentimental. Seixas é fraco exteriormente, mas é forte internamente.
Observe como esses comportamentos se complementam quando os cruzamos:
Aurélia Seixas
dominada – sentimento dominado – poder econômico
fraca – interiormente fraco – exteriormente
Se analisarmos os significados dos nomes (nada é casual, leitor!), observaremos que Fernando (Seixas) é o “protetor valente”, enquanto Aurélia é “ouro”. Nada mais elementar, portanto, que eles consigam equacionar as divergências, achar o ponto de equilíbrio e... viver felizes para sempre.
Manuel Lemos – Tutor de Aurélia, Lemos é o que se classifica de personagem plana, pois apresenta-se, desde o início, de uma só maneira: é mesquinho, velhaco, por vezes, sórdido. É o responsável por uma das primeiras decepções de Aurélia: propõe que se venda, apresentando-se como “empresário dessa metamorfose, lucrativa para ambos”.
Torquato Ribeiro – Amigo sincero de Aurélia, abandonado por Adelaide por causa de Seixas, Torquato aproxima-se da noiva também abandonada, demonstrando-lhe amizade verdadeira, ajudando-a por ocasião da morte de D. Emília: é por seu intermédio que D. Firmina acolhe Aurélia em sua casa.
É uma personagem estereotipada, pois o único traço de seu caráter que fica evidente é uma idealizada bondade. Bacharel pobre, é rejeitado pelo pai de Adelaide e por ela mesma. Mais tarde, contudo, perdoa-os e casa-se com ela. Oferece-se para ajudar Seixas, quando da morte de seu pai, o que o impediu de continuar a faculdade; é amigo sincero de Aurélia, a quem ajuda desinteressadamente. Um poço de bondade. Aurélia o tem como amigo, escolhendo-o como seu padrinho de casamento, e “arranjando” seu casamento com Adelaide.
D. Firmina Mascarenhas – É a parenta distante que acolhe Aurélia quando da morte de sua mãe. Quando Aurélia fica rica, permanece em sua companhia, servindo à jovem como “mãe de encomenda”, no dizer irônico do narrador.
Adelaide Amaral – Se não tivesse atuação tão apagada na trama, poderia ser considerada antagonista, pois é por sua causa (e de seu dote!) que Seixas abandona Aurélia. Redime-se, entretanto, casando-se com o fiel e apaixonado Torquato Ribeiro.
Eduardo Abreu – Rico e sincero pretendente de Aurélia, ao ser rejeitado, não deixa de amá-la, pagando, anonimamente, o funeral de D. Emília. Enquanto Aurélia enriquece, Eduardo fica arruinado, tentando, inclusive, o suicídio. Aurélia ajuda o ex-pretendente, despertando o ciúme de Seixas.
D. Emília – Mãe de Aurélia. Mulher abnegada, dedicada inteiramente ao marido, que não a assume perante o pai.
Pedro Camargo – Pai de Aurélia. Filho natural de um fazendeiro rico, é extremamente submisso ao pai, de quem oculta o casamento com Emília, morrendo corroído pelo remorso de não poder reconhecer a família.
Emílio – Irmão de Aurélia. Fraco e de pouca inteligência, trabalha como caixeiro, sendo auxiliado pela irmã, nos cálculos e operações. Morre de pneumonia.
Lísia Soares – É a personificação das mocinhas casadoiras, que perambulam sua futilidade e ociosidade pelos salões fluminenses frequentados por Aurélia.
D. Camila – Mãe de Seixas. Viúva, dedica-se inteiramente aos filhos. Resignada, não questiona a distância que Seixas mantém depois de casado.
Mariquinha e Nicota – Irmãs de Seixas. Tal qual a mãe, são dedicadas ao irmão, não reclamando da miséria em que vivem, confortando-lhes saber das festas por intermédio de Seixas.