Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Medicina como especialidade social – cristianização da medicina greco-romana

João Bosco Botelho



Cláudio Galeno nasceu em Pérgamo, na Ásia Menor, no ano de 130 d.C. Foi sem dúvida o mais famoso médico do seu tempo. Os seus livros, acredita-se que outros se perderam, abordaram a anatomia, a fisiologia, a patologia, a sintomatologia e a terapêutica.

A maior parte dos seus livros foi reeditada, em Veneza, no ano 1538, e constituiu o principal livro de consulta dos médicos medievais.

O outro médico romano que ficou na História foi Sorano, nascido em Éfeso. Os escritos dele que foram recuperados são de extrema lucidez e bom senso. Esse médico notável descreveu a existência dos médicos parteiros, que deveriam ser numerosos, uma mistura de práticos e especialistas, semelhantes às parteiras da atualidade, e os que faziam abortos, proibidos pela lei romana. Quando descobertos eram punidos com o degredo.

Entre as obras de Sorano destaca-se o “Manual de Ginecologia”, que serviu de orientação para os médicos durante quase quinze séculos, praticamente sem qualquer contestação. Neste manual, ele descreveu com absoluta precisão as posições anormais dos fetos no útero grávido:

- Podálico com os pés unidos;

- Podálico com um só pé;

- Ajoelhado;

- Sentado;

- De ombros.

Essas posições anômalas do feto, no desenvolvimento do parto, ainda hoje, representam maior atenção para os obstetras, mesmo com todos os recursos atuais.

Sem dúvida alguma o Império Romano preocupou-se com a prática médica e procurou, através de normas jurídicas, constituir um serviço público amplo na maior parte das cidades do Império. Porém, esse início foi a partir da melhora da assistência médica às mulheres dos militares das legiões, que foram as primeiras beneficiárias, com a construção de hospitais militares em diferentes regiões do imenso Império Romano. O mais famoso deles, o de Vindonissa, em Windish, na atual Suiça, com sessenta quartos e capacidades para 480 doentes, distribuídos em enfermarias.

A preocupação coma saúde pública, entre as diferentes fases do império romano, era inquestionável. A Lei das Doze Tábuas, que remonta aos primórdios da República, estabeleceu normas para o sepultamento e queima dos cadáveres fora dos muros da cidade e a construção dos esgotos, como a Cloaca Máxima, em Roma, que ainda é utilizado na parte antiga da cidade.

As autoridades públicas fiscalizavam o cumprimento das normas que regulamentavam a higiene pública. Os grandes arquitetos romanos, como Vitrúvio, recomendavam a escolha de lugares ensolarados para a construção das casas.

Além dos cuidados com a organização das cidades, foram construídas centenas de banhos públicos estimulando a higiene pessoal. Essas termas, algumas recuperadas pelos trabalhos arqueológicos, como o de Diocleciano, em Roma, contavam com médicos e podiam obrigar em diferentes piscinas e salas de ginásticas centenas de pessoas ao mesmo tempo.

Com a divisão do Império Romano, iniciada pelo Imperador Constantino e consolidada por Teodósio, em fins do século IV, o Império Romano do Ocidente teve a sua capital em Milão, na Itália, e o Império Romano do Oriente, em Constantinopla, atual Istambul, capital da Turquia.

O Império Romano do Ocidente sofreu profundas transformações sociais e políticas nos anos que se seguiram, notadamente, em consequência:

- Invasão dos visigodos;

- Cristianização;

- Gradativa mudança do sistema mercantil-escravista para o feudal.

Como não poderia deixar de ser, a prática médica foi envolvida e modificada pelas mudanças em curso. Com a cristianização do Império Romano do Ocidente, a influência exercida pela Igreja Católica na Medicina foi se fazendo de forma gradativa e irreversível.

Na realidade, a raiz dessa interferência remonta ao tempo pré-cristão, quando o pensamento judaico associava o aparecimento das doenças aos pecados cometidos e à cólera de Deus, semelhante às culturas egípcias e babilônicas. Progressivamente, a doença passou, novamente, de modo predominante, a representar espécie de pecado, sendo que o único tratamento possível para o sofrimento era o perdão da Trindade cristã, santos e mártires.

Essa relação do homem romano com a doença como consequência do pecado, após a cristianização, evoluiu sem alteração e se consolidou, no Ocidente, atada à ação evangélica de Jesus Cristo, que incluía a capacidade de curar milagrosamente inúmeras doenças, cujos relatos foram passados através das gerações, por meio do Novo Testamento, pelos apóstolos Marcos, Mateus, Lucas e João.

Entre os depoimentos dos apóstolos de curas milagrosas que Jesus Cristo realizou, é possível citar a cura do paralítico (Mt 7,32-35), cura do louco (Mt 20,30-34), cura do surdo-mudo (Mc 7,32-35), cura do epilético (Mc 9,16-26) , chegando a ressuscitar o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-25) e Lázaro, já em processo de decomposição do corpo (Jo 11,17-44).